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OUTRAS LEITURAS DA TEORIA AGOSTINIANA DO TEMPO

3. TEMPO COSMOLÓGICO E TEMPO PSICOLÓGICO

3.2   OUTRAS LEITURAS DA TEORIA AGOSTINIANA DO TEMPO

Parece-nos honesto e oportuno assumir aqui que não há consenso relativamente à crítica da visão agostiniana do tempo. Há quem considere que a sua teoria não representa nenhuma oposição ao tempo cosmológico de Aristóteles, pois, para além de o pressupor, não faz depender exclu- sivamente o tempo da alma. Num artigo publicado nos últimos anos do século XX, Gerd Haeffner202reinterpreta de modo diferente as considerações

de Agostinho acerca da relação entre tempo e movimento e medida do tempo. Comecemos pela primeira questão. Por um lado, Agostinho, numa oração dirigida ao Criador do tempo, parece contradizer a crítica que lhe fazemos de fazer depender o tempo exclusivamente da alma, pois concede ao tempo um ser próprio, objetivo e físico, anterior aos seres que se movem: «Id ipsum tempus tu feceras, nec praeterire potuerunt tempora, antequam faceres tempora» (XI, xiii, 15). Já por outro lado, afirmando que o tempo não pode existir sem a criatura, parece fazê-lo depender exclusivamente da alma criada: «Videant itaque nullum tempus esse sine creatura» (XI, xxx, 40). As coisas tornam-se mais claras, no ponto de vista de Haeffner, no livro XII do De Ciuitate Dei, onde o autor cristão distingue dois sig- nificados de tempo. O primeiro é o que habitualmente o senso comum considera que é o tempo, aquele que é lido no movimento dos corpos celestes e noutros movimentos regulares que servem de relógios: os dias, os meses e os anos. O segundo refere-se àquele que é constituído pela

202 Vide Gerd Haeffner, “Anotações à pergunta agostiniana sobre a essência do tempo

no Livro XI das Confissões” (trad. do alemão por Manuel Losa), Revista Portuguesa de Filosofia, 44, 1998, 81-97.

movimentação interior da alma. No entanto, esclarece ele, o primeiro só pode existir dependente do segundo, pois, reafirma o autor, nenhum tempo pode existir completamente onde não existe nenhuma criatura em cujos movimentos os tempos passem: «Vbi enim nulla creatura est, cuius muta- bilibus motibus tempora peragantur, tempora omnino esse non possunt» (De Ciuitate Dei XII, xvi, 77-79).

Será que o autor pretende afirmar que o tempo só existe “na” alma ou até só “através” da alma, excluindo as modificações exteriores percetíveis? Haeffner argumenta no sentido de demonstrar que a teoria agostiniana do tempo não é psicologista, segundo a qual o tempo seria um produto da alma, que a projeta no mundo real, mas sim relacional, na medida em que a alma nunca mede o tempo imediatamente por si mesma, mas sim tendo sempre como comparação a duração de outro movimento objetivo, ainda que não cósmico ou regular. Agostinho não recorre a exemplos tirados do âmbito dos movimentos cósmicos, da terra ou das máquinas, mas vai aos contextos musical e retórico, ou seja, ao mundo fugidio dos sons. Todavia o que se passa com estas coisas pequenas estende-se também às grandes. É assim que Haeffner interpreta a súplica de Agostinho: «Deus, dona hominibus uidere in paruo communes notitias rerum paruarum atque magnarum» (XI, xxiii, 29). E, portanto, «[…] é sempre da duração articulada de processos sensíveis e corpóreos que se trata. Quando se mede a duração temporal de um desses processos (parciais), a alma nunca o faz imediatamente por si mesma, mas sim tendo em vista a duração comparável de outro processo verificado objetivamente. A perceção e determinação de uma dura- ção («de um tempo»), seja ela numericamente exata ou apenas aproximativa, é sempre um comparar (e a esta comparação não pode ser colocada como base nenhuma unidade de tempo absoluta203): “… quia et quantum cum

dicimus conlatione dicimus, uelut: tantum hoc, quantum illud aut: duplum

hoc ad illud” [… porque também quando dizemos «quanto», dizemo-lo

por comparação, como por exemplo: Isto durou tanto tempo quanto aquilo,

203 Esta afirmação de Haeffner é inferida do que diz Agostinho no livro XI, xxvi, 33,

a propósito do exemplo da recitação dos versos, na qual é impossível encontrar uma medida exata para o tempo, uma vez que se pode acelerar ou arrastar essa recitação: «sed neque ita comprehenditur certa mensura temporis», isto é: «mas nem assim se apreende uma medida exata do tempo».

ou: Isto durou o dobro daquilo (XI, xxiv, 31)]»204. Em suma, a medição

não se faz com base numa unidade de tempo absoluta, mas através de uma comparação. Por este facto, conclui Haeffner que o conceito agostiniano de tempo é relacional, «na medida em que para ele “tempo” é o mesmo que “de cada vez um tempo”; “tempus” é, no seu vocabulário usual, pri- mariamente não singulare tantum, mas sim o singular de “tempora”205.

