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2.6 AVALIAÇÃO DA PRODUÇÃO TEXTUAL: SOB O PONTO DE VISTA DO GÊNERO

2.6.1 A Produção Textual sob o Ponto de Vista do Gênero do Discurso

No desenvolvimento deste capítulo, adiantamos algumas análises/conclusões sobre a repercussão do estudo do gênero na leitura de artigos e na prática de produção textual. Para avaliarmos a produção textual sob o ponto de vista do gênero artigo, destacamos trechos dos textos produzidos a fim de fundamentar nossa análise. Adotamos, para essa análise, uma seqüência numérica, colocada entre parênteses após cada característica citada. Em seguida, transcrevemos o trecho correspondente em que se encontra a característica citada (em negrito), juntamente com o título do artigo, o autor (pseudônimo) e o número seqüencial do texto que consta no anexo H. Ressaltamos que na análise, mesmo de um fragmento, partimos do todo do enunciado. Ainda, nas transposições de exemplos para a análise, pode ocorrer a repetição de trechos dos artigos, mas o enfoque é para características distintas.

Como exposto, o primeiro assunto explorado nos artigos surgiu de uma sugestão ocorrida na Oficina: o uso do celular entre os adolescentes. O assunto para a produção do segundo artigo foi livre, mas, da mesma forma, surgiu das discussões durante a Oficina. Os artigos produzidos (Anexo H) tiveram as seguintes abordagens, todas ligadas aos adolescentes ou jovens: os esportes, o uso do Scoop Script, a relação entre a independência do Brasil e a do jovem, o uso da camisinha, os estilos musicais, a internet, o uso do computador, os valores da

vida, os adolescentes e a relação com os pais. Quer dizer, esses assuntos são atuais, fazem parte de um conteúdo temático ideologicamente ligado à realidade social dos autores adolescentes e os artigos se constituem como uma reação-resposta a esses acontecimentos abordados. Por serem os autores adolescentes estudantes, os artigos estão orientados aos seus interlocutores (leitores previstos), os próprios adolescentes estudantes, principalmente.

Observando as características nos textos produzidos (Anexo H), constatamos que os fatos desencadeadores dos artigos – as relações dialógicas e a reação ao já-dito – são tomados como objeto de crítica ou questionamento (01), de concordância ou de comentário positivo (02), de apoio para o discurso do autor (03) ou de ponto de partida (gancho) para a construção do artigo (04):

(01) [...] É o cúmulo nos dias de hoje vermos uma criança de 7, 8 ou até 9 anos com um celular na mão [...] (Celulares. Para quê. Por quê?, Lana, texto 13). (02) Hoje, com certeza, a internet é um dos meios de comunicação mais usados no mundo. (Internet, um novo meio de comunicação, Geruza, texto 02).

(03) [...] Nós, jovens, diante da modernidade, não conseguimos aceitar a situação de todos terem celular, menos nós. O celular é o nosso sonho de consumo [...] (O celular é pura moda !!!, Darci, texto18).

(04) [...] A prática de esportes entre nós, jovens e adolescentes, está cada vez mais rara [...] (Esporte na adolescência é fundamental, Ester, texto10).

(04) [...] Dia 7 de setembro, dia da Independência do Brasil. Os brasileiros comemoraram os 182 anos de independência do nosso país [...] (A independência que tanto esperamos, Nick, texto 07) (grifo nosso)

Há traços estilístico-composicionais na incorporação de outras vozes, da fala do outro, por intermédio de verbos introdutórios (05) e expressões avaliativas (06), no movimento dialógico de assimilação. O movimento dialógico de distanciamento – recurso através do qual o autor se opõe a alguma perspectiva ideológica – também é muito presente nos textos e pode ser percebido pelo uso de certas expressões avaliativas (07), da negação (08), das aspas (09) e pelo emprego de certos operadores argumentativos, como o mas (10):

(05) [...] Todos os meios de comunicação possíveis falam sobre o uso da camisinha e de sua grande importância [...] (Por que vacilar com a própria vida?, Duda, texto 04).

(06) [...] Hoje em dia é comum falarmos de música, por ser um assunto comum e popular entre os jovens [...] (Gosto musical, Tainá, texto 22).

(07) [...] Não podemos mentir que na maioria das vezes usamos sem necessidade, achamos divertido, mas temos de entender que para os nossos pais é preocupante. Gastamos muito com esse uso exagerado [...] (O uso exagerado dos celulares, Mara, texto 08).

