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2.4 Sobre o empreendimento genealógico

2.4.5 A produção do homem moderno

Dentre estas transformações culturais, ocorreram também mudanças radicais no ambiente familiar, primeiro na família burguesa, mais urbana, caracterizada por preocupações relacionadas à saúde bem como uma redefinição dos papeis e a definição do pequeno núcleo familiar; e depois as famílias das classes pobres. Devido a essas transformações, os psiquiatras não agiam unilateralmente de forma imposta, “de cima para baixo”, mas tinham seu trabalho

requisitado pelas próprias famílias (FOUCAULT, 2013[1974-1975])31. É fundamental outra

transformação sociocultural compreendida nas outras mudanças anteriormente mencionadas: a nova maneira de se perceber e relacionar com a infância, percepção que desempenhará um papel central nesses novos desenvolvimentos da psiquiatria, fazendo com que esta possa estender seu poder e controle. As formulações e a preocupação com a infância possibilitarão vários discursos que encontrarão, aí, tanto as explicações para as patologias nos adultos quanto as justificativas para o exercício de um novo poder caracterizado pela administração do espaço doméstico e das relações humanas em seu caráter afetivo, sexual, político e econômico.

Foi, então, essa abordagem sobre a infância que permitiu à psiquiatria estender seus domínios e, além disso, produzir um novo deslocamento em suas funções e objetivos, deixando de cuidar de patologias para, a partir de teorias do desenvolvimento estabelecer o problema dos comportamentos indesejados em termos de normalidade e anormalidade: “tornando-se a ciência da infantilidade das condutas e das estruturas, a psiquiatria pode se tornar ciência das condutas normais e anormais.” (FOUCAULT, 2013, p. 269 [1974-1975]). Foucault identifica o período entre 1850-1870 como sendo fundamental para compreender essa transformação: nesse momento a psiquiatria deixa de fazer referência às doenças – o que era, afinal, o que estabelecia seu elo com a medicina, a fonte de sua legitimidade e poder – para assumir os comportamentos, os seus desvios, suas anomalias, ela toma sua referência num desenvolvimento normativo. Não é mais, pois, fundamentalmente, da doença ou das doenças que ela se ocupa, mas passa agora a aplicar seus efeitos de poder e seu estatuto de medicina que é seu princípio, a algo que, em seu próprio discurso, não tem mais estatuto de doença, mas estatuto de anomalia (FOUCAULT, 2013 [1974-1975]).

Objetiva-se, portanto, a produção de um tipo específico de sujeitos. Além disso, concomitantemente, funcionando dentro da mesma engrenagem, há uma mudança na caracterização do crime e seu julgamento. Na Idade Média e até o início da modernidade,

31 Chamo a atenção, aqui, para a relação entre um regime de solicitação familiar ainda em curso quando se trata

procurava-se estabelecer o fato, o autor e a lei para então estabelecer-se a pena de vida. Na Europa Moderna, estabelece-se um novo regime de verdade no qual se passa a julgar não mais o crime, mas a alma dos sujeitos. A alma que se produz é a alma que também é julgada. As pessoas tornam-se condenáveis por aquilo que elas são, mais do que por suas ações. Nesse novo contexto, em que as disciplinas produzem a alma dos indivíduos, estabelecem-se também os procedimentos que darão origem às ciências humanas, como vimos na seção anterior sobre a arqueologia. Essas ciências passarão, a partir de seus vínculos com as práticas de poder, a construir um saber sobre os seres humanos que, por sua vez, atrelar-se-á a novos tipos de controle. “Um saber, técnicas, discursos ‘científicos’ se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir.” (FOUCAULT, 2013, p. 26 [1975]).

A psiquiatria, a antropologia criminal e a criminologia passam a desempenhar um papel central também no sistema penal, já que passam a veicular um discurso científico sobre o crime, dando aos mecanismos de punição uma justificativa para atuar não apenas sobre as infrações, mas sobre os próprios sujeitos e suas virtualidades, ou seja, passando a julgar alguma coisa além dos crimes (FOUCAULT, 2013, p. 23-24 [1975]). A figura do delinquente permitiu justamente unir duas linhas (a dos “monstros” morais e políticos, caídos do pacto social e outra, a do sujeito jurídico requalificado pela punição) e constituir, com a baliza supostamente científica da medicina, da psicologia e da criminologia, um indivíduo no qual o infrator da lei e o objeto de uma técnica científica que se sobrepõem. A fabricação da delinquência deu à justiça criminal um campo unitário de objetos, autenticado por “ciências” e que assim lhe permitiu funcionar um horizonte geral de “verdade”.

Um fato significativo: a maneira como a questão da loucura evoluiu na prática penal. De acordo com o código (francês) de 1810, ela só era abordada no final do artigo 64. Este prevê que não há crime, nem delito, se o infrator estava em estado de demência no instante do ato. A possibilidade de invocar a loucura excluía, pois, a qualificação de um ato como crime. Impossível, porém, declarar alguém culpado e louco; o diagnóstico uma vez declarado não podia ser integrado no juízo. Apenas o exame do criminoso suspeito de demência, mas também os próprios efeitos desse exame deviam ser exteriores e anteriores à sentença. Para Foucault (2013 [1975]), desde logo os tribunais do século XIX se utilizaram diferencialmente do sentido do artigo 64. Apesar de vários decretos do supremo tribunal de justiça lembrando que o estado de loucura não podia acarretar nem uma pena moderada, nem sequer uma absolvição, mas uma improcedência judicial, eles levantaram eu seu próprio veredito a questão da loucura. “Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco, tanto menos culpado; culpado, sem dúvida, mas que devia ser [...] tratado e não punido; culpado perigoso,

pois manifestamente doente.” (FOUCAULT, 2013, p. 24 [1975], grifo meu). Para o francês, essa sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa, uma decisão legal que sanciona; ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível.

A produção da alma do sujeito moderno se dá, então, como efeitos de poder e em referência a uma rede de saberes:

Essa alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, as engrenagens pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc. Sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela valorizam-se as reinvindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a libertar já é em si mesmo efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva a existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo. (FOUCAULT, 2013, p. 32 [1975])

Finalizo essa seção sobre a produção das relações de saber e poder, retomando as contribuições arqueológicas foucaultianas, que nos fazem resgatar o nascimento e a legitimação das humanidades, já que todo essa maquinaria de saber, essas observações minuciosas do detalhe e ao mesmo tempo esse enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, evoluem através da Era Clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e de dados, “[...] desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno.” (FOUCAULT, 2013, p. 136 [1975]):

Estranhamente, o homem – cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates – não é sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo caso, desenhada pela disposição nova que ele assumiu recentemente no saber. Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia”, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e que desaparecerá desde que houver encontrado uma forma nova. (FOUCAULT, 2014, p. XX [1966])

Ainda sobre o nascimento das ciências humanas cabe marcar que a história da loucura foi importante para Foucault demarcar o lugar do Outro, ou daquilo que em uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser excluído (daí o perigo interior), porém encerrado

(reduzindo lhe a alteridade). A doença é, ao mesmo tempo, a desordem, a perigosa alteridade no corpo humano e até o cerne da vida, também um fenômeno que tem suas regularidades, suas semelhanças e seus tipos. Dessa arqueogenealogia do olhar, dessa experiência do olhar-limite do outro às formas constitutivas do saber e destas à ordem das coisas, configura-se o saber e o poder disciplinar das humanidades.