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1.   O NEXO MIMESIS-MYTHOS-KATHARSIS EM ARISTÓTELES

1.1   MYTHOS E MIMESIS

1.1.2   O mythos trágico

O enredo é o coração da obra poética e é tão importante que se é poeta mais pela habilidade de urdir uma trama do que pela produção de versos formosos. Não são os versos que definem ou caracterizam o mythos, é a mimesis de uma ação ou paixão humana, mediante palavras e carateres. Aristóteles dá primazia ao enredo trágico, relegando para segundo plano a comédia, a epopeia e outras formas de arte, que constituem no seu todo a arte poética, ou seja, as que recorrem apenas à linguagem em prosa ou em verso264. O capítulo VI pode ser considerado como o centro de

gravidade de todo o tratado, pois é aí que o autor abandona as considerações gerais sobre a mimesis e concentra a sua análise na poiesis trágica. A tragédia é definida como imitação de uma ação nobre e levada até ao fim, com uma certa extensão e composta por uma linguagem ritmada e harmoniosa, empregue separadamente, isto é, umas partes através de versos, outras através do canto; é caracterizada ainda por não recorrer à narração (apan-

gelia), mas consistir numa representação, por meio de personagens, que

através da compaixão e do temor realiza uma expurgação das paixões265. 264 «En effet, la poièsis est la seule à s’exprimer a travers d’un discours (lovgo"), alors

que la danse, la musique et la peinture peuvent être regroupées sous la ctégorie de l’agir. Par là, le plaisir esthétique qu’elle est susceptible de générer est plus raffiné que les émotions brutes dues aux autres formes de mimèsis: à cause de la médiation de la discursivité, le public doit faire un effort supplémentaire de mémorisation et de réflexion pour pouvoir à la fois suivre le déroulement de l’action, et de reconnaître les “types idéaux” qui y sont représentés» (KLIMIS, 119).

265 Cf. capítulo VI, 1449b 24-28: «ejvstin ou\n tragw/diva mivmhsi" pravxew" spoudaiva"

kai teleiva" mevgeqo" ejcouvsh", hJdusmevnw lovgw cwri;" eJkavstw tw'n eijdw'n ejn toi'" morivoi", drwvntwn kai ou di! ajpaggeliva", di! ejlevou kai fovbou peraivnousa th;n tw'n toiouvtwn paqhmavtwn kavqarsin».

Porém, mais importante que a significação é o fundamento que permite construir esta definição de tragédia, e que tem que ver com a articulação de partes: «É necessário, portanto, que toda a tragédia tenha seis partes pelas quais é definida. São elas: enredo (mythos), carateres (ethe), elocução (lexis), pensamento (dianoia), espetáculo (opsis) e música (melopoiia)» (1450a 7-9). Ao explicar em que consiste cada uma destas partes, o autor praticamente identifica mythos com mimesis, recorrendo ao verbo copulativo e correlativo estin: #estin de; th'" me;n pravxew" oJ mu'qo" h mivmesi"266,

– o enredo (mythos) é a imitação (mimesis) de uma ação (praxeos) –; e, em seguida, acrescenta: levgw ga;r mu'qon tou'ton th;n suvnqesin tw'n pragmavtwn– chamo aqui “enredo” ao agenciamento (ou composição) dos factos (1450a 4-5). A imitação ou representação da ação é colocada no mesmo plano do agenciamento dos factos, fazendo com que mimese e argumento apareçam correlacionados.

Esta quase identificação é corroborada, diz Ricœur267, por uma primeira

hierarquização das seis partes em que Aristóteles dá prioridade ao objeto da imitação – o argumento, carateres e pensamento – sobre o meio de representação – elocução ou expressão e composição musical ou canto – e sobre o modo de representação – o espetáculo. Numa segunda hie- rarquização dentro do “quê” ou objeto da representação, coloca-se a ação acima dos carateres e do pensamento. «De facto, toda a tragédia é [antes de mais] a imitação de uma ação (mivmesi" pravxew") e uma ação é levada a cabo por indivíduos que agem (uJpo; tinw'n prattovntwn), que necessa- riamente têm de ser de uma maneira ou de outra, segundo o seu caráter e pensamento (katav te to; h\qo" kai; th;n diavnoian)»268. Por isso, a tragédia, 266 «La idea básica de la mímesis o imitación de carateres, pasiones y aciones a través

de palabras, ritmo y melodía es de claro origen platónico. Para cerciorarse uno de ello no hay más que revisar los siguientes pasajes de la obra del divino filósofo: República 298d, 401d, 655a y 655d». «[...] Dos ideas fundamentales son de innegable cuño platónico, a saber: que la poesía es una mimesis de los hombres en acción y que los hombres dejan ver su caráter en la acción, revelando así a la postre o bien ser gente moralmente seria o de baja estofa. Véase Platón, República, 603c.». (LÓPEZ EIRE, 2002, notas 5 e 8, 113, 114).

