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1.   O NEXO MIMESIS-MYTHOS-KATHARSIS EM ARISTÓTELES

1.1   MYTHOS E MIMESIS

1.1.5   Mythos como discordância

Podemos, legitimamente, questionar-nos como é que o mythos se pode apresentar como solução poética do paradoxo especulativo do tempo, se não inclui nenhuma característica temporal, porque é unicamente determinado pelo nexo lógico e não cronológico. Mas isto é possível na medida em que a teoria aristotélica do mythos trágico não acentua apenas a concordância, mas, de um modo subreptício, subentende o jogo de discordância no seio da própria concordância narrativa. Este subentendimento permite a Ricœur dizer que o modelo trágico não é só um modelo de concordância, mas de concordância discordante. A discordância provém de episódios que des-

francês parece querer reafirmar que a narrativa não se ocupa das formas inimitáveis e inacessíveis ao sentido estético e criativo do ser humano, mas representa a realidade social quotidiana, aquela na qual estamos inseridos e que faz parte do nosso conhecimento prático ético-político. Segundo Aristóteles, é neste contexto que se encontram os universais filosóficos e não no inalcançável “ultramundo” platónico. As ideias de Bem e de Belo não estão fora do nosso alcance, mas estão presentes na própria ação humana. Camões exprime esta mesma convicção com a bela alegoria da Ilha dos Amores, onde até mesmo o desventurado Leonardo, depois de muito correr, alcança a magnífica ninfa Efire, «exemplo de beleza». A parede que, segundo Petrarca, cons- tantemente se erguia entre a espiga e a mão, fica assim derrubada (cf. Camões, Lusíadas, IX, 75-82).

306 «Composer l’intrigue, c’est déjà faire surgir l’intelligible de l’accidentel, l’universel

pertam temor e compaixão, efeitos surpresa, mudanças de fortuna em infor- túnio, peripécias, efeitos violentos, emoções trágicas. Só assim a concordância discordante do modelo trágico contrasta, por transposição, com a discordância concordante da experiência temporal pensada por Agostinho307.

Aristóteles não fala diretamente da discordância, mas trata o tema, subtilmente, sob o título de intriga complexa e intriga simples, onde refere os termos nucleares de peripécia e reconhecimento, responsáveis pela dis- cordância de que falamos.

No capítulo X, o autor divide a intriga (mythos) em duas classes: a intriga simples e a intriga complexa, dependendo esta classificação das ações que cada uma delas mimetiza, sendo que o critério diferenciador é a presença ou a ausência de peripécia e/ou reconhecimento, inversões fundamentais num argumento trágico. A intriga simples imita uma ação

simples, aquela ação cuja mudança de fortuna se produz sem peripécia

nem reconhecimento. A intriga complexa imita uma ação complexa, ou seja, uma ação da qual advém uma mudança de fortuna com reconhecimento ou com peripécia ou simultaneamente com ambas. Também aqui o mythos exige um nexo de sucessão entre os acontecimentos representados, por isso, Aristóteles adverte: o reconhecimento e a peripécia devem estar impli- cados ou consubstanciados no próprio corpo narrativo, como consequência da necessidade ou segundo a verosimilhança308.

307 «Le modèle tragique n’est pas purement un modèle de concordance, mais de concordance

discordante. C’est par là qu’il offre un vis-à-vis à la distentio animi» (TR I, 86). A propósito da importância destes elementos discordantes para a progressão da narrativa, sublinhe-se que «uma das características que permite que um acontecimento possa ser um componente da narrativa é o facto de ele criar um efeito de rutura na sequência, produzindo uma verdadeira progressão na continuidade da história. Sem esta novidade a narrativa não poderia progredir, logo a atividade de ordenação e configuração do mythos trágico consiste, já segundo o Estagirita, na descrição das inversões da fortuna em infortúnio. A ordem de começo, meio e fim, criada pela intriga, é sempre marcada pela discordância concordante (sempre falhada pela racionalidade narratológica de tipo estrutural) que, para ser entendida leva tempo, logo só pode ser temporal» (M. L. POR- TOCARRERO, 2005, 64).

308 «Dès lors, il semble évident que la tragédie complexe constitue le “type idéal” de

la tragédie pour Aristote. Etant donné que la péripétie et la reconnaissance constituent ses carac- téristiques essentielles [... car elles sont] les articulations combinatoires sans lesquelles le mythe tragique ne pourrait pas exister» (KLIMIS, 48).