(08) [...] Para mim, a palavra independência tem um sentido muito amplo, não se resume apenas ao dia 7 de setembro de 1822, quando foi proclamada a “Independência do Brasil” [...] (A independência que tanto esperamos, Nick, texto 07).

(09) [...] Com muita atenção isso não aconteceria, mas como nós, jovens, somos a descontração em pessoa, já chega a ser comum acontecerem erros “grotescos” durante os estudos [...] (Scoop Script 2004, Kely, texto 17).

(10) [...] O uso do celular entre nós, adolescentes, jovens e estudantes está cada vez mais freqüente. Para muitos de nós seria impossível viver sem o celular, isto está se tornando um vício. Mas será que o celular é tão essencial? [...] (O avanço da tecnologia: o celular, Ester, texto 09) (grifo nosso)

Notamos, ainda, a presença de discurso citado (11) e de pronome demonstrativo, não como elemento coesivo ou com a função de indicar um objeto no tempo e no espaço, de relação anafórica (KOCH, 2003), mas como um traço estilístico-composicional que evidencia um distanciamento ideológico do autor diante do discurso do outro (RODRIGUES, 2001a), no caso, do pai da adolescente (12):

(11) [...] O que vale mostrar em televisões, jornais, áreas desmatadas, queimadas, ar poluído, pessoas morrendo e espécies de animais desaparecendo, se ninguém faz nada, continuamos fazendo ainda pior. Só ouvimos dizer “Não faça isso, não faça aquilo”, mas a humanidade não transforma sua mente, seus atos [...] (Reciclando nossas mentes e nossos corações, Eva, texto 12).

(12) [...] Mas também gastamos tanto que nossos pais reclamam quando vem aquela “cooonta”, no fim do mês [...] (Celular: moda ou problema?, Patrícia, texto 05) (grifo nosso)

Podemos observar, também, na construção dos artigos, a presença do já-dito, as reações dialógicas com os elos anteriores da comunicação discursiva. Essas relações manifestam-se, segundo Rodrigues (2001a), não apenas no plano do conteúdo temático, mas também no plano estilístico-composicional, por meio da introdução do discurso do outro que sulca o artigo pela incorporação de enunciados, em maior ou menor grau. Como exemplo, temos a incorporação dos gêneros intercalados, marcada pelas aspas (01) e pela introdução de ditado popular (02), ambos buscando neutralidade (assimilação ou distanciamento) do articulista frente ao enunciado introduzido. Ocorre, também, a introdução do discurso do

outro através de discurso indireto analisador de conteúdo (BAKHTIN, 1992), cujo teor semântico é preservado pelo autor (03):

(01) [...] Nossos pais vivem dizendo: “Larga um pouco esse celular, economiza!” [...] (O uso exagerado dos celulares, Mara, texto 08).

(02) [...] Há aqueles que possuem o “mau gosto” para a música, há também as conhecidas “Maria vai com as outras” que “preferem” as músicas do momento [...] (Gosto musical, Tainá, texto 22).

(02) [...] E se é complicado para quem vive um adolescente, imagina pra quem tem que cuidar de 1,23... Os nossos pais, coitados, “ficam de cabelo em pé” [...] (Adolescentes e a relação com os pais, Roberta, texto 20).

(03) [...] Não consigo entender porque o uso da camisinha é visto por certas pessoas com preconceito! Alguns dizem que ela diminui o prazer, os padres, geralmente, dizem que é pecado, e outras pessoas têm a absurda idéia de que homem que é homem não usa camisinha [...] (Por que vacilar com a própria vida?, Duda, texto 04) (grifo nosso)

Ainda com relação aos gêneros intercalados, como vimos no primeiro capítulo, o seu papel não é apenas ajudar a construir o ponto de vista do autor. Ocorre, quando da incorporação de gêneros no artigo, a perda da relação do gênero transposto com a sua situação de interação, tornando-o acontecimento do gênero incorporado, no caso, o artigo. Nessa perspectiva, temos a introdução de ditado popular (01), de resumo (02) e de relato pessoal (03). Segundo Rodrigues (2001a, p. 238), a intercalação de gêneros “[...] possibilita ao autor se enunciar a partir de outros lugares enunciativos, dialogizando também o gênero [...]”:

(01) [...] Agora nem tanto, mas isso já pode ter facilitado os alunos na cola, porque com uma simples mensagem é possível passar a resposta certa da prova para se colega sem que a professora note, “é rir para não chorar” com tanta coisa que inventam [...] (Celular: a nossa febre, Kely, texto 16).

