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2.4 Sobre o empreendimento genealógico

2.4.4 O poder disciplinar

A disciplina tem seu marco histórico na medida em que surge como uma arte do corpo humano que não está preocupada somente com a sujeição e o aumento das habilidades do sujeito, mas, sobretudo, com uma relação formada a partir de mecanismos que irão tornar o sujeito tanto mais obediente e útil. É a partir dessa experiência fundada na disciplina que Foucault analisará o que ele chama de fabricação dos indivíduos-máquina (FOUCAULT, 2013, p. 132-133 [1975]). A disciplina produz sujeitos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fixar em seu super-poderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente, positivo, produtivo.

Essa produção do sujeito acontecerá a partir de um processo lento e cauteloso. Em

Vigiar e Punir, Foucault analisa esse processo de fabricação tomando por base a figura do

soldado. Esse personagem que terá o corpo como um “brasão” representando sua coragem, força e vigor. Obviamente, não era todo homem que trazia consigo tais qualidades, por isso, na segunda metade do século XVIII, o soldado começou a ser algo que se fabrica. Para fazer a “máquina” que se precisava, corrigia-se lentamente a postura, uma coação calculada percorrerá paulatinamente cada parte do corpo, tornando-se senhor dele e se prolongando de forma silenciosa, aproveitando-se dos hábitos que se tornavam cada vez mais automáticos30. Após esse longo processo via-se a massa informe, de um corpo inapto de camponês dar espaço à magnífica “fisionomia do soldado” (FOUCAULT, 2013, p. 133 [1975]). Portanto, o quartel passa a usar a disciplina para a fabricação de um sujeito que atenda seus principais requisitos de um soldado modelo. É a uma expansão, uma espécie de universalização do regime de produção do soldado que se assiste a partir do século XVIII no ocidente.

Foucault segue aprofundando estes problemas, retomando as reflexões e as conclusões de História da Loucura, em seus cursos no Collège de France; entretanto, agora, sob uma perspectiva genealógica. Devo, contudo, ressaltar que na História da Loucura as instituições e práticas sociais já desempenham um papel fundamental e que, em relação a esse assunto, as

reflexões posteriores de Foucault são um mergulho vertical de maneira a aprofundar e desenvolver problemas já identificados anteriormente.

Nos cursos O poder psiquiátrico (FOUCAULT, 2006 [1973-1974]) e Os anormais (FOUCAULT, 2013 [1974-1975]), Foucault tratou amplamente do problema do estabelecimento das normas no século XIX a partir da constituição das ciências psiquiátricas em paralelo com os saberes jurídicos, as instituições científicas, políticas e judiciárias de então. Volta-se para o primeiro tratado do desenvolvimento dos saberes da psiquiatria, da psicanálise e da psicologia e o respectivo papel normalizador desempenhado por estes saberes. Foucault mostra que, a partir do começo do século XIX, a prática do internamento se dissemina, coincidindo com uma série de formulações sobre a loucura que estabelecem sua natureza mais em função de parâmetros de normalidade do que em função do erro, como ela havia sido percebida em períodos anteriores. O hospício representa, então, naquele período, o papel de isolar os indivíduos e tornar possível a descoberta da doença mental, torna possível fazê-la aparecer: a criação de um espaço hospitalar destinado ao internamento dos loucos cria as condições para a pretensa objetividade das formulações das novas ciências psicológicas; o isolamento em manicômios faz com que seja possível observar, formular leis, quantificar, dar um estatuto científico ao estudo das patologias psíquicas. Logo, o médico passa a ter a possibilidade de dizer a verdade sobre a doença em função do seu saber, de sua autoridade e, ao mesmo tempo, em função dessa mesma autoridade, sustentada por uma série de arranjos institucionais, sociais e políticos, ele tem a possibilidade de produzir a doença mental, numa espécie de circularidade, sustentado por toda a engrenagem do jogo de uma relação de poder que dá lugar a um conhecimento que funda, em contrapartida, os direitos desse poder.

As contribuições apresentadas nessa seção corroboram e justificam o arcabouço conceitual de Foucault como pacto teórico-ontológico para estudar a produção do alcoolismo no contemporâneo e as relações de saber-poder que o produzem, sobretudo em uma rede de práticas discursivas, atravessada por relações de escrita, historiografia, nosologia e nosografia que o legitimam. Busco, assim, desenvolver uma reflexão dessas categorias arquegenealógicas que, como tais, se põem na base dos fenômenos contemporâneos sobre o objeto da pesquisa, presentando-se como estruturas originárias no processo de produção e realização do sujeito – sobretudo nas suas variantes ligadas a doença mental. A análise da produção intelectual de Foucault põe cada vez mais exigências dessa escavação arqueogenealógica por meio de fontes cada vez mais diversas e extensas, tal qual sua produção intelectual, permeada pelo uso inesgotável de fontes filosóficas, históricas, literárias, jurídicas e econômicas. Desse modo, pretendo realizar a coleta de dados propriamente dita dessa pesquisa, uma vez que, eis aqui uma

hipótese, acredita-se que na análise dos laudos e prontuários encontrar-se-á evidências, recortes e sinais de comportamentos, condutas, práticas e toda uma trama discursiva e extra-discursiva que produz o alcoolista no contemporâneo.

