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Agamben, em O que é o contemporâneo e outros ensaios, de 2009, no capítulo O que é

um dispositivo, afirma que a palavra dispositivo é um termo técnico decisivo na estratégia do

pensamento de Foucault, usado com frequência sobretudo a partir da metade dos anos setenta do século XX, quando o francês se ocupa, como se viu, do que chama governamentalidade ou governo dos homens.

Em Sobre a história da sexualidade, originalmente publicado em 1977, mas traduzido para o Brasil em 1978, do livro Microfísica do poder, coletânea de cursos e entrevistas, Foucault responde qual seria o sentido e a função metodológica do termo dispositivo:

Em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição, ou ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda, pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. [...] Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. (FOUCAULT, 2015g, p. 364-365 [1977])

Para o francês, o dispositivo tem dois momentos essenciais: a predominância de um objetivo estratégico e o englobamento de um duplo processo de sobredeterminação funcional, pois seus efeitos, positivos ou negativos, desejados ou não, estabelecem uma relação de ressonância ou de contradição com os outros, exigindo uma rearticulação, um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente, em um processo perpétuo de preenchimento estratégico. O dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam:

É isto o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por ele. Em As palavras e as coisas, querendo fazer uma história da

epistémè, permanecia em um impasse. Agora gostaria de mostrar que o que chamo de

dispositivo é algo mais geral que uma epistémè. Ou melhor, que a epistémè é um dispositivo especificamente discursivo, diferentemente do dispositivo, que é discursivo e não discursivo, seus elementos sendo muito mais heterogêneos.” (FOUCAULT, 2015g, p. 367 [1977])

Agamben relê Foucault e aponta três pontos sobre o dispositivo na empresa foucaultiana:

a) É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas

de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.

b) Dispositivo sempre tem uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder.

c) Como tal, resulta do entrecruzamento de relações de poder e de relações de saber (AGAMBEN, 2009, p. 25)

Desenvolvendo uma genealogia do termo, o italiano remete às origens, que assume em si toda a esfera semântica da oikonomia teológica (oikonomia traduz-se para o latin como

dispositio). “O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura

atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar em um processo de subjetivação, isto é, devem produzir os sujeitos.” (AGAMBEN, 2009, p. 37)36

Agamben (2009) apropria-se evidentemente da qualificação de Foucault, fundada na relação entre rede, estratégia, poder e saber, e desenvolve sua conceituação do termo (“um momento particularmente feliz [...] de abandonar o texto que se está analisando e seguir por conta própria”, p. 39):

Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente as prisões, o manicômio, o Panóptico , as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares – e por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar. (AGAMBEN, 2009, p. 40)

Coube a Agamben, na contemporaneidade, captar como as novas configurações do poder demandam também a articulação de novos dispositivos. “Não seria provavelmente errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos.” (AGAMBEN, 2009, p 41). Esses

36 Frente a constatações mais amplas sobre a obra de Michel Foucault, Deleuze (1999) considera dispositivo como um conceito operatório multilinear, alicerçado em três grandes eixos que, na verdade, se referem às três dimensões que Foucault trabalha sucessivamente: saber, poder e (produção de modos de) subjetivação. Para Deleuze, as primeiras duas dimensões de um dispositivo, ou aquelas que Foucault destaca em primeiro lugar, são as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação. Em terceiro lugar, um dispositivo implica linhas de forças. Essa linha de forças produz-se “em toda a relação de um ponto a outro” e passa por todos os lugares de um dispositivo. Invisível e indizível, esta linha está estreitamente mesclada com outras e é, entretanto, indistinguível destas. Trata-se da “dimensão do poder”, e o poder é a terceira dimensão do espaço interno do dispositivo, espaço variável com os dispositivos. Esta dimensão se compõe, como o poder, com o saber. “Os dispositivos têm, então, como componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se misturam, enquanto umas suscitam, através de variações ou mesmo mutações de disposição.” (DELEUZE, 1999, p. 58)

dispositivos são como pontos magnéticos disseminados por todo o campo político, como nervos que lançam suas terminações em todas as direções. Somos todos produzidos em dispositivos de poder. Diante disso, a pergunta que aqui exige uma resposta é a seguinte: se não é possível, nem desejável, eliminá-los, como desativá-los? Como usá-los de outro modo? Quais as vias possíveis de desarticulação dos dispositivos do poder? Se for da natureza dos dispositivos ser operante, toda desativação equivaleria a uma eliminação. Se, por exemplo, a conexão entre doença mental e exclusão social for fundante, não será possível pensar qualquer espécie de atribuição de cidadania à doença mental.