No capítulo XI, Aristóteles define peripécia, reconhecimento e pathos. Peripécia (peripeteia) é uma inversão do rumo dos acontecimentos, segundo a verosimilhança e a necessidade. Em qualquer tragédia, como na ação que imita, ocorre necessariamente uma mudança (metabole ou metabasis) no curso dos acontecimentos. Esta mudança é uma ação destrutiva do herói, contrária ou indiferente à sua vontade. Inicia-se quando o herói se apercebe da inversão do sentido dos acontecimentos (peripécia) e reconhece a verdade dos factos que o envolvem (reconhecimento). A metabole é, pois, o processo que permite à ação trágica passar da ventura ao seu contrário, ou seja, à desventura. No Rei Édipo, por exemplo, a peripécia é desencadeada com a chegada do mensageiro de Corinto que vem para tranquilizar Édipo. Todavia, ao revelar-lhe a sua verdadeira história acaba ironicamente por provocar o efeito contrário, levando a que o protagonista reconheça a sua própria culpa e responsabilidade nos factos que lhe estavam ocultos: matou o seu pai Laio e casou com a sua mãe, Jocasta. Esta descoberta constitui uma inversão total da ação, pois o ato do herói tem um resultado inverso ao da sua expectativa. «Par là, se révèle la série d’opposés qu’œdipe est parvenu à unifier à son insu tout au long de l’intrigue: le fils et l’époux, le meurtrier et le justicier... C’est précisément cette coexistence d’opposés au sein d’un seul et même homme qui constitue le ressort tragique d’œdipe- -Roi. On voit donc que le mythe tragique utilise pour augmenter la tension dramatique le fait d’être à la fois un terme et son contraire, et de ce fait, fonctionne sur base de la logique de l’ambivalence»309.

Relativamente ao reconhecimento, diz-nos Aristóteles (1452a 18-20) que a anagnorisis «é a inversão que permite a passagem da ignorância ao conhecimento, que conduz ou à amizade ou ao ódio os indivíduos des- tinados à fortuna ou ao infortúnio». O mesmo considera que o reconhecimento mais perfeito é o que ocorre no Rei Édipo, porque acontece ao mesmo tempo que a peripécia, provocando, por este meio, maior compaixão e temor nos espetadores. O Estagirita acrescenta que existem outros tipos de reconhecimento: aqueles que se podem dar através de sinais físicos ou objetos até dos mais ocasionais; e aqueles que se dão através do facto de alguém ter feito ou omitido alguma coisa. O reconhecimento através

de sinais materiais ou físicos é rejeitado pela arte poética, pois este tipo de reconhecimento depende do espetáculo para se concretizar e não está articulado com o encadeamento das ações no seio do texto. O reconhecimento construído no próprio texto é o mais valorizado por Aristóteles, pois esse obriga a um processo intelectual por parte das personagens e por parte do público: a personagem faz apelo à memória e reconhece outrem que provoca um abalo na ação e lhe inverte o curso; ao nível externo, do impacto do texto sobre o público, este deve reconhecer e efetuar um raciocínio para compreender a mudança trágica da situação que presencia e que lhe afeta as emoções. Deste modo, é lícito concluir que Aristóteles coloca este reconhecimento resultante de uma recordação, interno à própria intriga, numa relação direta com o outro reconhecimento suscitador de prazer inte- lectual no recetor, quando este compara as imitações com o modelo310.

Ainda dentro do mythos, esclarece Aristóteles, no mesmo capítulo XI, o reconhecimento entre indivíduos pode ocorrer de duas formas: ou só um é que reconhece o outro, quando é evidente quem é o outro, ou ambos reconhecem-se mutuamente.