Minha intenção nessa dissertação consiste em, partindo das premissas dessa arqueogenealogia foucaultiana, apresentar uma leitura da reforma psiquiátrica no contemporâneo no que se refere aos casos de uso “prejudicial” de álcool. Pretendo, portanto, alcançar uma reflexão cuja base é o presente – a reforma psiquiátrica brasileira – através de categorias discursivas, políticas e jurídicas sustentadas em relações de poder disciplinar, em dispositivos, em última instância, de normalização.

No desenvolvimento da discussão acerca das relações de saber-poder, tomando a emergência do poder disciplinar sobre a doença mental, sigo na esteira das considerações sobre o poder disciplinar, sobretudo o psiquiátrico e psicológico, levando em conta, principalmente, as ambiguidades e atribuição de diferentes sentidos às diferentes práticas “normalizantes” correlatas a esses discursos. No curso Os anormais, Foucault aprofundou o problema do funcionamento das normas em relação com as ciências médicas e as práticas jurídicas e políticas. O francês centra suas análises no século XIX, no entanto, apresentando com frequência exemplos contemporâneos seus, a fim de sustentar que estaríamos, ainda, no interior desse tipo de sociedade que ele chamou de normalizadora. Foucault identifica três personagens principais que o século XIX e as novas ciências humanas darão à existência e que estão na origem ou mesmo correspondem à nova figura do anormal. Estas figuras precedem essa nova formulação dos saberes, sobretudo o médico, ao mesmo tempo em que permanecem virtualmente ou na forma de resquícios, eis uma hipótese, na contemporaneidade, na base do saber disciplinar dessas positividades. É por isso que decido descrevê-las e apresentá-las, porque parecem permanecer no entendimento fundamental desses saberes, mesmo no tempo presente, principalmente se considerá-las a luz dos manuais de nosologia e nosografia que parecem não parar de reatualizar esses sujeitos nas suas variantes ligadas aos seus comportamentos ditos desviantes ou anormais.

A primeira delas é o monstro humano, cujo aparecimento se dá em referência a um campo jurídico-biológico, posto que segundo as elaborações correntes àquele período essa figura violava leis tanto da natureza como da sociedade. Essa figura está na origem daquela a que contemporaneamente se atribui o caráter perigoso, o delinquente, cuja natureza anormal determina sua consideração de uma perspectiva jurídica (FOUCAULT, 2013, p. 47 [1974- 1975]).

A segunda figura dos discursos médicos daquele período é a figura do indivíduo a corrigir ou o incorrigível, cujas características e sua respectiva classificação é dada justamente em referência às novas normas “emanadas” do exercício do poder disciplinar, através das sanções e dos exames (FOUCAULT, 2013, p. 48 [1974-1975]) além da observação contínua e dos novos procedimentos de adestramento do corpo.

Aqui, mais um parêntese: Foucault dirá em Vigiar e punir, que a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Ela executa cinco operações bem distintas: referir os atos, as performances, as condutas singulares a um conjunto que é por sua vez campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos uns em relação aos outros e em função dessa regra de conjunto – que a façamos funcionar como limite mínimo, como média a respeitar ou como ideal do qual é preciso se aproximar. Mensurar em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a natureza dos indivíduos. Efetivar, através dessa medida valorativa, a obrigação de uma conformidade a se alcançar. Enfim, traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira exterior do anormal “[...] a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos, e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (FOUCAULT, 2013, p. 176 [1975]). Fecho parêntese e retomo Os Anormais e sua terceira figura.

A terceira figura identificada por Foucault é a do onanista, que surge em função de uma nova preocupação com a sexualidade, uma reconfiguração da organização familiar e uma nova importância dada ao corpo e à saúde (FOUCAULT, 2013 [1974-1975]). Sobre essa nova preocupação com as questões relacionadas à saúde e, mais especificamente, com a sexualidade, veremos como esses novos problemas estão intimamente ligados ao problema da biopolítica, fazendo a ligação entre o poder que se exerce imediatamente sobre o corpo dos indivíduos e aquele poder que se exerce ao nível das populações, através das políticas de estado. Foucault destaca ainda que, mesmo que tenha havido uma correlação entre o desenvolvimento do discurso psiquiátrico – e consequentemente a produção da relação normalidade/anormalidade – e o surgimento e estabelecimento de instituições e práticas de poder, a formação desses saberes estão inseridos num movimento histórico mais amplo. Havia também, no século XIX, muitas outras transformações em curso, relacionadas fundamentalmente ao desenvolvimento do capitalismo, e um conjunto de novas transformações culturais vinculadas ao novo sistema econômico.