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3. TEMPO COSMOLÓGICO E TEMPO PSICOLÓGICO

3.3   TEMPO E CIÊNCIA

A problemática do tempo é uma das que mais atormenta o homem. Hoje cientistas e filósofos continuam a perguntar se devemos considerar o tempo como aquilo que conduz o homem ou o homem como criador do tempo. Há quem defenda que é o homem, a consciência, que cria o tempo, que não existiria num universo sem homens e sem consciência e, por isso, o tempo é um assunto exterior à Física. Einstein dizia que se escolhe «o ponto de vista da física, o tempo, enquanto irreversibilidade, é ilusão e portanto não pode ser objeto de ciência. […] Bergson defende que o tempo não pode ser objeto de ciência, porque é demasiado complexo para a ciência»212. Ilya Prigogine213, por sua vez, defende que «o homem

212 Apud PRIGOGINE, 1999, 20.

213 Ilya Prigogine nasceu em 1917 em Moscovo, mas é de nacionalidade belga. Conquistou

o prémio Nobel de Química em 1977 pelo seu trabalho sobre as estruturas dissipativas. Consiste a sua tese em demonstrar que já não é possível acreditar na visão demasiado simplificada do mundo que nos foi legada pela ciência clássica de Galileu e Newton e que punha a ênfase nos fatores do equilíbrio, da ordem, da estabilidade. «Hoje vemos flutuações e instabilidade por todo o lado e começamos a ganhar consciência da inerente complexidade do Universo». Para os fundadores da ciência ocidental, como Leibniz e Descartes, o objetivo era a certeza. Acontece, porém, que entretanto se tornou difícil coadunar a descrição termodinâmica de um universo em constante evolução entrópica com a descrição intemporal dada pelas leis da natureza. Pergunta-se também «como é que o aumento da entropia (associado ao aumento de desordem) pode ter produzido estruturas tão complexas como a vida?». A física do desequilíbrio revela- -nos que os sistemas que são empurrados para longe do seu ponto de equilíbrio dão origem a novas estruturas (as chamadas estruturas dissipativas) através de processos de auto-organização. «O aparecimento destas estruturas mostra o papel construtivo da irreversibilidade temporal».

faz parte desta corrente de irreversibilidade que é um dos elementos essen- ciais, constitutivos do universo». Por isso, a sua tese consiste na afirmação de «que o tempo é objeto da ciência. Deve ser colocado no seu lugar na estrutura da ciência moderna e este lugar, na [sua] opinião, é fundamental, é o primeiro»214. E explica porquê: «A ideia de uma omnisciência e de

um tempo criado pelo homem pressupõe que o homem seja diferente da natureza que descreve, conceção que considero não científica. Quer sejamos laicos quer religiosos, a ciência deve ligar o homem ao universo. O papel da ciência é exatamente o de encontrar ligações, e o tempo é uma delas. O homem provém do tempo; se, pelo contrário, o homem criasse o tempo, este seria evidentemente uma barreira entre o homem e a natureza»215.

A história natural do tempo é identificada por este químico, com a evolução biológica e a evolução da sociedade. « […] com o aparecimento da vida, nasceu um tempo interno que prossegue durante biliões de anos de vida e se transmite de geração em geração, de espécie em espécie, e não apenas se transmite como se torna cada vez mais complexo. Assim como há uma história para os computadores que, num dado tempo astro- nómico, conseguem produzir cada vez mais cálculos, também há uma história biológica do tempo que corresponde a uma estrutura cada vez mais complexa deste tempo»216. Depois, exemplifica como se pode ler esta

estrutura no tempo musical, se compararmos cinco minutos de Beethoven

Assim, afirma o autor: «sejam quais forem os avanços feitos nesta direção, uma coisa é clara: a direção do tempo (o elemento narrativo) representa um papel essencial na descrição da natureza, o que significa que o tempo deve ser incluído na nossa formulação das leis da natureza. As leis de Newton pretendiam exprimir certezas. Agora devemos fazer com que elas exprimam possibilidades que podem ou não realizar-se no futuro.» Em suma, não havendo certezas em relação a todos os sistemas da natureza (há leis que se alteram com o tempo) tem que se calcular as probabilidades inerentes a um futuro sempre aberto e imprevisível, logo, há que ter em conta o tempo, fator que até agora tinha ficado excluído da ciência. «Como aquilo que temos é sempre um conhecimento limitado das condições iniciais, a predictabilidade que definia a mecânica clássica não se verifica aqui». Já não há só sistemas estáveis e intemporais, a ins- tabilidade, por seu lado, apenas pode ser incorporada ao nível estatístico. «Só esta abordagem nos permite exprimir as leis da natureza de uma forma que inclua a direção do tempo e nos permita descrever possibilidades em vez de certezas» (Cit. in PRIGOGINE, 1996, 78).