Já no fim do capítulo, o Estagirita aborda muito sucintamente o pathos, a terceira característica de uma intriga complexa, dizendo somente que é uma ação destrutiva ou dolorosa, como, por exemplo, a morte em cena, as dores extremas, feridas e outros tantos factos similares, que decorrem diretamente da peripécia e do reconhecimento. O termo grego pathos designa habitualmente a esfera das emoções do homem, tanto positivas como nega- tivas, de acordo com a informação expressa na Ética a Nicómaco, B, 4. Por esta dupla valência se entende a inclusão do pathos no prazer suscitado pela tragédia. Com efeito, o pathos tanto é o responsável pela katharsis, pois provoca, nos espetadores, compaixão e temor, dois elementos fun- damentais na definição de tragédia, como pode ser a expressão do sofrimento dos protagonistas. Existem duas maneiras de suscitar a emoção trágica: ou recorrendo aos meios internos do próprio mythos, produzindo através

310 Cf. ID., 41-45. «Enfin, au niveau de la rédaction du mythe, le poète doit faire travailler

conjointement son imagination et son intellect pour trouver le meilleur renversement de situation possible, c’est-à-dire celui qui soit le plus apte à surprendre le public, tout en étant articulé à l’enchaînement du texte selon le nécessaire ou le vraisemblable» (ID., 45).

deles a compaixão e o temor; ou recorrendo à encenação, que produz não o temor (phobos), mas o monstruoso (teratodes). No capítulo XIV, Aristóteles restringe-se, precisamente, às emoções violentas, não como elas são sentidas pelas personagens, mas sim como são exteriorizadas em cena, capazes de suscitar o monstruoso. No Rei Édipo, por exemplo, o pathos exterioriza- -se em atos físicos muito concretos e ilustrativos do sofrimento que assola as personagens: Édipo cega-se e abandona a cidade; Jocasta suicida-se. Daí a conclusão de Klimis: «le pathos, entendu comme représentation scé- nique d’un acte violent, n’appartiendrait donc pas à l’art poétique, mais à celui de la mise en scène. De ce fait, il n’y aurait véritablement que deux types de renversements, la péripétie et la reconnaissance, seules sus- ceptibles d’être générées par la combinaison des faits interne au mythe.»311

Do mesmo modo, podemos concluir que somente a intriga complexa cor- responde aos critérios da arte poética, uma vez que o espetáculo e o pathos que ele pode gerar não são considerados por Aristóteles como pertencentes ao mythos, mas sim à encenação312.

Ricœur, por seu lado, refere que estes acidentes terríveis e geradores de compaixão de que são vítimas as personagens representam a discordância primeira, pois constituem a maior ameaça à coerência da intriga313. São,

pois, as inversões bruscas do curso da ação, peripécias e reconhecimentos, que procuram provocar as emoções mais fortes no público, graças a um encadeamento de ações que o surpreende, porque vai contra as suas expec- tativas. Por isso, na opinião do mesmo autor, ainda existe outro elemento suscitador da discordância, trata-se do efeito de surpresa (to thaumaston). O temor e a compaixão atingem-se com maior sucesso quando os acon- tecimentos capazes de os gerar ocorrem «contra a nossa expectativa [para; th;n doxavn] por uma relação de causalidade entre si [di’ ajvllhla]314.

311 46. Vide ID., 45-47.

312 «[…] seule la tragédie complexe répond aux critères de l’art poétique: nous avons

vu que le spectacle et l’acte pathétique qu’il peut générer ne sont pas considérés par Aristote comme appartenant à l’art poétique, mais qu’ils sont plutôt “affaire de mise en scène”» (ID., 48).

313 «La discordance première, dès lors, ce sont les incidents effrayants et pitoyables. Ils

constituent la menace majeure pour la cohérence de l’intrigue» (TR I, 87).

Desta forma, a imitação será mais surpreendente [Qaumasto;n] do que se surgisse do acaso e da sorte [….]» (1452a 3-4). Note-se sempre a preocupação em frisar que os acontecimentos devem ocorrer uns por causa (dia) dos outros e não uns a seguir (meta) aos outros. Só assim a concordância pode vencer a discordância. «C’est dans la vie que le discordance ruine la concordance, non dans l’art tragique»315.

Para Ricœur316, o coração da concordância discordante é atingido com

o fenómeno central da ação trágica, a já referida metabole, ou a mudança do rumo dos acontecimentos – que na tragédia ocorre no sentido da fortuna para o infortúnio – associada à peripécia, ao reconhecimento e ao pathos. É esta mudança que leva tempo e regula a extensão da tragédia. A arte de compor intrigas consiste em fazer parecer concordante a discordância – só possível através da junção causal dos acontecimentos e não da sucessão episódica ou avulsa dos mesmos.