(02) [...] Dia 7 de setembro, dia da Independência do Brasil. Os brasileiros comemoraram os 182 anos de independência do nosso país. Em 1822, Dom Pedro I, às margens do rio Ipiranga, proclamou a independência do Brasil. Dia que ficou marcado na história do nosso país, como todo livro didático conta [...] (A independência que tanto esperamos, Nick, texto 07).

(03) [...] Posso dar um exemplo a vocês, meus amigos que convivem comigo todos os dias, desfilam com seus celulares nas mãos, mandam mensagens, fazem ligações sem necessidade. Isso tem um custo, não para os jovens que não estão nem aí se gastam bastante ou não, mas para os pais [...] (Celular, até que ponto!, Eva, texto11) (grifo nosso)

Sem traços lingüísticos visíveis, notamos a presença do discurso bivocal, tanto para assimilar vozes – o autor fala de seu lugar social, ampliando o conjunto de locutores (04),

como para distanciar a fala do outro, por meio do uso das aspas, para desqualificar o que o outro enunciou (05), e dos operadores mas e não, que fazem aflorar a tensão entre enunciados (06). Essas são indicações da bivocalidade nos artigos, refratando outras vozes no discurso:

(04) [...] Nossos pais estão sempre dizendo que antigamente as crianças fabricavam seus próprios brinquedos, de madeira, de pano [...] (O avanço da tecnologia: o celular, Ester, texto 09).

(05) [...] Talvez para convencermos nossos pais, nesse caso para quem depende deles para ganhar o seu, mas para os jovens que compram seus próprios celulares, muitas vezes tentam se convencer. Isso quando a propaganda excessiva já não tratou de resolver esse “problema” [...] (A febre do celular, Tainá, texto 21).

(06) [...] É claro que eles possuem muitos pontos positivos, é para isso que a tecnologia, esse crescimento está aí, para serem melhores para nós. Mas talvez devêssemos rever e pensar se devemos abrir mão de outras coisas para tê-lo e não só porque nosso vizinho tem um celular [...] (A febre do celular, Tainá, texto 21) (grifo nosso)

Na orientação para o leitor, para a sua reação-resposta ativa, os elos posteriores da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2003), na busca para fazer o leitor aderir ao discurso do articulista, observamos o movimento dialógico de engajamento, por meio do uso da primeira pessoa do plural – eu do autor + o tu do leitor – (01). No intuito de antecipar possíveis reações-resposta do leitor (enunciados pré-figurados), abafando prováveis vozes contrárias, constatamos, em algumas expressões, o movimento dialógico de refutação (02). E, ainda, através do emprego de alguns indicadores modais, percebemos uma imposição do autor sobre o ponto de vista do leitor, movimento dialógico este identificado como de interpelação (03):

(01) [...] Acredito que nós, jovens, somos o futuro do Brasil e acredito também que, se cada cidadão fizer a sua parte, o Brasil se tornará definitivamente um país independente [...] (A independência que tanto esperamos, Nick, texto 07).

(02) [...] O celular é o nosso sonho de consumo. Com ele podemos mandar torpedos, dar toques, ligar para os amigos... Mas é claro que nossos pais irão colocar defeito nisso. Dizem eles que não tem utilidade para nós, que ainda não temos responsabilidade. Mas não é bem assim [...] (O celular é pura moda!!!, Darci, texto18).

(03) [...] Também não podemos perder preciosas horas do nosso tempo presos a um celular. Devemos ser civilizados e se não soubermos lidar com ele, ele sim poderá nos controlar [...] (Celular, o que trazes de tão mágico, Duda, texto 03) (grifo nosso)