214 PRIGOGINE, 1999, 21. 215 ID., Ibid., 22.

com cinco minutos de movimento da Terra. Enquanto nos cincos minutos de Beethoven há tempos lentos, acelerados, repetições, antecipações de temas, o movimento da Terra prossegue uniformemente durante esse mesmo período de tempo. Portanto, podemos concluir que o tempo musical é muito mais independente do tempo exterior biológico, autónomo, marcado pela rotação do planeta. Este facto leva o físico a confessar que «ler a história do universo como história de um tempo autónomo, ou de uma autonomia crescente do tempo, é, na [sua] opinião, uma das tentações interessantes da ciência contemporânea»217.

Os recentes desenvolvimentos da termodinâmica conseguem rebater as duas noções de tempo da física clássica: o «tempo-ilusão» de Einstein e o «tempo-degradação» da entropia, e propõem-nos um universo em que o tempo não é nem ilusão nem dissipação, mas no qual o tempo é criação. Isto porque hoje sabemos que «nos seus primeiros instantes, o universo, ainda pequeníssimo e quentíssimo, era um universo de equilíbrio. […] A evolução do universo não se deu na direção da degradação mas na do aumento de complexidade, com estruturas que aparecem progressivamente a todos os níveis, desde as estrelas e as galáxias aos sistemas biológicos»218.

Estamos já longe do tempo kantiano como “intuição pura”: o tempo fora do tempo, como forma pura da sensibilidade – teoria decorrente da física clássica219. Nesta não havia lugar para o passado e para o futuro,

217 ID., Ibid., 24. 218 ID., Ibid., 74.

219 «A física clássica era determinista. Entre o passado e o futuro havia similitude, de

tal modo que o universo e a vida apareciam como um filme, em que tudo está previsto. Hoje, sabemos que na raiz da matéria mora a probabilidade, segundo o princípio da indeterminação. O universo enquanto tal é uma história aberta, e, por isso, estando ainda a fazer-se, é constantemente novo, imprevisível, com uma estrutura narrativa, de tal modo que não é possível determinar nem prever adequadamente o que será. Não se sabe o que reside no núcleo da matéria e, con- sequentemente, não se pode determinar o conjunto de todas as suas possibilidades. O nosso desconhecimento da matéria não tem então a sua razão apenas na nossa finitude e ignorância, mas na sua constituição aberta e narrativa, de tal modo que não podemos sequer dizer que o ser humano seja o estádio último da história da evolução. De qualquer modo, e é essencial sublinhar este aspeto, a evolução do cosmos procede de um dinamismo que produz o novo emergente, que é irredutível ao que o precede, e a continuidade gera-se precisamente no processo, de tal maneira que só é visível a partir do novo e do futuro, e não propriamente do passado antecedente. Portanto, quando se pensa em encontrar um possível “suporte” para a continuidade

para a irreversibilidade. Com o aparecimento da mecânica quântica o homem temporaliza-se. O tempo passa a ser entendido como habitado, irreversível, não quantitativo ou matematizável. O tempo é muito mais do que isso, é qualitativo, heterogéneo, descontínuo. «Aliás, se estivermos atentos, repa- ramos que também nas nossas pequenas histórias pessoais não há apenas o tempo matematizável, quantificável, o tempo dos relógios. De facto, que tempo é esse do amor? O que é o tempo da criação? O que é o tempo da obra de arte? O tempo da beleza? O tempo da liberdade? O tempo da decisão e da urgência? Há duas experiências e duas conceções nucleares de tempo: a conceção kairológica do tempo e a conceção puramente cro- nológica (de Cronos, que devora os seus próprios filhos) do tempo». O tempo kairológico é este tempo quase divino do “instante eterno”, o ins tante que é tocado pela eternidade. O tempo cronológico «é o tempo que nos faz envelhecer e morrer»220.

