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Do poder disciplinar à biopolítica e à governamentalização do Estado

2.4 Sobre o empreendimento genealógico

2.4.6 Do poder disciplinar à biopolítica e à governamentalização do Estado

Numa apropriação do estudo de Ernst Kantorowicz sobre Os dois corpos do rei, Foucault estabelece um paralelo entre a relação dos dois corpos do rei durante o período medieval e a produção da alma do sujeito moderno. Com efeito, como suplemento do poder real na Idade Média, há um desdobramento de seu corpo num duplo seu, de maneira que, além do elemento transitório, mortal, na teologia jurídica medieval o rei comporta outro que permanece como suporte do reino, como seu corpo místico. Giorgio Agamben, em Homo sacer:

o poder soberano e a vida nua, de 1995, em uma releitura de Os dois corpos do rei, de Ernst

Kantorowicz, pensa o homo sacer como uma figura originária capaz de explicar a dupla exceção que se constitui na experiência política contemporânea, apresentada por ele como uma reatuzalização do que chama “bando soberano”. Soberania, na concepção agambeniana, refere- se ao conceito apresentado por Carl Schmitt, que diz “[...] soberano é aquele que decide sobre o Estado de Exceção.” (AGAMBEN, 2010, p. 19 [1995]).

Justificando a existência do poder soberano como forma de controle do Estado de exceção, Agamben demonstra que o conceito apresentado está intimamente relacionado à vida, confinando-a. Segue: o soberano está ao mesmo tempo inserido e exteriorizado pelo ordenamento jurídico, visto que é ele quem decide sobre a validade ou não da lei no espaço do Estado. Isto implica dizer que o poder soberano poderá ditar qualquer norma e qualquer comportamento dentro da sociedade, em virtude de estar o mesmo, ao mesmo tempo presente em todo o ordenamento jurídico, mas também fora dele. Esta presença-ausência se demonstra pelo simples fato de que, ao proclamar o Estado de Exceção, o soberano não se submete, mas determina-o. É justamente pela biopolítica que se torna possível o controle total e absoluto do Estado sobre os indivíduos. Nas palavras de Agamben, na “[...] biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal.” (AGAMBEN, 2010, p. 149 [1995]).

Retomo Foucault para pensar o corpo e iniciar uma discussão sobre a biopolítica. Na inversão que Foucault faz, no caso do corpo do condenado, passa a haver um desdobramento

da alma, produzida pelos próprios mecanismos disciplinares instituídos pelo poder e seu aparato punitivo.

Se o suplemento de poder do lado do rei provoca o desdobramento de seu corpo, o poder excedente que se exerce sobre o corpo submisso do condenado não suscitaria um outro tipo de desdobramento? Aquele de um incorpóreo, de uma alma [...] Mais do que ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, reconhece-se ali sobretudo o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo. Não seria preciso dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico. Mas que ela existe, que ela tem uma realidade, que ela é produzida permanentemente, ao redor, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre aqueles que se pune – de uma forma mais geral sobre aqueles que se vigia, que se educa e se corrige, sobre os loucos, as crianças, os estudantes, os colonizados, sobre aqueles que são fixados a um aparelho de produção e são controlados ao longo de toda sua existência. Realidade histórica dessa alma, que diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce culpada e punível, mas nasce sobretudo de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de obrigação. Essa alma real e incorpórea não é substância; ela é o elemento onde se articulam os efeitos de certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. (FOUCAULT, 2013, p. 31 [1975])

Citação longa, mas nodal para o que aqui se discute. As disciplinas visam, como vimos, através do corpo, a alma do indivíduo. Na verdade, mais do que atingir a alma do indivíduo, elas visam produzi-la através de procedimentos específicos, de normalização. Dessa forma, “[...]o que começa a se esboçar agora é uma modulação que se refere ao infrator mesmo, a sua natureza, seu modo de vida e de pensar, a seu passado, à qualidade e não mais à intenção de sua vontade” (FOUCAULT, 2013, p. 31[1975]). É com essa convicção que Foucault discute em

Vigiar e Punir a criação do panoptismo como um sistema de vigilância e controle exercido

sobre o sujeito. A partir da análise do Panopticon, de Jeremy Bentham32, Foucault vai

apresentar o panoptismo como a criação de um dispositivo33 de saber-poder, baseado na

vigilância e no controle. Esse dispositivo irá funcionar por meio da visibilidade e da localização dos corpos no espaço, fazendo com que o sujeito sinta-se controlado pela simples força do olhar daquele que o observa, já que o observador deve estar permanentemente observando, daí o efeito mais importante do panóptico: induzir no sujeito um estado permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder.

32 O panóptico é uma prisão cuja arquitetura é da seguinte forma: ao redor de uma torre cheia de janelas é construído

um conjunto de celas em forma de anel que terão as janelas da torre direcionadas para a parte interna desse anel. Cada cela terá duas janelas, uma na parte externa e outra na parte interna do anel, que será correspondente às janelas da torre. Isso será necessário para que a luz que atravessa a cela chegue até a torre e então é só colocar um vigia na torre central que ele terá uma visão privilegiada do sujeito que está sendo vigiado (FOUCAULT, 2013, p. 190 [1975]).

O panóptico foi fundamental para aperfeiçoar o poder no século XVIII, pois tornou desnecessário o uso da força bruta para obter o controle dos indivíduos, uma vez que o sujeito sentia-se vigiado mesmo quando não era observado por ninguém. Esse dispositivo de poder tornou-se indispensável e sua utilização ampliou-se para vários setores da sociedade como, por exemplo, as escolas, as fábricas, os conventos, os hospícios e quaisquer outras instituições no qual o controle sobre o comportamento se fazia necessário. Com isso, tem-se um mecanismo de poder disciplinar que fará nascer de uma relação fictícia uma sujeição real. Percebe-se o nascimento de uma nova tecnologia de poder disciplinar com a capacidade de alcançar diversas instituições de poder. Esse alcance possibilita a diversificação da utilização das técnicas panópticas considerando que “[...] o panóptico pode ser utilizado como uma máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou re-treinar os indivíduos.” (FOUCAULT, 2013, p. 193 [1975]).

Aqui cabe lembrar Deleuze, quando em 1990, em Conversações, no Post scriptum:

sobre as sociedades de controle, menciona que Foucault analisa muito bem esse projeto ideal

dos meios de confinamento do modelo disciplinar, sabendo inclusive da sua brevidade, já que para Deleuze as sociedades disciplinares também teriam sua crise perante as novas forças das sociedades de controle, que precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial.

Na esteira do empreendimento arqueogenealógico, sabendo que o corte “metodológico” foucaultiano se dá pelas fissuras e descontinuidades da história, eis que paralelo ao poder disciplinar vê-se surgir no final do século XVIII um tipo de poder que se voltará não mais para o sujeito em particular, mas para a população. Ora, a partir da época clássica, o Ocidente conheceu uma transformação muito profunda desses mecanismos de poder. O formidável poder de morte apresenta-se agora como o complemento de um poder que se exerce, positivamente sobre a vida, através da sua gestão, sua majoração, sua multiplicação e o exercício de controles precisos e regulações de conjunto. Esse mecanismo de saber-poder será chamado por Foucault de biopoder:

[...] essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder. (FOUCAULT, 2008, p. 3 [1978])