• Nenhum resultado encontrado

3. Memória e trauma: o romance como narrativa do trauma

3.1 Personagens traumatizados

Em Copenhague, por exemplo, o clímax da narrativa memorial de Camille Pedersen-Safra, se dá quando a personagem relata um trauma. Em 1944, Camille que tinha por volta de dez anos de idade, voltou à França recém desocupada na companhia da mãe, em busca de notícias de uma tia desaparecida durante a Guerra. Depois de vagar durante todo um dia em vão por uma pequena cidade próxima a Lyon, mãe e filha perderam o trem que as levaria de volta a Paris, e de lá à Dinamarca. Ao rememorar a noite que passaram hospedadas em um hotel, Camille narra o trauma da mãe:

Su madre, me dijo la señora, nunca cerraba las habitaciones con llave: le daba terror quedarse atrapada, perder la llave y no poder salir. En los refugios, cuando sonaban las alarmas de los ataques aéreos, tenía accesos de sudor y de pánico. Si iban al cine, en cuanto terminaba la película se apresuraba a salir, por miedo a que se fuera todo el mundo antes que ella y cerraran las puertas creyendo que ya no quedaba nadie. (p. 65) Nesse episódio, o romance demonstra como a guerra e a perseguição étnica são situações extremas que deixam registrados na psique do indivíduo severos traumas e medos. O episódio se torna ainda mais dramático quando, ao amanhecer, na ânsia de sair do quarto para deixar logo a França, mãe e filha ficam presas pela porta que não se abre. Nessa passagem, Muñoz Molina faz com que a narrativa do trauma dialogue com elementos da literatura fantástica, um gênero com o qual o autor sempre flertou em sua narrativa breve87. A mãe de Camille a acusava de ter chaveado a porta, mas a filha negava que o tivesse feito. A chave encontrava-se, inexplicavelmente, sobre um aparador, e quando introduzida na fechadura, tampouco abria a porta. O pânico então tomou conta da mãe de Camille. Seus movimentos desesperados tornavam mais difícil a abertura da porta, até que a chave se rompeu. Uma série de maus pensamentos assaltavam a mente da mãe da personagem: o retorno do medo de não

87 Haja vista a publicação das novelas de fantasma Carlota Fainberg (1999) e En ausencia de Blanca (2001) e dos contos El cuarto del fantasma, Las aguas del olvido, Si tú me dices ven, Nada del otro mundo e Apuntes para un

conseguir escapar e chegar em segurança no exílio; a sensação de não ser bem-vinda de volta ao país natal; o sentimento de inferioridade por ser judia na França, um país no qual a atitude de seus conterrâneos ainda preservava traços de antissemitismo. Curiosamente, a janela, que não tinha qualquer trava, tampouco se abria. Descontrolada, a mãe de Camille gritou por socorro, mas aquela porta nunca se abriu. Depois de uma hora de agonia, mãe e filha conseguiram escapar por uma porta secundária oculta atrás de um armário. O episódio tem um desfecho típico de conto de terror. Na estação, enquanto aguardavam o trem, mãe e filha descobriram que o hotel em que haviam ficado presas tinha servido de quartel da Gestapo: “Ocurrieron cosas terribles en esas habitaciones. La gente pasaba por la plaza del pueblo y escuchaba los gritos, y hacía como si no escuchara nada.” (p. 69) Ao realizar a narrativa do trauma com elementos da literatura fantástica, Muñoz Molina mostra como a realidade pode ser tão ou mais aterrorizante que a ficção de horror.

Mais de quarenta anos depois, no leito de morte, a mãe de Camille ainda era vítima de um trauma não perlaborado. Era despertada por pesadelos e advertia a filha a não fechar à chave a porta do quarto do hospital onde se encontrava internada.

No capítulo Tan callando, o ex-soldado espanhol da Divisão Azul é atormentado por devaneios que o levam de volta à cabana que compartilhava com a mulher russa e seu filho no cerco a Leningrado. Grata por não ter sido morta pelo soldado espanhol, que deixava para mãe e filho os suprimentos de que dispunha, a mulher o protege de guerrilheiros russos que estavam em busca de soldados alemães. Mas, numa noite em que o soldado espanhol está em vigília e um soldado alemão ocupa seu lugar na cabana, guerrilheiros russos a invadem, executam o soldado e ateiam fogo ao esconderijo, queimando mãe e filho vivos. Assombrado pela culpa de ser o responsável indireto pela destruição daquela família, o soldado revive a tragédia, mais de cinquenta anos depois. Sofre de insônia e as imagens trágicas da Guerra invadem seus pensamentos:

Quién es el hombre de ochenta años que se remueve con torpeza en la cama, que sabe que va a seguir despierto hasta que llegue el día, viendo caras de muertos y lugares que no existen, la mujer rusa y el niño encanijado que se esconde en los pliegues de su falda de harapos, las llamas de la hoguera que él no vio resplandeciendo en la llanura arrasada por el barro, […] (p. 108)

Essa passagem evidencia que um dos procedimentos empregados por Muñoz Molina para narrar o trauma, é o de descrever as imagens intrusivas que invadem a mente dos personagens, o que faz com que o leitor visualize as mesmas imagens traumáticas, como numa tentativa de implicar o leitor no trauma do outro.