O confronto com o provisório, com o passageiro, com a experiência da fugacidade faz-nos tomar consciência da voragem do tempo. Somos temporais e o nosso tempo tem um limite. Por isso, mais importante que o tempo em si, seja ele o que for, é a forma como cada indivíduo vive e se realiza no tempo; dito de outro modo, mais relevante que o antes e do depois do movimento, é o tempo vivido no presente, trazendo consigo as memórias do passado, mas, sobretudo, projetado para o futuro. «Assim, a arte de viver humanamente consiste em, a partir do passado, viver com tal intensidade e dignidade o presente que se torna legítimo esperar a vida plena futura»221.

A este propósito, Batista Pereira alerta para a necessidade de «recon- siderar que os três modos passado, presente e futuro são inseparáveis do aparecimento do tempo e, além disso, do aparecimento de cada modo do tempo, isto é, há passado, presente e futuro no passado, há passado, presente e futuro no presente, há passado, presente e futuro no futuro»222. Assim,

da pessoa, em vez de procurá-la na “alma” presente desde o começo, o olhar, no quadro de uma lógica emergentista, deve, pelo contrário, orientar-se para o futuro: “para algo novo que se gera no processo, possibilitando ou forçando o salto para diante”» (A. BORGES, 1998, 32-33).

220 ID., Ibid., 11, 12. 221 ID., 2001, 146. 222 1988, 210.

o passado deixa de ser a fase que simplesmente precede o presente, mas é «um presente passado com o seu próprio passado e o seu próprio futuro». O futuro do passado constitui o «leque de possibilidades e de esperanças do presente atual», mas o presente atual não esgota nem coincide com o futuro do presente passado. «O potencial de futuro que se ergue do passado transborda para além das margens do presente». Do mesmo modo, «o futuro do presente, enquanto cenário atual de esperanças, temores, fins divergentes e possibilidades indetermináveis distingue-se do campo daquelas realizações futuras deste cenário, a que se chama presente no futuro [...], o futuro do presente rompe os diques do presente no futuro»223.

Daqui aduz, em tom crítico, o filósofo conimbricense «que a memória augustiniana como passado no presente é a seleção de algumas possibilidades apenas do presente passado e, por isso, o passado, enquanto memória, omite, ao presentificar apenas algumas possibilidades, a relação do passado ao seu passado e futuro próprios. Por isso, é necessário proceder a uma profunda diferenciação dos modos augustinianos do tempo. Enquanto Agos- tinho nas Confissões reduziu o tempo ao primado do presente – presente no passado, presente no presente, presente no futuro [XI xx 26] – observamos hoje que nenhum presente realiza o futuro do presente passado, cujos projetos superam sempre os resultados das nossas experiências. É que todo o presente recordado, experienciado ou a experienciar é transcendido sempre pelo futuro, tornado assim oriente de convergência de todas as diferenças temporais e fonte do tempo histórico, segundo a tese heideggeriana de

Ser e Tempo, ‘O fenómeno primário da temporalidade originária e autêntica

é o futuro’»224.

Posto isto, parece-nos inquestionável que o tempo, de certeza o cro- nológico, está associado à mudança – tudo está sujeito à mudança – e que, por isso, ele se torna visível e apreensível no movimento regular dos astros e dos relógios, que está, justamente, acordado com o anterior. No entanto, também nos parece inegável que cada ser humano tem em si uma certa capacidade interior de vivenciar e medir tempos, indepen- dentemente de movimentos externos. E mais importante que a consciência da duração e a capacidade de marcar ritmos e medir durações por comparação,

223 ID., Ibid., 210. 224 ID., Ibid., 210-211.

interiormente, é a narrativa temporal que guardamos na algibeira da mente, associada de certeza, de forma inescrutável, ao tempo cosmológico, mas transcendente a ele. Um tempo que para Agostinho é bíblico, porque cheio de sentido, de passado, presente e futuro, feito de promessa, profecia, sofri- mento e libertação, e não é apenas o ciclo aritmético e intemporal de gregos e estruturalistas. Deus e homem intervêm no tempo, transformando-o em história com o curso das suas vidas Eterna e temporais.

