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2.4 Sobre o empreendimento genealógico

2.4.1 A genealogia é cinza

Com vistas à fundamentação conceitual inicial desta seção, tomo como base o texto intitulado Nietzsche, a genealogia e a história27, de Michel Foucault, escrito em 1971 e publicado em 1974, a partir do qual são extraídas as principais noções que envolvem a proposição da história genealógica, cujo objetivo precípuo é projetar saberes contra a pretensão de um bloco monolítico de saber que, em sua dominação acaba por produzir efeitos de poder na elaboração e legitimação dos conhecimentos históricos. Na genealogia há essa ampliação do campo de interesse de Foucault, na medida em que ele busca mostrar a correlação entre discursos e práticas sociais, enfocando explicitamente a temática do poder.

Foucault introduz o termo genealogia na obra Vigiar e punir: história da violência nas

prisões (2013 [1975]) onde seu sentido aparece da forma mais clara28 (MACHADO, 2006):

“[...] uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico judiciário onde o poder de punir se apoia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade.” (FOUCAULT, 2013, p. 26 [1975]). Um pouco adiante, ainda no capítulo introdutório, Foucault menciona novamente o termo: “[...] A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna.” (FOUCAULT, 2013, p. 26 [1975]).

27Este texto foi publicado inicialmente em Hommage à Jean Hyppolite, em 1971, em seguida, lançado no Brasil,

no ano de 1979, numa coletânea traduzida e organizada por Roberto Machado e, posteriormente publicado em 1994, na França, no Volume II da coleção de quatro volumes, intitulada Ditos e Escritos, dirigida por Daniel Defert e François Ewald, reunindo conferências, entrevistas e outros textos de Foucault até então esparsos.

28Machado ressalta que a expressão aparece também na obra História da Sexualidade I: a vontade de saber e em

Genealogia é um conceito que Foucault utiliza a partir de Friedrich Nietzsche. No parágrafo 7 do Prólogo da Genealogia da Moral, Nietzsche refere:

Meu desejo, em todo caso, era dar um olhar tão agudo e imparcial, uma direção melhor, a direção da efetiva história da moral, prevenindo-o a tempo contra essas hipóteses inglesas que se perdem no azul. Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano. (NIETZSCHE, 2009, p. 13 [1887])

Foucault assim retoma Nietzsche:

A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos. [...] A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência. [...] Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta−histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da "origem". (FOUCAULT, 2015d, p. 55-56 [1971])

Aqui coloco a discussão que Foucault (p. 56, 2015d [1971]) apresenta sobre os empregos das palavras Ursprung (origem) e Herkunft (originário) encontrados em Nietzsche.

Ursprung tem dois empregos. Um não é marcado, encontrado em alternância com o termo Herkunft, aparecendo em Para genealogia da moral (a propósito do dever moral ou do

sentimento de falta) e em A gaia ciência (a propósito da lógica e do conhecimento). Outro emprego da palavra Ursprung é marcado: em Humano, demasiado humano quando Nietzsche coloca frente a frente a origem miraculosa (Wunder-Ursprung) que a metafísica procura.

Ursprung é também utilizado de maneira irônica e depreciativa (“Em que, por exemplo,

consiste esse fundamente originário (Ursprung) da moral que se procura desde Platão?” (NIETZSCHE apud FOUCAULT, 2015d, p. 57 [1971]). No prefácio de Para genealogia da

moral aparece um dos textos mais significativos do uso de todas essas palavras e dos jogos

próprios do termo Ursprung, como se Nietzsche “quisesse acentuar uma oposição entre

Ursprung e Herkunft com a qual ele não trabalhava dez anos antes. Mas, imediatamente depois

[...] volta [...] a utilizá-los de modo neutro e equivalente” (FOUCAULT, 2015d, p. 58 [1971]):

Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa de origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente “desrazoável” – do acaso. A dedicação à verdade e ao rigor dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre retornadas, da necessidade de suprimir a paixão – armas lentamente forjadas ao longo das lutas pessoais. E a liberdade, seria ela, na raiz do homem o que o liga ao ser da verdade? De fato, ela é apenas uma “invenção das classes dominantes”. O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate. (FOUCAULT, 2015d, p. 59 [1971])

Por se tratar de um tipo especial de história, a genealogia é um tipo de pesquisa que se deve fazer com bastante precisão, sobretudo porque não se trata de fazer uma busca pela origem: “a história ensina também a rir das solenidades de origem” [...], no sentido literal, em que “gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontram em estado de perfeição” (FOUCAULT, 2015d, p. 59 [1971]) pelo contrário, procura dedicar-se à análise meticulosa de toda a construção histórica dos saberes reconhecendo os acontecimentos da história como peças fundamentais. A pesquisa genealógica não parte de um objeto fixo no presente para ir ao passado na tentativa de explicar a origem de tal objeto, mas mapeia as investigações de fragmentos e omissões que, na história tradicional, são deixados de fora. Esse mapeamento é um tipo de pesquisa que Foucault chama de “ascendência”, pois se trata da descrição de fatos históricos construídos sobre interpretações.

