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As constrições do mythos e o privilégio do modelo trágico Já dissemos que Aristóteles manifesta preferência pela tragédia Isto

1.   O NEXO MIMESIS-MYTHOS-KATHARSIS EM ARISTÓTELES

1.1   MYTHOS E MIMESIS

1.1.3   As constrições do mythos e o privilégio do modelo trágico Já dissemos que Aristóteles manifesta preferência pela tragédia Isto

deve-se a um conjunto de coerções limitativas que separam os vários géneros literários em foco: tragédia, comédia e epopeia. No entanto, o projeto de Ricœur, como já referimos, consiste justamente na construção de uma teoria da narratividade atual, onde a narrativa surja como género englobante do drama, da epopeia e da história. Para que nos possamos dirigir para esse horizonte, temos de averiguar e tentar desmontar os critérios literários aris- totélicos que dão a primazia ao género trágico em detrimento das outras artes miméticas.

A primeira constrição limitativa distingue comédia, por um lado, de tragédia e epopeia, por outro, tendo como critério os carateres. Os carateres, define Aristóteles logo no capítulo II, «são os que representam os indivíduos

272 «A tragédia supõe sempre uma ou várias ações, o seu objetivo não é um dado inerte,

é uma decisão, um fazer, algo que interrompe o curso natural do tempo cronológico e inicia uma nova dimensão no mundo, a do valor, enquanto nomeadamente o referente das decisões científicas é um estado ou uma coisa» (M. L. PORTOCARRERO, 2005, 63).

273 M. BATISTA PEREIRA, 1993, 428. 274 M. L. PORTOCARRERO, 2005, 64.

em ação: mimou'ntai oiJ mimouvmenoi pravttonta"» (1448a 1). Ora, a dife- renciação não é feita com base no cânon poético que rege toda a teoria, a saber, o da mivmesi" pravxew", mas tem que ver com um critério ético de nobreza e de baixeza, virtude e vício. A tragédia imita indivíduos melhores que os atuais, isto é, pessoas nobres e virtuosas e a comédia imita indivíduos piores, de baixa condição. Aristóteles faz, portanto, uma tripla distinção sobre o estatuto do objeto imitado (melhor, pior ou igual) sendo que esta última categoria, homens iguais aos atuais, fica por preencher, já que não corresponde ao objeto de nenhum género literário. Klimis entende este fator como uma prova evidente do sentido de “estilização” que Aristóteles atribui ao conceito de mimesis e não de mera reprodução275. A dimensão

criativa da mimese vem dessa representação de homens melhores ou piores que os existentes, uma vez que dispensa a cópia dos homens tal como eles são e preocupa-se, fundamentalmente, em representá-los como eles poderiam ou deveriam ser. Claro que o objeto da tragédia não são os homens nem as personagens, são as ações, deve-se, por isso, entender estes homens como modelos, relativamente a nós, “os homens atuais”, que a narração pode conseguir integrar sob a forma de ação, por intermédio da mimesis. A segunda restrição separa a epopeia da tragédia e da comédia juntas. Esta separação vai contra o propósito ricœuriano de considerar a narrativa como um género comum e a epopeia como uma espécie narrativa. O que divide narrativa e drama, segundo Aristóteles, é fundamentalmente o modo como representam a ação e não o objeto, já que ambas representam homens nobres. A diferença reside em que na epopeia o autor tanto recorre a um narrador (apangelonta) para apresentar os factos como põe a narração na boca das personagens; no teatro, o autor fala sempre indiretamente através das personagens, pois são estas que apresentam o drama276. Esta diferenciação 275 «Nous trouvons donc dans ce chapitre la preuve que c’est bien dans le sens d’une

“stylisation” qu’ Aristote entend la mimèsis, et certainement pas dans celui d’une simple “imitation”» (113).

276 Assim, conclui Aristóteles, no capítulo III, se Sófocles se aproxima de Homero, por

representar indivíduos nobres e virtuosos, também se aproxima de Aristófanes, por apresentar as personagens como se estivessem agindo e atuando. «Daí resulta que alguns dizem que as suas obras se chamam dramas por imitarem os homens em ação»: oJvqen kai dravmata kalei'sqaiv tine" aujta fasin, oJvti mimou'ntai drw'nta" (1448a 28-30).

volta a ser focada num parágrafo do capítulo V277. Aí se explica que tanto

a tragédia como a epopeia recorrem ao discurso versificado, porém, o verso (to metron) da epopeia é uniforme ou simples (aploun) e o discurso é um relato (apangelian); para além disso, diferem na unidade de tempo (a epopeia é naturalmente muito mais extensa do que a tragédia), embora nem sempre assim tivesse sido278. Outro fator concorre para que algumas

epopeias, com honrosa exceção dos poemas homéricos, sejam consideradas um género inferior à tragédia, trata-se do princípio da coerência e da unidade estrutural, orgânica, da obra poética, que exige que toda a arte mimética seja uma imitação única de uma ação única: «o enredo, como imitação que é de uma ação, deve ser de uma ação una» (1451a 31).

