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Modos de existência no tempo e na eternidade

Na obra De Genesi ad Litteram, escrita alguns anos depois das Con-

fissões, Agostinho havia de retomar esta temática. Mais modesto, o autor

cristão reconhece, tal como nós hoje reconhecemos, que a criação em si é uma questão obscura e misteriosa. Todavia, ele acha que é possível penetrar de alguma forma no ato criador, tentando discernir e identificar os vários modos da ação divina. Expõe, então, a famosa e interessante teoria das razões seminais, herdada dos estoicos, onde defende que as coisas podem existir de três maneiras diferentes. Podem subsistir eternamente no Verbo de Deus e na sua misteriosa presciência73, como já afirmara nas Confissões;

ou, em alternativa, Deus, num momento escolhido por si, faz passar a ato o que guardava no seu segredo eterno. Assim se explicaria a existência temporal, a única à qual temos acesso pelos sentidos74. Neste caso, na

eternidade de Deus, já não há só conhecimento da realidade temporal

70 «Nimirum enim caelum caeli, quod in principio fecisti, creatura est aliqua intellectualis,

quamquam nequaquam tibi, trinitati, coaeterna, particeps tamen aeternitatis tuae, ualde mutabilitatem suam prae dulcedine felicissimae contemplationis tuae cohibet et sine ullo lapsu, ex quo facta est, inhaerendo tibi excedit omnem uolubilem uicissitudinem temporum» (XII, ix, 9).

71 139.

72 Apud ID., 141.

73 De Gen. ad litt., V, 28; VI, 17-19; Apud J. GUITTON, 143. 74 De Gen. ad litt V, 28; Apud ID., 143.

“ad-vir”, mas há também vontade de a fazer existir. Fica por explicar como é que se faz a passagem da existência em Deus para a existência temporal. Como é que a criatura pode proceder do criador sem lhe ser coeterna. O terceiro modo de existência possível pretende ser uma resposta a este problema. As coisas, para além de poderem existir de uma maneira eterna e temporal, podem ainda existir, potencialmente, nas suas razões causais ou seminais, ou seja, numa espécie de sementes primordiais, com capacidade para se desenvolverem e originarem vida, o próprio ser humano seria o fruto de tais sementes. Deus, num primeiro instante, teria criado o universo vivo de uma forma invisível, causal e potencial, projetando e depositando fora de si próprio a ordem dos desenvolvimentos futuros, não sob a forma de intervalos temporais, mas sob a forma de conexões causais. Assim se explica a origem da matéria informe, mas formável, de onde se tirou mais tarde a criatura espiritual e a criatura corporal75. Teríamos assim uma

criação, simultaneamente, completa e inacabada. Completa porque nada de novo lhe pode acrescentar o fluir dos tempos, mas inacabada porque contém, no seu princípio, apenas as sementes que o futuro fará desabrochar. «[...] le monde s’enfanfe, il est chargé des causes de toutes les naissan- ces futures. En créant les raisons causales, Dieu achevait en un certain sens son œuvre: le temps allait faire paraître ce qui était donné dès le principe»76.

Esta perspetiva original de Agostinho coloca-nos às portas, ainda que de forma algo rudimentar, teórica e discutível, da teoria evolucionista, podendo servir para conciliar o dogma cristão com o evolucionismo. Estamos em crer que Darwin e a ciência contemporânea haveriam de reconhecer algumas pertinências a esta teoria. Contudo, acautela J. Guitton: «on ne gagne pas beaucoup en général à faire intervenir les maîtres d’autrefois dans les conflits suscités par les dernières découvertes de la science: ces tentatives conduisent si facilement à abuser de textes isolés et de ressem- blances lointaines»77. Barbosa tem uma opinião semelhante: «o facto de

não haver no augustinismo uma determinada explicação dos fenómenos

75 De Gen. ad litt. V, 12-13; Apud ID., 144. 76 J. GUITTON, 144.

físicos é ainda uma das suas vantagens, pois coloca o domínio da sapiência ao abrigo das flutuações da experiência e do progressivo avanço cientí- fico»78.