Klimis também considera a metabasis a “chave de abóboda” na arqui- tetura de qualquer construção trágica317. De acordo com a mesma autora,

na sua defesa da temporalidade trágica, divergindo em determinados pontos da perspetiva ricœuriana, é esta inversão que permite fundar o esquema da sucessão que assegura a continuidade temporal na tragédia, erradicando o da coexistência de opostos. Esta defende que não é a coexistência simul- tânea de termos opostos que toca as emoções do espetador, mas é uma ação que se desenvolve e progride em fortúnios e infortúnios sucessivos, que gera grande prazer no público. Assim, a metabole joga um papel impor- tante na constituição da temporalidade trágica: «en effet, c’est le renversement qui scande cette temporalité: on sait que dans la Physique, le temps se mesure par la perception de l’anterieur et du postérieur dans le mouvement. Or, lorsqu’Aristote décompose l’étendue de la tragédie au chapitre 18, il appelle “nouement” “ce qui va du début jusqu’à la partie qui précède

315 RICœUR, TR I, 88.

316 «Mais nous atteignons le cœur de la concordance discordante, encore commune aux

intrigues simples et complexes, avec le phénomène central de l’action tragique qu’Aristote dénomme renversement (metabolè)» (TR I, 88).

317 «Aristote fait ainsi du renversement la clef de voûte de processus de sunthesis tôn

pragmatôn, parvenant par là à l’insérer dans la continuité univoque du déroulement de l’action

immédiatement le renversement” et “dénouement” “ce qui va du début de ce renversement jusqu’à la fin”. C’est donc le renversement qui constitue de pôle à partir duquel les notions d’antériorité et de postériorité peuvent se constituer et prendre sens dans le mythe tragique»318.

O que torna, então, o género trágico forte, mas também limitado – porque a teoria do mythos apenas é circunscrita à tragédia, são as inversões características da intriga complexa, que já referimos: a peripécia, o reco- nhecimento e o efeito violento, segundo a tradução ricœuriana de pathos319.

Por isso, a questão que devemos continuar a colocar é a de saber se o projeto de Ricœur é viável, ou seja, se o que nós chamamos de narrativa, enquanto género englobante, pode usufruir de outros preceitos, diferentes dos do modelo trágico enumerados por Aristóteles e como é que os pode conseguir. Efetivamente, o filósofo francês reconhece que é esta força do modelo trágico, que lhe advém da peripeteia, da anagnorisis e do pathos, que a teoria da narratividade se esforça por preservar por outros meios diversos dos do género trágico. Questiona-se até se é possível falar de narrativa se não existir na intriga essa exigência maior que é a peripécia, ou seja, a inversão do rumo dos acontecimentos320. Até mesmo no relato

historiográfico assume particular relevância a peripécia e o reconhecimento. Os próprios historiadores tentam, nas suas crónicas, trazer lucidez a acon- tecimentos que deixam os leitores perplexos, acontecimentos que são tanto mais surpreendentes quanto mais inesperados e marcados pelos reveses da fortuna. «Toute histoire racontée n’a-t-elle pas finalement affaire à des revers de fortune, en mieux comme en pire?» – questiona-se Ricœur321.

De facto, a conjunção entre peripécia e reconhecimento parece conservar uma universalidade que ultrapassa o caso do género trágico.

318 ID., 50-51.

319 «Les renversements caractéristiques de l’intrigue complexe sont, comme il est bien

connu, le coup de théâtre (péripéteia) (selon l’hereuse trouvaille des derniers traducteurs français) et la reconnaissance (anagnôrisis), à quoi il faut ajouter l’effet violent (pathos)» (TR I, 88).

320 «Mais c’est cette force du modèle que toute théorie de la narrativité s’emploie à préserver

par d’autres moyens que ceux du genre tragique. A cet égard, on peut se demander si l’on ne sortirait pas du narratif si l’on abandonnait la contrainte majeure que constitue le renversement, pris dans sa définition la plus large, celui qui «inverse l’effet des actions» (52a 22)» (TR I, 89).