O capítulo XXVI confronta os dois géneros literários, fazendo uma síntese dos fatores que os separam, na tentativa de discernir qual das duas artes é melhor (beltion): «Poderia perguntar-se qual das duas é melhor, a imitação épica ou trágica» (1461b 26). O filósofo atribui a palma à tragédia, que é em quase tudo superior à epopeia. É verdade que ambas produzem o seu efeito próprio, porém, a epopeia só através da leitura, a tragédia através da leitura ou do espetáculo. A tragédia pode recorrer aos versos da epopeia, mas a epopeia não pode recorrer à música que se emprega nas representações teatrais ou até a que está implícita nos ritmos dos versos. Logo, em termos de representação como de leitura, a tragédia revela-se superior. Depois há os critérios já referidos: a extensão temporal – a tragédia vence porque «com efeito, o que é mais concentrado

277 «A epopeia segue de perto a tragédia por ser também imitação, com palavras e ajuda

de metro, de carateres virtuosos. Todavia, difere desta por ter um metro uniforme e por ser uma narrativa. [tw/' de; to; mevtron aJplou'n ejvcein kai; ajpanggelivan ei\nai, tauvth/ diafevrousin]. Diferem ainda quanto à extensão: uma esforça-se o mais possível por durar uma só revolução do Sol ou demorar pouco mais, enquanto a epopeia, não tendo limite de tempo, é diferente neste aspeto. Contudo, primitivamente, procediam de igual modo nas tragédias e nas epopeias» (1449b 9-16).

278 A tragédia clássica, diferentemente da anterior, que, segundo Aristóteles, era tão ilimitada

no tempo de ação como a epopeia, tendia a estabelecer como espaço cronológico da ação uma revolução do Sol ou pouco mais. López Eire diz que foi da má compreensão desta passagem que surgiu a famosa lei da «unidade de tempo» que, juntamente com as outras duas – a unidade de lugar e a de ação – regeram despoticamente as obras dramáticas do Classicismo renascentista» (2002, nota 13, 117).

agrada mais do que o que é diluído em muito tempo» (1462b 2); e o critério de unidade de ação – a prova de que a imitação epopeica é menos unitária está no facto de «de qualquer imitação épica, podem nascer várias tragédias» (1462b 5). Assim, remata Aristóteles: «por conseguinte, se a tragédia se distingue em todas estas coisas e ainda no efeito próprio da arte (pois estas imitações devem produzir não um prazer qualquer mas o que já foi referido) é evidentemente superior, uma vez que atinge o seu objetivo melhor do que a epopeia» (1462b 11-15).

Não obstante, Ricœur afirma que nenhum destes aspetos é suficiente para afetar, consideravelmente, as regras fundamentais da composição dos factos, porque, citando Aristóteles por intermédio de Ricœur279, «l’essentiel

est que le poète – narrateur ou dramaturgue – soit “compositeur d’intrigues”, ou seja, o que distingue o poeta é a mivmesi" pravxew". Poihth+" kata th+n mivmhsivn ejstin, mimei'tai de ta;" pravxei"; (o poeta é-o em virtude da imitação, e o que imita são ações)280. Posto isto, parece não fazer sentido

arrumar cada um destes géneros literários em categorias opostas. Não há nada que nos impeça de reunir drama e epopeia sob o título de narrativa, pois não classificamos a narrativa pelo “modo”, isto é, pela forma como o narrador apresenta a intriga, mas pelo “objeto”, já que denominamos de narrativa, num sentido amplo, aquilo que para Aristóteles é o mythos, ou seja, a disposição dos factos ou objeto da mimesis. Além disso, a hie- rarquização interna dos traços distintivos da tragédia em benefício do mythos torna possível esta aproximação do drama e da narrativa, na medida em que o agenciamento dos factos é suscetível de se libertar dos três círculos de obrigações já referidos, constituídos pelo “quê”, o “pelo quê” e o “como”281.

