• Nenhum resultado encontrado

2.3 Para os saberes: uma arqueologia

2.3.2 A formação do discurso como luta

Para interrogar e descrever as condições de aparecimento histórico dos discursos torna- se imprescindível os conceitos de enunciado e de formação discursiva. Foucault (2014 [1969])

estabelece os enunciados25 como as unidades mínimas de sua análise, como unidades que

formam os discursos. Para Butturi Junior (2009), Foucault inscreve os enunciados verticalmente, como “função de existência”, “[...] cujo exercício ocorre sob determinação de regras que envolve o campo da enunciação (que pode tornar-se sujeito de que tipo de enunciado) e uma materialidade sócio-institucional particulares.” (BUTTURI JUNIOR, 2009, p. 120). Desta forma, o enunciado depende de uma materialidade, no sentido de uma estrutura de poder (MACHADO, 2006). Sob um viés específico, podemos reconhecer que, para Foucault, os enunciados obedecem ao princípio da raridade, na medida em que só se tornam visíveis no tempo e dependem, portanto, de uma análise de amplos momentos históricos para se tornarem inteligíveis (FOUCAULT, 2014 [1969]). É a raridade dos enunciados uma condição da arqueologia, que se questiona sobre o porquê da existência de certos enunciados e não sobre sua verdade.

Tendo por base a constatação da existência dos processos de descontinuidade e da dispersão enunciativa, o objetivo da arqueologia de Foucault será uma busca pelo entendimento de como certos campos complexos do saber, como a medicina e as humanidades, puderam tomar forma e existir enquanto tais. Para compreender como se efetuam as relações entre os enunciados nos campos de saber, Foucault lança mão de quatro modos de regularidades, que

25 Inicia a definição de enunciado negativamente, definindo aquilo que um enunciado não é: não é uma proposição

investiga segundo a ordem das formações discursivas: “as regras de formação dos objetos (a constituição dos objetos do saber), a formação das modalidades enunciativas (a constituição dos sujeitos do saber), a formação dos conceitos (a constituição da organização formal do saber) e a formação das estratégias de tomada do poder no campo dos saberes (a constituição do discurso como luta)” (BUTTURI JUNIOR, 2009, p. 168).

Retomo as quatro teses propostas por Foucault. Primeiramente apresento a formação

dos objetos. Para Butturi Junior (2009, p.169) o francês é “[...] bastante enfático em sua

desontologização do objeto e na negação de seu entendimento empírico.” Esses objetos devem ser definidos sob diversos aspectos. Primeiramente, são históricos, não se podendo dizer qualquer coisa em qualquer época (tal qual a metáfora do aquário de Paul Veyne já mencionada). Eles não preexistem a eles mesmos, só surgindo sob condições positivas de um feixe de relações que se estabelecem entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação e modos de caracterização que, todavia, não tecem a trama do objeto, mas permitem o seu aparecimento. Essas complexas relações estão no limiar do discurso, determinando o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de determinado objeto (FOUCAULT, 2014, p. 50-51

[1969]). Em movimento, caracterizam o próprio discurso enquanto prática26.

O segundo elemento é o da formação das modalidades enunciativas, “[...] responsáveis por garantir o status de enunciador legítimo, e ao mesmo tempo, a sujeição dos outros enunciadores à forma da alteridade (BUTTURI JUNIOR, 2009, p. 170). Para Foucault, não é um estilo enunciativo que encerra determinado discurso, sendo preciso descrever uma coexistência de enunciados dispersos visando buscar sua articulação e determinar as regras que permitem a existência de enunciações diversas. Estas regras remetem a questões como: 1) quem fala?; quem, entre todos os sujeitos falantes possui legitimidade para enunciar; 2) de quais lugares institucionais ele obtém o seu discurso?; de qual lugar advêm tanto os objetos e enunciados quanto sua legitimidade; 3) que posições o sujeito ocupa em relação aos domínios ou grupos de objetos?; como estes percebem, observam, descrevem, ensinam? Estes três questionamentos põem o discurso novamente em um jogo de relações, uma prática que articula

status, lugares e posições. Dito de outro modo, produz um campo de regularidades para as

diversas (e dispersas) posições de subjetividade (FOUCAULT, 2014, p. 60-61 [1969]).

