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2.3 Para os saberes: uma arqueologia

2.3.1 O discurso e os saberes

N’A arqueologia do saber a definição de todo o (anti)método se construirá na definição dos principais objetos: o discurso, o enunciado e o saber.

Foucault define o discurso como “[...] um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva”; este conjunto é limitado a um certo número de enunciados, além de ser “[...] histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo.” (FOUCAULT, 2014, p. 132-133 [1969])

Os discursos possuem um suporte histórico e institucional, que permite ou proíbe sua realização. Tem-se aqui a compreensão do discurso como uma prática, que constrói seu sentido nas relações e nos enunciados em funcionamento. Esta prática discursiva se define como um “[...] conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que

definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.” (FOUCAULT, 2014, p. 133 [1969]).

Estabelecidos como regimes de práticas, os discursos são analisados a partir dos documentos, entendidos como monumentos. Ser encarado como monumento significa dizer que o discurso (o documento) será passível de ser desmontado em busca de unidades coerentes que possam, estas sim, nos permitir uma análise arqueogenealógica referente ao período sobre o qual nos debruçamos. Por correlato, ele inaugura uma crítica do documento:

[...] em nossos dias, a história é o que transforma documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinha sido uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo reestabelecimento de um discurso histórico; que poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento. (FOUCAULT, 2014, p. 8 [1969])

Essa crítica do documento, entendido como monumento, comporta justamente o que pretendo estudar nessa dissertação de mestrado. Baseada na investigação que Foucault apresenta em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (2013 [1973]) e A Vida dos homens infames (2003 [1977]) também tomo os documentos (locais, regionais), como monumentos para estudar as lutas discursivas, sob relações de saber e poder, que legitimam os saberes sobre o alcoolismo no contemporâneo.

Do que trata Foucault quando se volta a esses saberes, afinal? Deleuze (2006) atesta que o saber, como processo de produção de sentido, produção de estratégias e produção de sujeitos, assim como o discurso, não é somente o texto, mas é, sobretudo, constituído por uma combinação do “ver” e do “falar”, ou seja, daquilo que é visível e enunciável. Essas duas formas, dentro do processo de constituição do saber, nas formações históricas, segundo Deleuze, nunca se confundem, ou seja, nada é diretamente visível ou enunciável, necessitando, portanto, de uma combinação entre os termos para que o saber se torne possível, por meio, do que Deleuze chama, de campo de visibilidade ou dizibilidade e o que Foucault chamará de “entre lugar” ou “não lugar” (2014 [1969]). Segundo Deleuze, “[...] em Foucault os locais de visibilidade não terão jamais o mesmo ritmo, a mesma forma que os campos de enunciados.” (DELEUZE, 2006, p. 60).

O corpo, por exemplo, só ganhou a existência que conhecemos a partir das modificações discursivas da passagem da Idade Média para a modernidade. No segundo capítulo do livro

Foucault: seu pensamento, sua pessoa intitulado Só há a priori histórico, Paul Veyne aborda a

questão da concepção histórica preconizada por Foucault. Para Veyne, em Foucault não estaríamos tentados a nos referirmos a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma evidência que se impõe da mesma maneira a todos. Trata-se de fazer surgir uma singularidade: mostrar que não era tão evidente assim: “Não era tão evidente que os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais; não era tão evidente que a única coisa que se podia fazer com um delinquente era trancafiá-lo. Não era tão evidente que as causas da doença devessem ser buscadas no exame individual do corpo.” (FOUCAULT apud VEYNE, 2011, p. 34). Contudo, “não se pode pensar qualquer coisa em qualquer época.” (VEYNE, 2011, p.35).

Veyne utiliza-se da metáfora do aquário, sendo esta uma representação do lugar em que os sujeitos de dada época ocupam e deste lugar contemplam, de modo geral, a realidade que os cerca. Assim, toda a produção de saberes (científicos, tecnológicos, sociais, religiosos, institucionais, etc.) submete-se a essas estruturas. Apesar da produção de conhecimento de uma dada época estar condicionada a certas estruturas vigentes, estas podem ser alteradas pela produção e circulação de novos acontecimentos, novos discursos. Em suma, as “paredes” ou o “bocal” desse aquário se deslocam, sofrem alterações resultantes das constantes transformações sócio históricas. “Se mudamos então de aquário, é para nos vermos em um novo aquário. Esse aquário ou discurso é, em suma, “o que poderíamos chamar de a priori histórico.” (VEYNE, 2011, p. 35).

Da perspectiva de um “aquário”, a leitura arqueológica procede então à delimitação das regras de formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos e das estratégias enunciativas com o objetivo de estabelecer o tipo de positividade que os caracteriza. Essa positividade é a de um saber, não de uma ciência:

Primeira questão: será que a arqueologia sob termos um pouco bizarros como “formação discursiva” e “positividade”, não descreve simplesmente pseudociências (como a psicopatologia), ciências em estado pré-histórico (como a ciência natural) ou ciências inteiramente impregnadas de ideologia (como a economia política)? Ela não é a análise privilegiada do que permanecerá sempre quase científico? Se chamamos “disciplinas” a conjuntos de enunciados que tomam emprestado de modelos científicos sua organização, que tendem a coerência e à demonstratividade, que são recebidos, institucionalizados, transmitidos e às vezes ensinados como ciências, não se poderia dizer que a arqueologia descreve disciplinas que não são efetivamente ciências, enquanto epistemologia descreveria ciências que se formaram a partir (ou a despeito) das disciplinas existentes? Podemos responder negativamente a tais questões. A arqueologia não descreve disciplinas. Essas, no máximo, em seu desdobramento manifesto, podem servir de isca para a descrição das positividades; mas não lhe fixam os limites: não lhe impõem recortes definitivos; não se encontram inalteradas no fim da análise; não se pode estabelecer relação biunívoca entre as disciplinas e as formações discursivas. (FOUCAULT, 2014, p. 215[1969])

Com Foucault, é possível efetuar uma distinção entre um limiar de cientificidade, que apenas alguns discursos alcançaram, e um limiar de positividade, indispensável para a própria existência e funcionamento de qualquer discurso, incluindo o dos saberes sobre o homem, as ciências humanas. Enquanto a epistemologia normativa estabelece a legitimidade (ou a falta dela) de um determinado discurso, a arqueologia interroga as condições de existência dos discursos, até mesmo dos que se pretendem científicos. Em termos de análise, todo e qualquer objeto (como por exemplo a loucura) deve ser “[...] relacionado ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico.” (FOUCAULT, 2014, p. 53 [1969]).