O facto de tudo já estar potencialmente predefinido desde o início nas razões causais anula a intervenção de Deus no mundo, mas a Bíblia, pelo contrário, sugere que Deus age na vida dos homens de forma impre- visível. Como conciliar intervenção divina ao longo dos tempos com razões seminais? Agostinho explica que as razões seminais não são sementes que podemos ver com os olhos, mas propriedades invisíveis que conferem à matéria uma capacidade limitada de transformação. No princípio, as coisas não têm diante de si um número ilimitado de possibilidades de modificação, cada espécie recebeu aptidões definidas. Deus guardou para si, na sua von- tade, algumas causas de metamorfoses futuras. Esta teoria leva o autor a concluir que há dois tipos de futuro: há seres futuros que deverão obri- gatoriamente advir das sementes e há outros que poderão advir dessas mesmas sementes se a omnipotência de Deus intervier. As causas que Deus confiou à criatura indicam as suas vias possíveis de desenvolvimento. As que Ele reservou para si próprio acontecerão, na hora oportuna79. Deus

não tinha deposto a graça nas causas naturais, Ele tinha-a guardado em Si Próprio, mas esta explicação do filósofo cristão permite conceber a inserção da graça na natureza. Para além de legitimar as preces dos crentes e a confiança num Deus solícito, o autor cristão liberta o futuro de deter- minismo, deixando-o aberto para um número ilimitado e nem sempre pre- visível de possibilidades. Acrescenta surpresa ao futuro e eleva-o à categoria de esperança, mas este acrescento de imprevisibilidade e de esperança está dependente da vontade de Deus80. O ser humano não saberá fazer mais

do que realizar um vasto conjunto de possibilidades que a sua natureza permite. Resta saber qual é o seu limite.

78 14.

79 Cf. De Gen. ad litt. IX, 32; Apud ID., 145.

80 A noção de razão seminal é da autoria de Plotino e dos estoicos, mas Agostinho dá

um sentido novo e divergente ao conceito. Para Plotino, as razões eram partes da alma universal, donde tinham saído e continham em si tudo o que se iria desenvolver no espaço e no tempo, roubando assim à criatura toda a novidade e espontaneidade. Em Agostinho, ao contrário, esta teoria torna a criação mais inteligível. As razões seminais são o laço que une o universo a

Atualmente, com todos os avanços das ciências naturais, algumas destas questões perderam relevância e até nos podem parecer ridículas e desprovidas de sentido. No entanto, elas revelam o génio persistente e intelectual de Agostinho que, a séculos de distância das descobertas mag- níficas da ciência atual, tentou à sua maneira, e de forma especulativa, dar credibilidade filosófica a um texto que não é mais do que um poema de fé num Deus criador. Hoje só se pode ler e interpretar o livro do Génesis em sentido figurado, o seu objetivo é o de afirmar a autoria de Deus na criação81. Contudo, a criação universal está aí e não sabemos quando e

como é que começou, se é que começou, e o tempo continua um mistério por decifrar, não temos explicações finais, apenas teorias. Algumas destas questões abordadas pelo Hiponense permanecem e talvez permaneçam para sempre em aberto.

Agostinho apresenta as suas propostas, umas mais aceitáveis e inte- ressantes que outras. Todavia, a sua conceção de criação é inovadora para a época, fruto da tradição hebraica na qual é alimentado pelo cristianismo. Para os judeus, Deus é um ser livre e todo-poderoso. Toda a criação depende d’Ele sem que Ele dependa dela. Esta relação de dependência absoluta, unilateral e não recíproca leva à noção de criação temporal e a partir do nada, pois nada há fora de Deus que limite o seu poder, proclamam as Sagradas Escrituras. Esta crença na criação, num Deus autor das coisas

Deus e o infinito ao finito. «Si on les regarde en Dieu, à leur origine prémière, elles sont le terme de l’acte créateur. Si on les considère dans la créature, elles y demeurent comme le signe de la poussée créatrice. En transmettant à l’être la puissance de se reproduire suivant son type, elles confèrent aux causes secondes, qui les véhiculent, leur véritable efficience. De cette manière l’action créatrice est toujours et partout présente; elle pénètre les natures individuelles, elle apparaît dans leurs éléments les plus menus, dans les phases les plus insignifiantes de leur histoire» (J. GUITTON, 147).

81 Os autores semitas que redigiram os velhos textos do A. T. não possuíam a linguagem

precisa de que o pensamento helénico dispunha, logo, optaram por escrever narrativas metafóricas. Efetivamente, não foram capazes de traduzir filosoficamente o que a sua crença tinha como dogma revelado e viram-se obrigados a recorrer à linguagem figurada. «L’idée d’un Dieu unique ne pouvait se traduire, dans ces premiers temps, que sous des métaphores palpables, toutes proches de la sensation et de l’image» (J. GUITTON, 152). Coube aos primeiros intelectuais convertidos ao cristianismo, que dominavam conceitos helénicos, verter para filosofia e teologia os escritos bíblicos. Um dos pensadores cristãos mais proeminentes na adaptação da linguagem bíblica ao rigor filosófico helénico foi, precisamente, Agostinho.

e salvador dos homens foi a condição básica para a experiência da conversão agostiniana, e esta conversão, por sua vez, impeliu o pecador a valorizar substancialmente a questão do tempo82.