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2.2   A ESSÊNCIA DO TEMPO

2.2.1.1   O tríplice presente

Esta ideia «clara e transparente» acerca do tempo impõe, a partir de agora, uma retificação de ordem terminológica, que vai resultar no conceito de um tríplice presente. Não existem três tempos, passado, presente e futuro, mas sim três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.

«Não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas (praesens de praeteritis), o presente respeitante às coisas presentes (praesens de praesentibus), o presente respeitante às coisas futuras (praesens de futuris)» (XI, xx, 26).

Neste sentido, é justo dizer que o tempo não pode ser medido no seu ser objetivo, mas uma análise psicológica precisa demonstrará que o verdadeiro ser do tempo se situa na alma humana que, através da memória e da expectativa que nela são presentes, se estende sobre o passado e sobre o futuro. Apesar de o essencial estar dito, Agostinho não termina

assim a sua análise. Para já, suspende esta ideia, que surge de certa forma em antecipação, guardando-a para a explicação final da essência do tempo, onde terá de aparecer como resultado de uma raciocínio mais esclarecido e minudente102.

«Existem na minha alma (in anima103) estas três espécies de tempo

e não as vejo em outro lugar (alibi ea non uideo104): memória (memoria)

presente respeitante às coisas passadas, visão105(contuitus) presente respeitante

às coisas presentes, expectação (expectatio) presente respeitante às coisas futuras. Se me permitem dizê-lo, vejo (uideo) e afirmo (fateor) três tempos, são três» (ibidem).

Inicialmente, relembremos, Agostinho partiu das garantias da lingua- gem, abonadoras da existência de tempo passado, presente e futuro, para afirmar positivamente a realidade temporal, porém, através de um exercício, poderíamos dizer, de raciocínio lógico-matemático, acabou por infirmar e contrariar esta segurança proveniente da experiência e da ação humana. Deste modo, concluiu que a linguagem é impotente para explicar o que afirma. No entanto, ao transferir a questão da linguagem para a consciência, ou seja, ao colocar o passado e o futuro no presente, por intermédio da memória e da expectação106, acaba por salvar essa certeza inicial, assegurada

pela linguagem, de que são estes dois tempos que nós medimos. É esta operação que lhe permite afirmar, novamente, que são três os tempos. A visão (uideo) e o reconhecimento (fateor) são os seus garantes e constituem realmente um núcleo fenomenológico para toda a análise107.

O autor alerta que não se importa que se continue a usar estas expressões inexatas, que aprendemos em crianças, para referir os três modos de tempo,

102 Cf. supra, nota 87. 103 Cf. supra, nota 98. 104 Cf. supra, nota 98.

105 Mais à frente, o autor proporá o termo “atenção” em vez de “visão”, termo que contrasta

melhor com a distentio.

106 Utilizamos o termo expectação como tradução do substantivo expectatio. Expectação

tem um sentido passivo. Mais à frente, Agostinho dirá que o espírito expectat. Essa atividade da alma traduzi-la-emos por expectativa. A. Espírito Santo segue o mesmo critério.

107 Como bem notou J. Guitton, Agostinho chega a estas conclusões com a passagem

contanto que se entenda o que se diz: «não existe agora aquilo que está para vir nem aquilo que passou» (ibidem). Após este esclarecimento impor- tante, não é mais possível voltar a cair na ilusão de um passado e de um futuro que existiriam onticamente. O passado e o futuro são gnosiológicos e existem no presente como imagens dos respetivos tempos. O objeto de estudo fica, a partir de agora, bem mais definido: vai consistir na deter- minação do modo de existência do passado e do futuro na consciência presente. Contudo, antes, será ainda necessário definir este presente do presente, que é a sede de todas estas investigações.

Aproveitemos a ocasião, antes de partirmos para o tópico seguinte, para fazermos a sinopse deste percurso intelectual empreendido por Agos- tinho em busca de uma explicação para o tempo. Salientamos alguns avanços fundamentais, concretamente, depurações importantes ao nível do significado e da essência do tempo. O tempo foi-nos apresentado, inicialmente, em contraste com a eternidade divina, como a duração que traduz o modo de ser contingente, próprio da criatura e que manifesta a sua incapacidade para ser em plenitude ou o seu défice ontológico. Em seguida, o ser do tempo revelou-se, paradoxalmente, como uma negatividade: um ser que se define pela sua tendência para não ser. Mas, eis que surge um elemento positivo: é no espírito que o tempo existe verdadeiramente como tríplice presente e é aí que a sua negatividade é dominada; a consciência, através da memoria, do contuitus e da expectatio, vê-se com capacidade para ultra- passar o tempo no momento em que o percebe, sendo este o primeiro esquisso da solução final que aparecerá desenvolvida mais à frente. Efe- tivamente, o ser do tempo não está ainda totalmente desvelado, só uma análise mais precisa das condições da medida do tempo conduzirá a um resultado definitivo. Enquanto não se esclarecer o enigma da medida do tempo, que ficou pendente, a solução do ser e do não-ser do tempo pela noção de um tríplice presente permanece mal fundamentada108.

108 «Le triple présent n’as pas encore reçu le sceau définitif de la distentio animi, tant

qu’on n’as pas reconnu dans cette triplicité même la faille qui permet d’accorder à l’âme elle- même une extension d’une autre sorte que celle qu’on a refusé au présent ponctuel. De son coté, le langage quasi spatial lui-même reste en suspens tant qu’on n’a pa privé cette extension de l’âme humaine, fondement de toute mesure du temps, de tout support cosmologique» (RICœUR,