Diante da condição de ser sujeito, Agamben (2009) propõe uma ação que possa fazer frente ao desenvolvimento complexo dos dispositivos: a profanação. Ou seja, uma prática crítica que seja capaz de abolir a separação que constitui o que é sagrado e restitua tais mecanismos ao campo do humano; ou, ainda, que desenvolva novos e incongruentes meios de uso do sagrado. O filósofo italiano nos alerta acerca do risco implícito ao esvaziamento do uso como experiência. Nas suas palavras: “Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente improfanável.” (AGAMBEN, 2009, p. 71).

Se, em Foucault, os dispositivos se apropriam da mudança e a reinserem através da sobredeterminação funcional e do preenchimento estratégico, para Agamben, a principal tarefa política na atualidade é a superação desse movimento através da profanação, segundo a conceituação mais ampla proposta pelo filósofo italiano. Cabe, portanto, tentar realizar a quebra dessa sequência ou, pelo menos, reconhecer e questionar esse desdobramento. Pois, o improfanável – objetivo e função do capital – “[...] baseia-se no aprisionamento e na distração de uma intenção autenticamente profanatória”. Por isso, é importante toda vez arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram: “a profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.” (AGAMBEN, 2009, p. 79).

Além de defender a possibilidade de deslocamento ativo dos dispositivos, Agamben (2009) afirma a existência de uma atitude ou condição de resistência ao abrigo de qualquer tentativa de dominação e anterior, portanto, a priori, às relações de poder. Nas palavras do filósofo italiano, é necessário “levar à luz aquele ingovernável, que é o início e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda política.” (AGAMBEN, 2009, p. 51). Esta afirmação ecoa em

Deleuze e também pode ser encontrada no próprio Foucault37. Para Deleuze, há um ponto de

37 Os posicionamentos mais ou menos livres dos sujeitos em relação aos dispositivos, conforme Foucault,

inflexão subjetivo: “a resistência tem o primado, na medida em que as relações de poder se conservam por inteiro no diagrama, enquanto as resistências estão necessariamente numa relação direta com o lado de fora.” (DELEUZE, 2006, p. 96 [1988])

No que tange à função metodológica da noção de dispositivo, fundamental para o empreendimento arqueogenealógico desta dissertação de mestrado, este aparece como formação ou arena sobre a qual o investigador atua como um desembaraçador das linhas entrelaçadas, percorrendo-as como as divisões de um mapa, constatando desníveis e desvios do terreno (DELEUZE, 1999, p.1). Isto é, o dispositivo é concebido como algo existente que requer análise. Contudo, se o dispositivo existe é porque foi “fabricado”; daí que Veyne insiste: “ele [o dispositivo] inscreve no real o que não existe, submetendo-o à divisão do verdadeiro e do falso” (VEYNE, 2011, p.166). Assim, cabe ao (arqueo)genealogista exibir esta fabricação: não como detentor da derradeira verdade dos fatos, mas como um ficcionista, a partir da composição de um roteiro devidamente baseado em documentos oficiais, relatórios, decisões judiciais, prontuários, atas, entre outros.

Portanto, o dispositivo não é uma mera realidade cuja análise arqueogenealógica permite o desvelamento; nem esta noção funciona simplesmente como grade de inteligibilidade aplicada sobre determinado campo e objetos. O próprio dispositivo e o método de análise arqueogenealógica seriam ficções que, não obstante, funcionam no nível do real. Ademais, ao forjar uma cena dentro de outra cena, o genealogista produz sobreposições, provoca deslocamentos devido à evidenciação das lutas, das disputas cujo resultado remete diretamente à invenção – Erfindung é o termo nietzschiano a partir do qual Foucault construiu sua reflexão (FOUCAULT, 2002, p. 15 [1974]) – do que somos e do mundo em que vivemos. É com esse cuidado metodológico, nos moldes de prescrição de prudência, que pensarei os dispositivos em minha análise.

agonísticas de resistência e de produção de liberdade nos dispositivos, sem me deter, propriamente, nas diferenças entre os autores – o que fugiria do escopo da dissertação, não obstante sua importância.

3 UMA BREVE ARQUEOGENEALOGIA DO ALCOOLISMO NO BRASIL

A fim de inteligir os discursos sobre o alcoolismo38, então, da perspectiva

argueogenealógica e de um debate acerca do biopoder e da governamentalização, é mister se debruçar sobre as práticas de produção de verdades e assumir, com Michel Foucault, que é a partir da constituição das ciências do homem e da vida, em sua articulação com o surgimento de uma nova modalidade de poder, que a função do exame, do diagnóstico e do especialista enquanto um espaço de exercício do poder disciplinar, devem ser compreendidos. A análise da função desempenhada pela internação compulsória dentro da sociedade deve levar em consideração o fato de que esta instituição consolida-se como espaço de produção/reprodução de discursos e saberes em consonância com as estratégias do poder disciplinar, cujo objetivo é a fabricação de corpos úteis e submissos.

Isto posto, passemos a analisar os discursos médicos-institucionais sobre o dispositivo do alcoolismo e o alcoolista no Brasil.