O tempo parece derivar, essencialmente, do facto de estarmos atentos à mutação, à sucessão que se ajusta matematicamente ao movimento cos- mológico, e de perfazermos um movimento que nos leva, em última e primeira análise, para a morte. Mas será o tempo apenas a mudança contada pela alma segundo o movimento regular externo? Esse tempo quantitativo ou cronológico nem sempre é regular e nem sempre se ajusta às nossas memórias e expectativas. Basta verificarmos que se viajarmos da Austrália para Portugal, ganhamos cerca de doze horas cronológicas, o tempo cro- nológico recua, mas, nem o prazo de vida aumenta nem ficamos mais novos, pois não recuamos no tempo que consome o nosso ser e que está associado à mudança; de facto, ninguém vence o tempo. Por outro lado, o tempo vivido, experienciado, não se confina a essas flutuações temporais. Poderíamos até parar, por um acordo mundial, a contagem das horas, mas não conseguiríamos estancar o fluxo temporal que nos arrasta, no qual vivemos, do qual temos uma perceção mental, mas, principalmente, com o qual cosemos retalhos de vida.

Assim, mais do que tempo, temos de falar em tempos: tempos que são vividos por cada ser de forma relativa e não linear; e tempo cosmológico ou cronológico, que se manifesta objetivamente nos movimentos regulares cíclicos e que, por isso, pode ser exatamente medido. Este último aparece relacionado com a mudança física, é autónomo, irreversível, linear, mas é pobre, valorizado apenas pela exigência humana de contar quantita - tivamente a sucessão do movimento em que se desenrola a sua vida. O tempo rico é aquele que é preenchido pela ação, pelo desejo, pelos projetos e pelas palavras humanas, uma flecha bidirecional, apontada tanto para a frente como para trás.

Finalmente, da experiência temporal conseguimos, de forma confusa, distinguir, para além deste tempo cosmológico ou tempo do mundo, rela- cionado com os movimentos físicos, condição ontológica de seres con-

tingentes em mudança e com uma existência a prazo, isto é, mutáveis para a morte, um tempo psicológico, humano ou vivido pela alma, feito de recordações e de expectativas existentes num presente de presença e de elocução. Qual a relação entre os dois? Cremos que é impossível defini- -la ou explicá-la objetivamente, porque o tempo envolve-nos, diziam os antigos, logo, não podemos sair dele ou pará-lo para o analisarmos de fora, em laboratório. Quase tudo o que se afirma em relação ao tempo também se pode rebater e infirmar, ele não permite certezas absolutas, já que não se deixa decompor empiricamente. Este é um dos fortes motivos que torna a proposta da solução poética de Ricœur, que iremos abordar nos próximos capítulos, original e fecunda.

Não saberemos se o tempo é infinito, se existe desde sempre, se come- çou a existir com o universo, se existiu um tempo vazio antes da criação, não saberemos se o próprio universo existe desde sempre ou não. Nem sequer saberemos o que é existir desde sempre, uma vez que essa categoria escapa-nos. “Sempre” é um advérbio de tempo que tem um sentido meta- fórico, pois desconhecemos qualquer realidade que o manifeste. Em vez de “sempre”, seria até mais lógico aplicar à eternidade o advérbio “nunca” – na terra do nunca não há tempo e os miúdos não crescem. Na verdade, grande parte da nossa discussão metafísica é insolúvel devido ao nosso saber exigir uma conceptualização. As nossas palavras traem-nos ao pas- sarmos do concreto para o abstrato, por isso, abstrair é sempre um risco. Abstrair a dimensão temporal a partir da condição humana é dar um salto gnosiológico para fora da nossa realidade; devemos ser humildes ao ponto de reconhecermos a falibilidade desse movimento, porque há questões que nos ultrapassam e para as quais nunca teremos respostas absolutas. Não obstante, estas temáticas não devem deixar nunca de merecer toda a nossa atenção e de interpelar o nosso espírito inquiridor. Assim se justifica a pertinência e a riqueza da proposta de Ricœur de uma redescrição “mítica” dos enigmas ontológicos da humanidade. Certos de que não há variações imaginativas, efeitos de sentido nem modos literários capazes de esgotar o mistério, somos animados pela esperança de que sirvam para clarificá- -lo e iluminem o fundo opaco da nossa existência, tornando-a mais inte- ligível.

MYTHOS