267 TR I, 71

268 «ejpei de pravxewv" ejsti mivmhsi", pravttetai de uJpo; tinw'n prattovntwn, ou}"

ajnavgkh poiouv" tina" ei\nai katav te to h\qo" kai th;n diavnoian» (1449b 34-37). A tradução é da nossa responsabilidade. Optámos por uma tradução mais literal do texto aristotélico.

ao imitar uma ação, através dela, imita também os indivíduos que agem: «A tragédia é a imitação de uma ação e, através desta, principalmente dos homens que atuam»269. É que, se por um lado, a ação depende da

qualidade dos seus carateres ou da sua maneira de ser e dos seus pensamentos – «palavras por meio das quais demonstram alguma coisa ou exprimem uma opinião» (1450a 6) – por outro, estes elementos estão-lhe subordinados, pois ela é que é o objeto principal da mimese. Para que esta ideia fique clara e inequívoca, o seu autor reitera-a, ainda no mesmo capítulo VI:

«Mas o mais importante de todos é a estruturação dos acontecimentos [pragmavtwn suvstasi"]. É que a tragédia não é a imitação [mivmhsis] dos homens, mas das ações e da vida [oujk ajnqrwvpwn ajlla; pravxew" kai; bivou]; [...] Aliás, eles [os personagens] [mimhvswntai] não atuam para imitar os carateres [ta; hjvqh], mas os carateres é que são abrangidos pelas ações [pravxei"]. Assim, os acontecimentos [ta; pravgmata] e o enredo [oJ mu'qo"] são o objetivo [tevleo"] da tragédia e o objetivo é o mais importante de tudo. Além disso, não haveria tragédia sem ação [pravxews], mas poderia haver sem carateres» (1450a 16-24).

Uma tragédia rica em carateres, mas pobre em ação não cumpre o seu fim próprio e específico da expurgação ou katharsis das emoções. Não restam, pois, dúvidas de que a praxis – intrínseca e mutuamente impli- cada no mythos – é a parte principal, o objeto visado, o princípio e, talvez possamos dizer, a alma da tragédia270. Fica, doravante, excluída qualquer

interpretação da mimesis aristotélica como cópia ou réplica271.

Explicámos que a ação (praxis) é o objeto da atividade mimética, mas a mimese, por sua vez, também é uma construção, uma organização

269 «ejvstin te mivmhsi" pravxew" kai; dia; tauvthn mavlista tw'n prattovntwn» (1450b

3-4). «Ya Platón en la República (603c) se refiere a la mimética como el arte que imita esas aciones de los hombres que alegran o entristecen. Lo más importante de la tragedia es el argumento porque la mímesis en que consiste es la mímesis de una acción y porque los personajes son accidentales. (LÓPEZ EIRE, 2002, nota n.º 14, 117).

270 «Au terme de cette double hiérarchisation, l’action apparaît comme la partie principale,

le but visé, le principe et, si l’on peut dire, l’âme de la tragédie (RICœUR, TR I, 71).

271 «L’imitation ou la représentation est une activité mimétique en tant qu’elle produit

quelque chose, a savoir précisément l’agencement des faits par la mise en intrigue» (ID.,

dos factos, pela correlação que Aristóteles estabelece entre mimesis e mythos (hJ mivmesi" oJ mu'qo" th'" pravxew" #estin). A instrução aristotélica consiste na construção do mythos, o agenciamento dos factos, como o objeto da

mimesis. A poesia trágica é, com efeito, um fazer, é um fazer que representa

outro fazer272. Simplesmente, o fazer mimético não é efetivo ou ético, é

inventado ou poético. É que «no interior da mimesis desenvolve-se uma tensão entre a submissão à realidade da ação humana e o trabalho criador, que é a poesia em si mesma, porque o real da referência mimética não é algo cristalizado e inerte, de que só seria possível uma cópia, mas o reino da natureza enquanto fonte dinâmica e criadora, de que só há mimesis quando também se cria. Por isso toda a poesis é mimética e toda a mimesis é poética»273. Assim, «ela mantém simultaneamente uma proximidade com

a realidade e a distância efabuladora, que permite magnificar as ações imi- tadas»274.

1.1.3  As constrições do mythos e o privilégio do modelo trágico