Para que se possa fazer uma pesquisa genealógica, deve-se ter alguns cuidados que Foucault chama de precauções metodológicas. Estas por sua vez são elencadas da seguinte maneira: a primeira precaução é analisar o poder não em seu centro, mas nas extremidades, em suas formas e instituições mais regionais. Segunda precaução: ao invés de se perguntar, quem tem o poder? Ou por que alguns querem dominar? Deve-se estudar o poder em sua face externa, onde ele se relaciona diretamente com o seu objeto, ou seja, onde ele se implanta e produz seus efeitos reais. Terceira precaução: o poder deve ser analisado como algo que só funciona em cadeia. Por isso, não se deve tomá-lo como um fenômeno de dominação maciço de um indivíduo sobre os outros. Quarta precaução: fazer uma análise descendente, ou seja, analisar como as técnicas de poder atuam nos níveis mais baixos, como se deslocam e se modificam sendo depois anexados por fenômenos mais globais. Quinta e última precaução: devido ao fato de as grandes máquinas de poder serem acompanhadas de produções discursiva, para que o poder seja exercido, será necessário organizar aparelhos de saber que não são construções ideológicas. (FOUCAULT, 2015b, p. 282-289 [1976]).

Para o francês, cabe à genealogia colocar em suspenso os saberes colonizadores e englobantes e seus privilégios, por meio de:

[...] pesquisas genealógicas múltiplas, ao mesmo tempo redescoberta das lutas e memória brutal dos combates. E essa genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só se pôde tentar realizá-la na condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica. (FOUCAULT, 2015b, p. 267 [1976])

Chamemos, com o francês, provisoriamente “genealogia” o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas práticas atuais (FOUCAULT, 2015b, p. 267-268 [1976]). Para designar o ponto de surgimento no passado, Foucault se utiliza do termo emergência para garantir que não se entenda este passado como um conceito de presente:

Entestehung designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. [...]

Colocando o presente na origem, a metafísica leva a acreditar no trabalho obscuro de uma destinação que procuraria vir à luz desde o primeiro momento. A genealogia reestabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações. A emergência se produz sempre em um determinado estado de forças. A análise de Herkunft deve mostrar seu jogo, a maneira como elas lutam umas contra as outras, ou seu combate ante circunstâncias adversas, ou ainda a tentativa que elas fazem – se dividindo – para escapar da degenerescência e recobrar o vigor a partir do próprio enfraquecimento. (FOUCAULT, 2015d, p. 66 [1971])

O que Nietzsche chama Entestehungsherd do conceito de bom, em Genealogia da

Moral (NIETZSCHE apud FOUCAULT, 2015d, p. 68 [1971]), não é exatamente “nem a

energia dos fortes nem a reação dos fracos, mas sim a cena onde eles se distribuem uns frente aos outros, uns acima dos outros; é o espaço que os divide e se abre entre eles, o vazio através do qual eles trocam ameaças e palavras”. A emergência designa esse lugar de afrontamento, um “não lugar”: “Ninguém é, portanto, responsável por uma emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela sempre se produz no interstício.” (FOUCAULT, 2015d, p. 68 [1971]). Para o autor, são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater (FOUCAULT, 2015d, p. 268 [1971]). Ainda questiona o francês: “[...] em uma sociedade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir discursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?” (FOUCAULT, 2015b, p. 278 [1976]).

Essa pesquisa de mestrado, tomando o problema da origem em consideração, se inscreve no campo das análises genealógicas, ainda, porque mantém um importante deslocamento com relação à certa ciência política, que limita ao Estado o fundamental da investigação sobre o poder, entendendo uma não sinonímia entre Estado e poder, tal qual Foucault evidenciou

estudando a formação das sociedades capitalistas (MACHADO apud FOUCAULT, 2015 [1979]). A análise genealógica do poder se dá na sua forma mais regional e concreta: as internações compulsórias de sujeitos ditos alcoolistas, em Erechim, investido em instituições: o CAPSad, a Justiça, a família e o hospital; tomando corpo em técnicas de dominação (culminado em última instância na dominação do corpo, dominação propriamente dita através da condução coercitiva) e situa-se na cotidianidade da vida. Apresentam-se aqui dois aspectos intimamente ligados: a atenção a suas formas locais e a investigação dos procedimentos técnicos do poder que realizam esse controle detalhado e minucioso do corpo. Essas análises apontam para uma consequência política que tem como objetivo não apenas dissecar e esquadrinhas teoricamente as relações de poder, mas também servir como instrumento de luta, articulado com outros instrumentos, contra essas mesmas relações de poder. O interessante dessa análise, cabe ressaltar, é que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico único da estrutura social, mas situam-se em uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa (MACHADO apud FOUCAULT, 2015 [1979]) – incluindo, como se verá, também as políticas estatais do liberalismo.