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2.2   A ESSÊNCIA DO TEMPO

2.2.4   A problemática do presente

Podemos entender esta metáfora da distensão, que na realidade é inex- tensa, como uma tentativa de reconciliação do presente indivisível com a ideia que habitualmente formamos do tempo como uma continuidade. Mas será que se consegue realmente essa reconciliação?

De facto, quando Agostinho confere alguma continuidade ao presente através da atenção que o faz perdurar, ele deixa de ser um simples limite das continuidades do passado e do futuro e assemelha-se a uma extensão. Porém, J. Reis observa que se trata de uma continuidade resultante do instante «que simplesmente mede o futuro ou o passado e portanto de um presente de segundo grau; mas, mesmo assim, algo em si mesmo em relação aos respetivos passado e futuro, porque uma continuidade própria»141.

Contudo, poderíamos ter muito mais se Agostinho fizesse prevalecer o postulado da experiência. Por um lado, ele passa a vida a admitir que

141 352. Para o desenvolvimento da problemática da continuidade do presente, Vide ID.,

o que se mede é o presente efetivo e, por outro lado, a teoria leva-o a contrariar os dados da experiência, reduzindo o presente a um mero ponto de passagem sem continuidade entre o futuro e o passado, restando apenas um presente a que poderemos chamar de punctual. Com a introdução da intenção presente este ponto de passagem é o da contagem do passado e do futuro, uma vez que é no presente que o tempo se continua a medir, embora se trate de medir o passado ou o futuro e não o presente efetivo: «o que existe é este futuro, e depois o passado e – porque apesar de tudo não se perdeu por completo o presente – na passagem por este último, há a contagem, instante a instante, do futuro e, com um momento de atraso, do passado»142.

Convém relembrar algo já referido anteriormente: enquanto para Ricœur é a intenção presente que faz passar o tempo, para J. Reis, o tempo passa por si próprio e chega à consciência através de imagens percecionadas no presente efetivo. A função da intenção presente é apenas a de contagem. Assim, J. Reis considera que este presente que o autor julga ter salvo com a duração da atenção é um presente em segundo grau e que o verdadeiro presente, aquele que ele considera o elemento nuclear do tempo, posto que é a perceção e não a imaginação, se perdeu. Para Agostinho, só o futuro e o passado gnosiológicos podem ter continuidade, mas estes fazem parte da imaginação e não da perceção. Daí que J. Reis diga que «a Agostinho, evidentemente, faltou a hodierna análise fenomenológica da imaginação, própria da memória, na sua diferenciação relativamente à per- ceção. E, por outro lado, dado o acento da sua teoria do “tríplice presente”, essa diferenciação ainda lhe é mais difícil de alcançar. Daí que ele não se aperceba que não é a mesma coisa medir uma continuidade no presente ou no passado. Medir o verso no presente é medi-lo enquanto ele é declamado e por isso enquanto efetivamente se sente, enquanto existe; medi-lo no passado – ou, o que é o mesmo, na memória – é medi-lo na mera imaginação que nos fica após essa existência»143. E inicialmente, se atentarmos nos

exemplos anteriores, o autor parece ter essa garantia fornecida pela expe- riência de que o que medimos é o tempo presente efetivo, não o presente