Outra característica que podemos perceber é o uso a primeira pessoa do plural, formando um eu do autor mais o tu do leitor como seu aliado. Com esse recurso estilístico,

cria-se no artigo um efeito de duplicidade enunciativa. No exemplo que colocamos, é possível observar que, nesse engajamento do leitor, o autor passa da primeira pessoa do singular (o eu do articulista) para a primeira do plural (o eu do articulista + o tu do leitor) (01). Há, ainda, pistas de um diálogo não desenvolvido em que o autor se antecipa às prováveis indagações que o leitor poderia fazer ao se confrontar dialogicamente com o artigo lido. Essa estratégia estilística objetiva evitar uma contra-palavra, uma contestação do leitor com relação ao ponto de vista do autor. Como exemplo, há o emprego do indicador modal É por isso que, como estratégia de incutir um ponto de vista (uma marca da autoridade do articulista) do autor (02). Verificamos, além disso, o uso do operador mas (03) e da negação articulada ao mas (04), que constituem uma reação-resposta a uma possível contestação do leitor. Constatamos o emprego das perguntas retóricas, as quais projetam uma interação entre autor e leitor, refratando uma espécie de alternância discursiva no artigo, como se estabelecessem um diálogo entre autor e leitor (05). As perguntas retóricas podem representar tanto a perspectiva do articulista como a do leitor. Essas características deixam transparecer os recursos estilísticos que os alunos empregaram para construir o artigo (projeções estilístico-composicionais), mantendo a interação dialógica entre autor e leitor:

(01) [...] Para mim, a palavra independência tem um sentido muito amplo, não se resume apenas ao dia 7 de setembro de 1822, quando foi proclamada a “Independência do Brasil”. Será que realmente podemos comemorar a independência do nosso país? [...] (A independência que tanto esperamos, Nick, texto 07).

(02) [...] É exagero demais. Além disso, os nossos pais têm que manter o celular nos dando créditos. É por isso que as revistas, os jornais, as televisões e vários meios de comunicação nos comprovam que cada vez mais, com o avanço da tecnologia, a concorrência na venda de celulares aumenta [...] (O avanço da tecnologia, Ester, texto 09).

(03) [...] E deixamos os trabalhos, as tarefas, deixamos de vir para a aula por causa das festas. Parece bobagem eu estar falando isso, mas é uma luta onde escola X adolescentes se enfrentam [...] (Adolescentes e a relação com os pais, Roberta, texto 20).

(04) [...] Não podemos mentir que na maioria das vezes usamos sem necessidade, achamos divertido, mas temos de entender que para os nossos pais é preocupante [...] (O uso exagerado dos celulares, Mara, texto 08).

(05) [...] E aí eu me pergunto: onde isto vai parar? Será que esta moda vale a pena? O celular é realmente importante para nós? E se trocarmos horas de jogos no celular por um livro, hein?? [...] (Celular: moda ou problema?, Patrícia, texto 05) (grifo nosso)

Finalmente, constatamos a autoria assumida pelos alunos nos artigos, um dos papéis fundamentais da escola na prática de produção textual, pois através dessa atitude, de assumir seu ponto de vista, o aluno se desvincula da prática de seguir “modelos” (SANTA CATARINA, 1998). A autoria manifesta-se lingüisticamente principalmente pelo uso da primeira pessoa (do plural ou singular) e está expressa nos artigos produzidos (01). A assinatura e o pé biográfico, partes integrantes do gênero e que marcam quem fala no artigo, de que lugar social o autor se enuncia, estão marcados em alguns artigos produzidos (02):

(01) [...] A onda do celular vem influenciando a nossa cabeça e, talvez, por sermos tão jovens, acabamos inventando um motivo para tê-lo. Temos que ter um celular de qualquer jeito [...] (A febre do celular, Tainá, texto 21).

(02) [...] Roberta: Aluna da 7.ª 02. Oficina de texto e leitura [...] (Um novo modo de se comunicar, Roberta, texto 19)67 (grifo nosso)

Observando a incidência de traços característicos do gênero artigo nas produções textuais, podemos antecipar um pouco a nossa avaliação sobre a elaboração didática desenvolvida nesta pesquisa, pois constatamos que o estudo do gênero, aliado à leitura do enunciado e à prática de análise lingüística, apresentou reflexos na prática de produção textual. Pelo que verificamos, o contato com o gênero artigo foi inédito, na concepção desta pesquisa, levando-se em conta que os participantes da Oficina, como dissemos, não foram nossos alunos. Além disso, na escola em que trabalhamos e realizamos esta pesquisa, os professores de Língua Portuguesa (incluindo este pesquisador) não desenvolveram, até então, nenhum trabalho pautado na perspectiva bakhtiniana dos gêneros do discurso. Daí dizer que, por ter sido o início de um trabalho na concepção dos gêneros do discurso, seus resultados apontam para uma avaliação que satisfaz os objetivos desta pesquisa.