São, portanto, estes incidentes discordantes, provocadores, no caso da tragédia, de terror e compaixão, que o poeta tenta tornar necessários e verosímeis. Na intriga, a concordância abrange a discordância através do agenciamento dos factos, segundo a necessidade e a verosimilhança, formando um todo coeso e orgânico, onde os acontecimentos aparecem harmoniosamente orquestrados segundo uma lei de causalidade não absoluta. Assim, o caráter naturalmente emotivo da compaixão e do terror não se opõe de modo algum à inteligibilidade que o caráter completo e coeso da intriga exige. Incluindo a discordância na concordância, a narrativa inclui o emotivo no inteligível. Assim, termos como pathos e praxis, que, na

Ética aristotélica, aparecem opostos, surgem harmonizados na Poética, uma

vez que o pathos é um elemento fundamental da mivmesi" pravxew". Os capítulos XIII e XIV são consagrados ao efeito de depuração que a compaixão e o terror exercem na estrutura de uma intriga trágica, pois também estas emoções têm a sua quota de racionalidade que permite avaliar a qualidade da mudança de sorte (peripeteia) de uma tragédia. Aristóteles diz claramente que a intriga de uma tragédia deve ser complexa e imitadora de ações terríveis e geradoras de compaixão «(porquanto essa é a carac- terística desta espécie de imitações)» (1452b 33), mas há normas que devem ser observadas para se obter uma tragédia com qualidade. Elas assentam sobre dois eixos principais: a nobreza e a baixeza de caráter das personagens e o fim afortunado ou desafortunado que elas devem atingir. Assim, não se deve mostrar indivíduos nobres passando da sorte à desgraça, pois tal não é terrível e suscitador de compaixão, mas antes repulsivo, nem se deve tão pouco mostrar os malvados a passar da desgraça à ventura, pois isso não é nada trágico, uma vez que não provoca terror nem compaixão, para além de não ser correto. Uma personagem malvada a passar da dita à desdita também não desperta comiseração e pavor, apenas, talvez, justiça. O que se deve representar é alguém semelhante a nós, com o qual nos possamos identificar, que, sem o merecer, sofra um enorme revés que o lance na desgraça. Isso gera nos espetadores verdadeiro assombro e piedade, emoções trágicas que regulam a hierarquização destas combinações possíveis. Aristóteles explicita que «a compaixão tem por objeto quem não merece a desdita, e o temor visa os que se assemelham a nós» (1453a 4-5). Em suma, da composição poética devem ser excluídas quaisquer ações repug- nantes, monstruosas ou desumanas, pois é essencial que o herói seja alguém

com quem o espetador se possa identificar, de molde a sentir as emoções trágicas que são o sucesso das tragédias.

Relativamente às características do herói trágico aristotélico, salienta ainda o autor que, para produzir as designadas emoções trágicas, este não deve ser excelsamente virtuoso e justo nem demasiado mau ou perverso, a sua queda deve ser justificada não por uma grande maldade, mas, sim- plesmente, por uma hamartia322, isto é, por uma falha ou erro fatal pelo

qual ele não é totalmente responsável323. O recetor torna-se assim juiz, 322 A palavra grega hamartia, normalmente traduzida por “erro”, é cognata do substantivo

abstrato hamartema e do verbo hamartano, que aparece documentado na Ilíada com o sentido de “errar o alvo”. Contudo, este vocábulo tem tido várias interpretações ao longo dos séculos, dando azo a artigos e até a livros. Por motivos óbvios, não vamos aqui fazer uma exposição das suas várias aceções. No entanto, para um estudo aprofundado do termo, aconselhamos a obra de Jan Bremer, Hamartia, totalmente dedicada aos vários significados do lexema; a tradução da Poética e respetivos comentários da autoria de Lucas; a introdução de M. H. Rocha Pereira à tradução da Poética, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian; e o artigo M. C. FIALHO, “Algumas considerações sobre o Homem trágico”: Biblos, 1977. A partir das várias ocorrências da palavra na Poética, pode verificar-se que «hamartia e hamartema podiam ser usados em relação “a qualquer ação cujo resultado falhou”, e que podiam “abranger igualmente erro e crime”» (M. H. ROCHA PEREIRA, 25. As expressões entre “ ” são citadas pela autora a partir de Lucas, 1968, 300). Na Ética a Nicómaco (V 1135b 16-25) o Estagirita apresenta três conceitos afins: hamartema, que significa “erro”, no sentido lato; athychema, falta involuntária; e adikema, injustiça. Assim, na tragédia, a hamartia «é uma certa forma profunda de ignorância que conduz a consequências desastrosas sem subverter a integridade moral do herói trágico» (M. H. ROCHA PEREIRA, 26). Por isso, convém esclarecer, «hamartia não é culpa, nem dor, nem erro, mas incapacidade de atingir o alvo, incapacidade do Homem de coincidir com os seus próprios fins,