Em Oh tú que lo sabías, Isaac Salama relata que, durante a invasão nazista em Budapeste, muitos judeus permaneciam escondidos em suas casas enquanto aguardavam os passaportes espanhóis concedidos pela embaixada da Espanha para então, poderem deixar o país. Em um par de horas em que Isaac Salama e o pai deixaram a casa para sair em busca de comida, nazistas invadiram a residência e levaram sua mãe e irmãs para um campo de extermínio. O protagonista, apenas uma criança nesse momento, observou no semblante do pai as marcas de um trauma que o acompanharia pela vida afora, o trauma de não ter conseguido salvar a família, o trauma do sobrevivente:

Vino el hombre a quien mi padre había visitado otras veces y le dijo a mi padre que todo estaba arreglado, pero mi padre no decía nada, no contestaba, como si no oyera, y el hombre le preguntó que si estaba enfermo, y mi padre siguió sin contestar, con la barbilla hundida en el pecho, los ojos perdidos, el gesto que se le quedó ya para siempre. (p. 149)

Logo após a experiência traumática, o pai de Salama é atingido por um sintoma comum entre os traumatizados, a incapacidade de falar. Mas o trauma silenciado no pai encontra no filho uma testemunha, e a narrativa produzida pelo filho é transformada em literatura por um narrador/autor que a escuta e que se deixa tocar pelo trauma do outro. Desse modo, Sefarad mostra como as catástrofes do século XX produziram traumas que são herdados e transmitidos pelas gerações seguintes, traumas que se tornaram coletivos, e a literatura tem um papel nessa cadeia de transmissão.

O silenciamento do trauma e o trauma como herança também são temas abordados no capítulo Dime tu nombre. A personagem Adriana Seligmann relata que soube do passado traumático do avô, um judeu alemão exilado no Uruguai, apenas quando ouviu seus gritos, em alemão, durante terríveis pesadelos. Desperto, o avô se negava a contar para a neta as memórias da vida na Alemanha e dos tempos da Guerra. Ele sequer era capaz de falar alemão, dizia que havia deixado o país natal muito jovem e que se esquecera da língua e do passado.

As gerações mais jovens não são apenas testemunhas dos traumas das gerações que viveram a catástrofe. Essas gerações são traumatizadas como que por extensão. Isso é o que está posto no capítulo Cerbère. A mãe da protagonista Tina Palomino, ao final da Guerra Civil, recusou-se a acompanhar o marido comunista ao exílio na URSS. Mesmo sem nenhum envolvimento com as atividades políticas do marido, apenas por ser esposa de rojo, a mãe de Tina foi estigmatizada socialmente, sofreu tortura, teve os irmãos presos e fuzilados. A família foi relegada à miséria. Quase trinta anos depois de terminada a Guerra, ao receber a carta que solicitava sua presença na embaixada da Alemanha, o trauma da perseguição sofrida pela mãe retorna para Tina:

Me palpitaba el corazón, de miedo, porque entonces el hambre ya se nos había quitado, pero el miedo nos duraba todavía, el miedo a todo, a que nos cayera otra vez la desgracia, a que se llevaran de nuevo a mi madre, como cuando se la llevaban después de la guerra y tardaba días en volver y mi abuela iba por las comisarías y la cárceles de mujeres preguntando por ella. (p. 314)

Nesse fragmento, o testemunho de Tina documenta as agruras do pós-Guerra, tempos negros para toda a população espanhola, mas sobretudo para as famílias dos republicanos. Os duros anos da fome já tinham passado, embora permanecessem bastante vivos na memória da personagem. Mas, vivendo ainda sob a ditadura franquista, algo que permanecia era o medo. Nos romances em que trata das gerações do pós-Guerra Civil, como El jinete polaco, El viento de la luna e Sefarad, Muñoz Molina insiste na representação desse medo, desse trauma coletivo que perdurou na memória da população espanhola, mesmo quando a ditadura já dava sinais de esmorecimento.

O retorno do medo é também um dos temas no capítulo Dime tu nombre. O pianista do leste europeu exilado voluntariamente na Espanha, lembra que, no retorno de sua primeira viagem ao exterior depois de obtida a nacionalidade espanhola, foi dominado por pesadelos traumáticos que o levavam de volta ao medo e à repressão vividos enquanto atravessava as fronteiras entre os países comunistas:

[…] si se quedaba un rato vencido por el sueño. Abría los ojos con un sobresalto, buscaba los papeles y ahora sí que estaba seguro de que uno de esos ladrones que rondan los trenes nocturnos se lo había robado. Recordaba las horas de angustia y miedo en los puestos fronterizos de los países comunistas, la revisión lentísima de papeles y los signos de alarma cuando estaba a punto de cruzar una frontera y parecía que un defecto burocrático en algún documento lo iba a dejar atrapado. (p. 520) As catástrofes do início do século XX tornaram as fronteiras europeias perigosas, converteram-nas em lugares desencadeadores de angústia e medo. Nunca antes os cidadãos europeus deram tanto valor ao direito à nacionalidade e aos documentos que a comprovavam. A garantia de uma nacionalidade podia salvar vidas ou representar uma condenação à morte. Arendt (1989) lembra que, para tornar a perseguição aos judeus plausível, uma das primeiras medidas do Terceiro Reich foi usurpar-lhes o direito às nacionalidades alemã, austríaca, etc. Os sentimentos de angústia e medo na travessia de fronteiras e a insegurança com relação aos documentos, são temas caros a Muñoz Molina, tanto que são recorrentes em Sefarad, e retornarão com ainda mais força no romance La noche de los tiempos.

Repetições, pesadelos, insônia, imagens intrusivas, incapacidade de falar, medo, angústia, negação, bloqueios, todos esses sintomas traumáticos aparecem no romance em testemunhos orais ouvidos pelo narrador/autor, e são transpostos à ficção. Iser (2002) explica

que o conteúdo narrado na ficção é um recorte extraído da realidade, uma escolha consciente ou inconsciente do autor, que permite desvelar a intencionalidade do texto literário. Se o autor narra o produto de suas escolhas, ocorre-me questionar por que Muñoz Molina decide pinçar, nos testemunhos que ouviu, justamente as experiências traumáticas, para narrá-las no romance?