142 ID., 343.

em “segunda mão”144, como lhe chama J. Reis, o presente que se mede

“após” ou “antes” de passar: «Imagina que a voz de um corpo começa a soar, e soa, e soa ainda, e eis que deixa de soar, e faz-se silêncio, e a voz passou e já não há voz. Havia de ser, antes de soar, e não podia ser medida, porque ainda não existia, e agora não pode, porque já não existe. Por isso, podia ser medida no momento em que soava, porque nesse momento existia o que podia ser medido» (XI, xxvii, 34). Estamos perante um confronto entre a experiência e a teoria acerca da continuidade do presente. O presente contínuo entre o passado e o futuro que Agostinho não encontra na teoria, encontra-o, inicialmente, na experiência vivida. Ela começou por revelar ao próprio autor que as coisas se medem no presente, porque é nesse momento que elas existem, mas foi preciso emendar a experiência para salvar a teoria. Por isso, Agostinho muda do registo do presente para o registo do passado, e fá-lo, repitamo-lo, porque vê no presente um limite e as continuidades só no passado e no futuro e, acrescenta J. Reis, «nem sequer deixa pôr a hipótese de uma continuidade no presente e, consequentemente, nem sequer deixa ver o que na realidade se passa, que é “ao passar” ou no presente que medimos o tempo»145.

Esta crítica severa ao Bispo de Hipona é justificada pela forma como este negligencia e quase aniquila o presente para que a sua teoria possa chegar a bom termo. Para J. Reis, o tempo só se pode medir no presente efetivo, porque o presente é formado de instantes sucessivos que lhe conferem continuidade. O instante, segundo ele, baseado em Aristóteles, não é um indivisível mas uma «parte» constitutiva da continuidade; desta maneira não há só a continuidade do passado e do futuro, mas também a do presente146.

A sua crítica a Agostinho assenta no facto de este querer expor uma teoria que vai no sentido oposto ao da experiência que para o próprio efeito

144 ID., 350. 145 ID., 350.

146 «Porque na tradição se pensa o instante como inextenso, nem nos passa pela cabeça

que, pondo um a seguir ao outro, assim podemos constituir, com eles próprios, a continuidade, antes julgamos que contínuos são só o passado e o futuro e o instante não passa da sua divisão. No entanto, a simples continuidade do passado e do futuro, porque eles são passado e futuro

de um presente, são o já e o ainda não dele, implica que os instantes constituam uma continuidade»

invoca. A teoria que concebe o presente como o limite do passado e do futuro, não permitindo como continuidades senão a estes últimos, vai contra a própria experiência da dispersão da vida, que irá invocar no capítulo 39, visto que se trata efetivamente da dispersão da sua vida real e não do que “ainda há de ser” ou do que “já foi”; vai contra as experiências invocadas do som que, tendo começado, ainda não acabou e por isso dura; da sílaba longa que, justamente enquanto soa, é medida pela breve que se guardou na memória; e até do som que já em silêncio se mede. A certeza de que é no presente que se mede o tempo reflete-se na própria reiteração, um pouco por todo o lado, da afirmação de que é ao passar que se mede o tempo, quando o percebemos: «mas medimos os tempos que passam, quando, sentindo-os, os medimos; […] Quando, pois, o tempo está a passar, pode sentir-se e medir-se, quando, porém, tiver passado, não pode, porque não existe» (XI, xvi, 21). O próprio afirma que a impressão gravada na memória e antecipada na expectativa é medida no presente, claro que não se trata um presente efetivo, mas ainda assim é um presente: «Meço a impressão que as coisas, ao passarem, gravam em ti e que em ti permanece quando elas tiverem passado, e meço-a, enquanto presente, e não as coisas que passaram, de forma a que essa impressão ficasse gravada» (XI, xxvii, 36). «Ou seja, em resumo, a experiência grita – contra o “grito” da teoria – que o presente é tanto uma continuidade como o passado e o futuro»147.

Reconhecemos alguma razão nas observações de J. Reis, sobretudo, quando defende que o tempo real ou efetivo – nós diríamos “cosmológico” ou “cronológico” – é o presente; o passado e o futuro não passam de memórias e expectativas, ou, se preferirmos, imagens recordadas e imagens antecipadas na imaginação – que constituem o que denominamos de “tempo psicológico”. No entanto, a sua visão peca por ser demasiadamente física ou cosmológica, contra a de Agostinho, excessivamente metafísica e psi- cológica. Se pudermos conciliar as duas, talvez fiquemos mais perto de uma solução satisfatória. A este assunto voltaremos quando confrontarmos tempo cosmológico e tempo psicológico.