26 Em termos de análise, todo e qualquer objeto (loucura, medicina, economia, entre outros) deve ser “[...]

relacionado ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico.” (FOUCAULT, 2014, p. 53 [1969])

Quanto ao terceiro elemento, a formação dos conceitos, “[...] o cuidado arqueológico está em dissolver os equívocos, sobretudo os provocados pela manutenção dos temas da loucura como ausência de obra [como um conceito], no que Rajchman (1997 [1985]) chamou de “modernismo” foucauldiano [...]: a discussão da loucura (grifo nosso) como um a priori, uma categoria revolucionária em relação aos discursos verdadeiros.” (BUTTURI JUNIOR, 2009, p. 171). Mais uma vez, abordando agora os conceitos, não se trata de analisar os mesmos em uma “arquitetura dedutiva” formada pelos principais conceitos. Trata-se antes de considerar as regras que tornaram possível o aparecimento e a transformação desses, em um nível que Foucault denomina de pré-conceitual. Essas regras anônimas do pré-conceitual dos saberes que invadiriam, no limite, não só o campo das humanidades, além de instituir peremptoriamente o lugar do arqueólogo diante da epistemologia francesa, trazem o esboroamento da noção da

episteme, pois reinvindicam uma especificidade fundante dos domínios do saber que escapa às

generalizações vislumbradas outrora. Certamente, uma formação discursiva dispõe regras para os conceitos e sua circulação. No entanto, essas escapam ao formal da idealização teleológica e à homogeneização das configurações de saber totalizantes. Em termos aqui profícuos: nem categoriais e dispersas na multiplicidade (BUTTURI JUNIOR, 2009, p. 171-172).

O último dos níveis é o dos temas e teorias, ou seja, formação das estratégias. Os discursos em amplos sentidos fazem uso de certas organizações conceituais, agrupamentos de objetos e tipos de enunciação que formam temas e teorias. Como em uma mesma formação discursiva podem coexistir várias teorias, e mesmo teorias conflitantes, a análise deve definir qual é o sistema de relações que, em meio a diversas estratégias, é capaz de efetuar a unidade do discurso. A análise destas estratégias, segundo Foucault (2014 [1969]), deve determinar primeiramente os pontos de difração do discurso, ou seja, pontos de incompatibilidade entre dois objetos, dois tipos de enunciação ou dois conceitos. Em seguida, se estabelecem os pontos de equivalência, já que as teorias discordantes surgem da mesma maneira e a partir das mesmas regras. Por último, se caracterizam os pontos de ligação de uma sistematização, de níveis ao mesmo tempo incompatíveis e equivalentes, que podem formar até subconjuntos discursivos.

Além disto, a questão das estratégias é central na mobilização de certos níveis, e não de outros. Estratégias que se pautam nas posições estabelecidas nas instâncias de apropriação dos enunciados; na relação do discurso com um campo de práticas não discursivas; e mesmo na posição do desejo, em meio às possibilidades do discurso. Escolhas estas, por fim, que não se encontram exteriores ao discurso, “[...] não são elementos perturbadores que, superpondo-se à sua forma pura, neutra, intemporal e silenciosa reprimiriam e fariam falar em seu lugar um

discurso mascarado, mas sim elementos formadores” (FOUCAULT, 2014, p. 75 [1969]). Finalizo com Butturi Junior (2009, p.172):

Uma formação discursiva, da perspectiva de uma estratégia, é sempre cindida entre a positividade de um saber que legitima e a positividade de uma alteridade que constitui. Foucault, todavia, e por conseguinte, insiste que não há um silêncio profundo nem uma revelação no que se torna o Outro: definindo em última instância os limites de uma formação de discursos, é essa estratégia o elo mais explícito com o desejo que, enquanto extrapola o discursivo, é também constituído por ele.