Se o conceito de tempo é relacional, também é objetivo, logo, não faz sentido falar de conceção psicologista do tempo em Agostinho. Assim, o autor trata de tirar do domínio fechado da alma a medição do tempo futuro e do tempo passado. A expectatio e a memoria não são entendidas como um acontecimento da alma, mas como uma referência intencional ao tempo objetivo, ou seja, uma sensação interior, subjetiva. Deste modo conclui o autor que «não se é obrigado a atribuir a Agostinho tal tese psicologística. O tempo – é esta a sua tese – não existe, realmente, sem a alma e, nessa medida, só “nela”, mas em caso nenhum só “por meio” da atividade da alma. É que a sua função “constitutiva” para o tempo pressupõe relações de tempo que, de algum modo, já existem objetivamente, coisa que Agostinho exprime ao afirmar que os tempos são criados por Deus»206.

Provavelmente, Ricœur não discordaria totalmente de que o conceito agostiniano de tempo é relacional, que ele pretende medir o tempo com- parando durações, mas ressalvaria o facto de se tratar da comparação de

affectiones, imagens gnosiológicas, e não movimentos físicos. A alma con-

tinua a precisar do movimento para calcular o tempo com exatidão, mas é capaz de medir um intervalo de tempo sem o auxílio de nenhum movimento externo. Haeffner, porém, parece ignorar o que diz Agostinho sobre a impres- são que as coisas deixam ao passarem na alma: «Meço a impressão (affec-

tionem) que as coisas, ao passarem, gravam em ti e que em ti permanece

(manet) quando elas tiverem passado, e meço-a, enquanto presente, e não as coisas que passaram, de forma a que essa impressão ficasse gravada» (XI, xxvii, 36). A impressão é pois, a nosso ver, o elemento fixo que

204 HAEFFNER, 90. 205 ID., 90. 206 ID., 92.

permite comparar os tempos longos e os tempos curtos, ideia com a qual Haeffner não concordaria, uma vez que, para ele, Agostinho não considera nenhuma unidade fixa de tempo. Assim, nunca se colocaria a questão de Ricœur de saber que acesso direto podemos ter às impressões que residem no espírito nem como é que a affectio é uma medida fixa pois, para ele, a unidade de medida do tempo de que fala Agostinho não é a affectio, mas o movimento de coisas objetivas, que evidenciam um tempo com existência própria.

Também J. Reis nota que a teoria psicológica agostiniana de tempo depende da pressuposição de um tempo cosmológico, pois a imagem-meio, de que já antes falámos, não é um produto da alma, mas é antes a impressão gravada nela pelos vestígios exteriores, ou seja, vestígios provenientes do tempo cosmológico. E assim, acrescenta J. Reis, «o verdadeiro tempo não é afinal o psicológico mas o cosmológico, o tempo do movimento dos corpos, particularmente o dos astros porque é esse que, contínuo, uniforme e visível a todos, foi tomado por padrão de referência. Por isso vimos o nosso Autor dizer que “onde nenhuma coisa vem ou passa” não há tempo; por isso vimos que este foi criado e há de acabar com o universo; por isso vimos, todas as vezes que ele fala do tempo como independente dos movimentos, que ele invoca ao fim e ao cabo o espaço-de-sucessão a vazio que, atarefados com as nossas ações, fica do voltarmos as costas aos astros que se movem»207. E continua, dizendo que a memória é o que em nós

fica da passagem das coisas, as quais não são produzidas por nós, mas as próprias coisas existem por si, com uma extensão ou movimento próprio, e através da perceção deixam em nós a imagem-meio que nos permite invocar a imagem objeto. «O passado e o futuro gnosiológicos são assim apenas “duplos”, “representações” no sujeito do tempo objetivo, exterior, o verdadeiro tempo. […] em Agostinho o tempo que é agora o seu ponto de partida é ao fim e ao cabo esse mesmo tempo cosmológico [o produzido pela Alma plotiniana], e o tempo da alma, o tempo a que a teoria o conduz não é senão, no seio da teoria geral do conhecimento em termos de repre- sentação, o “espelho” dele, o “conhecimento” que dele temos»208.

207 355. 208 ID., 355.