Uma outra condicionante poderia separar Aristóteles da narrativa moderna: a submissão das personagens à ação. No romance moderno, as personagens chegam a ser tão ou mais importantes que a ação, já que

279 TR I, 76.

280 «dh'lon ou\n ejk touvtwn oJvti to;n poihth;n ma'llon tw'n muvqwn ei\nai dei poihth;n h twn'

mevtrwn, oJvsw/ poihth;" kata; th;n mivmhsivn ejstin, mimei'tai de ta;" pravxei": De tudo isto resulta evidente que o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que é poeta devido à imitação e imita ações» (1451b 26-28).

uma intriga é tão mais desenvolvida quanto mais rica for uma personagem. Mas o Estagirita é muito claro no seu pensamento: o mais importante de um enredo é a ação, à qual estão sujeitas as personagens, pois a tragédia não é imitação de homens, porém, de ações. A praxis e o mythos são o fim (teleos) da tragédia e o fim é o mais importante de tudo282:

«É que a tragédia não é a imitação dos homens mas das ações e da vida [...]. Aliás eles [os homens] não atuam para imitar os carateres mas

282 A teleologia aristotélica consiste na afirmação de um fim ou intencionalidade para

cada coisa, no universo. Tudo está orientado para a perfeição. Para entender rigorosamente a

Poética e toda a filosofia de Aristóteles é preciso partir do princípio de que só a forma (eidos)

configura a unidade da substância, confere-lhe o seu ser próprio, a sua marca individual e permite responder à questão «que substância é essa?». Só ela é objeto da ciência e produz satisfação intelectual e estética na arte e na poesia. A matéria sobre a qual age a forma é o limite inferior dos seres ou das substâncias, esta matéria sem a forma é incognoscível, tem de se adaptar à forma. A forma só se encontra na matéria, é a essência de qualquer substância, só o Primeiro Motor imóvel (o deus aristotélico, ato puro, mas não criador, que dá unidade às substâncias da natureza e do mundo) é forma pura. Só com o auxílio da forma a matéria alcança a sua perfeição relativa ou atinge o seu fim, a sua finalidade, ou seja, realiza a sua entelequia. A causa formal e a causa final são idênticas no domínio da Natureza e assim a realização da causa formal de uma coisa natural é ao mesmo tempo o cumprimento da sua finalidade ou causa final – entelequia. O fim próprio de um ser é realizar a sua forma, o fim próprio do homem é ser o mais homem possível, o fim de toda a Natureza é ser o melhor possível. Tudo tende para a sua causa final, a Natureza tende para o bem e para o belo, nisto consiste a teleologia aristotélica. As formas que configuram os entes e coincidem com as suas causas finais são agora as formas aristotélicas, mas anteriormente eram as ideias de Platão, idênticas a si mesmas, princípios imutáveis do ser, descidas, segundo a nova metafísica do Estagirita, do supraceleste mundo inteligível a este mundo real. As ideias platónicas estão neste mundo, nas formas aristotélicas que configuram a matéria. Contudo, também em Aristóteles, a Ideia de Bem, que se identifica com a Ideia do Belo, continua a ser a causa suprema, final, última e definitiva da razão do Universo, ou seja, é o princípio teleológico que dá unidade a todas as Ideias que derivam dela; Aristóteles só as fez descer ao nosso mundo real, sensível e empírico, fazendo-as encarnar como formas na matéria sensível. Isto tudo para dizer que também a obra de arte, à imagem dos seres vivos, deve cumprir a sua entelequia: na sua elaboração a forma e a causa final do artefacto, idênticas uma à outra, têm de passar da mente do artista à matéria, unificando-a e proporcio- nando-lhe assim um alto grau de coesão interna. Assim, se a natureza apresenta para cada coisa uma unidade bem compacta, orgânica e funcional, uma forma, uma finalidade, em todas as artes miméticas, a mimesis tem de ser de um só objeto, e, por consequência, a tragédia imitará uma só ação. A mesma entelequia preside à Natureza e à arte, as duas tendem para o bem, para o melhor, para a ótima organização do seu material, a arte imita a Natureza e esta não faz nada debalde nem irracionalmente (Vide LÓPEZ EIRE, 2002, 136, 137, 143-147).

os carateres é que são abrangidos pelas ações. Assim, os acontecimentos e o enredo são o objetivo (teleos) da tragédia e o objetivo é o mais importante de tudo. Além disso, não haveria tragédia sem ação, mas poderia haver sem carateres.» (1450a 16-24).

Sublinhe-se que, apesar de tudo, Aristóteles não desqualifica as per- sonagens, apenas as coloca em segundo plano na hierarquia da narrativa. Aliás, também na narrativa semiótica contemporânea, Vladimir Propp tenta fazer o mesmo, ao sobrepor às próprias personagens as “funções” que estas desempenham na intriga283.

O mais importante é que o autor da Poética estabelece assim o estatuto mimético da ação. Na Ética a Nicómaco (II, 1105a 30sqq.), dá primazia ao sujeito sobre a ação; na Poética, é a tecitura da intriga (consoante seja epopeia, tragédia ou comédia) que rege a qualidade ética dos carateres. Por isso, o filósofo francês admite que esta coerção não é tão problemática como as duas que vimos anteriormente, coaduna-se bem com as expressões “representação de uma ação” e “disposição dos factos”, pois que a tónica é colocada, justamente, mais sobre a ação do que sobre os homens284.