Ricœur tem uma leitura da argumentação agostiniana que resulta num fechamento do tempo exclusivamente na atividade da alma. Haeffner e J. Reis, apesar de reconhecerem o pendor substancialmente psicológico da doutrina, admitem uma interação com o tempo físico. O primeiro crê que a medida do tempo se faz por comparação com movimentos desse tempo objetivo externo e o segundo refere que é o tempo que passa “pela” alma e não é, portanto, uma iniciativa do sujeito. Por isso, «o tempo da

alma em Agostinho não só não é o tempo, como não é algo que lhe seja

essencial»209. De facto, não é fácil determinar categoricamente se a conceção

agostiniana pressupõe ou não um tempo físico, objetivo. A sua reflexão do livro XI aponta claramente no sentido de um tempo apenas circunscrito ao movimento de distensão e intenção da alma, mas o mesmo livro, nos primeiros capítulos, dedicados às questões da criação e da origem do tempo, fala de um tempo criado com o universo, logo, um tempo físico. Se por um lado toda a sua argumentação parece esforçar-se por separar radicalmente o tempo de qualquer realidade cósmica ou física, para o situar unicamente no domínio psicológico; por outro, da sua análise, também se pode depreender a existência latente de um tempo ôntico, independente das criaturas. Agora, o que nos parece claro é que Agostinho não estabelece relação alguma entre os dois tipos de tempo. O tempo da alma agostiniano, ao invés do que pensa Haeffner, é autónomo e fechado em si próprio.

Em relação a J. Reis, para além de tudo o que já dissemos anteriormente, não sabemos até que ponto é que a denúncia de um tempo cosmológico subjacente à doutrina agostiniana não se confunde com o seu anseio de afirmação exclusiva desse mesmo tempo e a erradicação de um tempo psicológico que julga uma aberração filosófica.

No entanto, reconhecemos que Agostinho nem sempre foi suficien- temente claro e, como se depreende desta análise, é possível encontrar afirmações suas que contradigam algumas interpretações definitivas com que ao longo dos séculos se tem etiquetado o seu pensamento. Mas isso

209 ID., 355. De facto, J. Reis revela-se um acérrimo aristotélico. A alma não tem influência

alguma na nossa vivência temporal, logo, está fora de questão falar de tempo psicológico, porque esse não existe. O tempo, para este pensador, já existe nas próprias coisas, objetivamente, sem o concurso do sujeito.

mesmo concorre para a riqueza da sua obra: cada abordagem faz emergir novas ideias e novos paradoxos, o que evidencia um trabalho sempre ina- cabado e bastante fértil. No fundo, estas anotações de Haeffner e de J. Reis são mais um contributo para a complexidade da questão do tempo em Agostinho. Seguramente, o seu pensamento, exposto no livro XI das

Confissões, permite várias leituras, pelo facto mesmo que nem sempre é

fácil seguir o emaranhado da sua argumentação ou porque o autor nem sempre é explícito, deixando alguns raciocínios em aberto. Vimos mesmo como algumas das suas asserções não passam de meras hipóteses argu- mentativas levantadas com o propósito de demonstrar, precisamente, a ideia contrária. É, sobretudo, nos últimos capítulos do livro que o seu pensamento aparece sistematizado com mais segurança; os capítulos anteriores são acima de tudo esboços que o ajudam a alcançar as grandes conclusões finais que aparecem expostas entre os capítulos XXVII, 36 e XXX, 40.

Uma última e breve palavra para compararmos a relação entre as dou- trinas de Agostinho e de Plotino. Constata-se que a teoria agostiniana, apesar de ter pontos de contacto com a plotiniana, principalmente, ao nível dos conceitos, diverge dela na essência. A conceção de Plotino é, sobretudo, metafísica, porque para ele o tempo existe independentemente da alma que o percebe. O tempo é uma distensão da vida da Alma, expressão também usada por Agostinho, mas o grego fala da Alma universal e criadora, não da alma humana individual. Esta, não tendo em si mesma os objetos, é obrigada a dirigir-se intencionalmente para a Inteligência a fim de os obter. É neste movimento de si para o seu fundamento, para a Mãe que a sustém, que está a sua distensão. A distensão é o que vai da carência ou nada desta Alma à posse ou presença de ser, isto é, a própria constituição do presente. Logo, «esta distensão passa-se muito mais na “dimensão ontológica” do que na “dimensão de sucessão” e, por isso mesmo, a sucessão que nela ainda há é ao nível do presente contínuo que se processa e não ao nível do passado e do futuro»210. Assim, afirma Plotino, «a distensão da

Alma ocupa tempo»211. A parte desta vida que avança ocupa a cada momento

um tempo novo, enquanto a sua vida passada ocupa o tempo passado.

210 J. REIS, 354.

Para além disso, Agostinho entende esta atividade como medida do movimento e Plotino considera-a, principalmente, causa do movimento. Os dois afirmam que esta atividade da alma não tem extensão física, porém, Plotino afirma que o tempo apresenta extensão fora da alma porque ele não é a própria vida da alma, mas simplesmente essa vida considerada a partir do movimento no universo sensível, logo trata-se de um tempo cosmológico. Assim sendo, a sucessão dá-se no tempo. A Alma é permanente e eterna, mas o tempo está sujeito à mudança constante.