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3.6 A proliferação de ONGS e redes transnacionais de mulheres/feministas

Os anos 80, ao mesmo tempo em que configuraram um período repleto de conquistas, foram palco de uma reorganização política na sociedade como um todo, após anos de ditadura. Os movimentos sociais organizados, dentre eles o movimento feminista, passaram por reestru- turações internas e partiram para novas formas de atuação. O feminismo deixou de ser algo restrito a pequenos grupos, tornando-se mais difuso, perpassando vários espaços da sociedade.

96A CUT aprovou, igualmente, a moção da cota mínima de 30% de mulheres na sua direção central em agosto de

1993 (ano da sua fundação), sugerindo aos sindicatos a implantação de cotas proporcionais ao número de mulhe- res participantes em cada base sindical. Cf. Delgado, apud Soares 1994, p. 17, n.r. 22.

97Na História das Mulheres no Ocidente (vol. 5, 1995), Georges Duby e Michele Perrot demonstram que, mesmo

em países onde o feminismo esteve bastante organizado, a participação feminina nas esferas decisórias, nas dis- putas parlamentares e em cargos de poder nos partidos só aumentou após a implantação de políticas afirmativas.

Encontros Nacionais Feministas foram organizados anualmente desde 1982 e a cada dois anos a partir de 1992. A prática de encontros nacionais (e internacionais, como os encon- tros feministas latino-americanos e do Caribe) com fóruns de discussão para a elaboração das agendas e formas de atuação conjunta têm auxiliado no amadurecimento e na formulação de questões pertinentes a todo o movimento de mulheres no Brasil.

Analisando alguns dos pontos centrais de discussão dos encontros feministas brasilei- ros durante as décadas de 1980 e 1990, Soares (1994, p. 19) observa que o movimento primou por duas estratégias básicas de atuação: “continuar independente do Estado e atuar nas instân- cias governamentais”, além de preservar “canais autônomos de articulação, não só temáticos, mas gerais, através dos encontros nacionais feministas”.

Apesar do descrédito para com os organismos de governo e das condições precárias dos Conselhos (desprestigiados em âmbito governamental e junto ao próprio Movimento de Mulheres e feminista), o processo de institucionalização do feminismo brasileiro continuou na década de noventa. A atuação “de rua” foi substituída, em parte, pela atuação em áreas de prestação de serviços, geradas por inúmeras organizações de mulheres. Destacou-se o trabalho das ONGs feministas98, que passaram “a assumir de forma especializada e profissionalizada a

pressão junto ao Estado, buscando influenciar nas políticas públicas” (Costa, 2005)99.

A formação de ONGs e redes feministas transnacionais é um fenômeno crescente em toda a América Latina (assim como em outras partes do mundo) ligado ao “colapso dos siste- mas de representação formal e com a constatação da ineficiência do Estado” (Schumaher e Vargas, 1993, p. 362)100. As grandes instituições financiadoras (ONU, BM, FMI, etc.), que em

meados da década de 1970 enviavam verbas volumosas para investimento no Terceiro Mundo

98Inúmeros grupos e ONGs foram criadas ao longo da década de 1980, dentre elas a Rede Mulher de Educação

(em São Paulo), a Casa da Mulher do Nordeste (Recife), o Coletivo Feminista (Campinas e Rio de Janeiro), o Maria Mulher (em João Pessoa), o Brasília Mulher, o Grupo “Sexo Finalmente Explícito”, o Centro de Informa- ção da Mulher (CIM, em São Paulo), o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (SP), o Grupo Transas do Cor- po-Ações Educativas em Saúde e Sexualidade (SP), a Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH), o Geledés- Instituto da Mulher Negra (SP), o Centro de Estudos e Ação da Mulher Urbana e Rural (JR), o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA, Brasília), o Comunicação, Educação e Informação em Gênero (CEMINA, Rio de Janeiro), dentre outros (Cf. Rago, 1994/1995 e Novellino, 2006).

99No Brasil, inúmeras ONGs foram criadas junto aos novos movimentos sociais no intuito de promover o desen-

volvimento humano e a ampliação da cidadania. “Elas apresentam uma grande diversidade, principalmente te- mática, variando desde as entidades ligadas ao meio ambiente e aos grupos feministas, até as organizações volta- das à proteção da criança e do adolescente, num total de 225, segundo o cadastro/98 da Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais - ABONG. É a combinação desses dois princípios, exatamente, que le- vam tais organizações, em seu conjunto ou mesmo em separado, a apresentar as seguintes características: con- centrar o seu nascedouro na reconstrução da vida democrática nacional; alojar-se, política e tecnicamente, como inovadoras do fazer social, alargando o espaço de intervenção popular; dedicar-se à superação dos mecanismos de exclusão sócio-política, ao trabalhar, localmente, o cotidiano de segmentos específicos da população; definir a sua ação, reunindo o fazer da denúncia, da reivindicação, da prestação de serviços e da produção de conheci- mentos; não representar qualquer classe de indivíduos sendo, por isso, flexíveis; constituir-se em entidades de Direito Privado que concebem a sua ação como sendo pública; conquistar, para si, o papel de agentes do desen- volvimento; e combinar a inserção local com a ação internacional.” (Buarque e Vainsencher, 2001).

e injetavam estes recursos quase que exclusivamente nos governos, passaram a apoiar e finan- ciar as atividades das ONGs (após a verificação do mau uso das verbas públicas pelo Estado, o desvio de dinheiro e a alta rotatividade dos quadros técnicos dos governos) (cf. Schumaher e Vargas, 1993, p. 362)101.

Após as conquistas obtidas na Constituição de 1988, os grupos de mulheres e feminis- tas perceberam a necessidade de “lutar pela regulamentação dos dispositivos constitucionais e pela implementação de políticas públicas que assegurem os direitos conquistados” (Rodri- gues, 2001). Para isso, era necessário “atentar para a necessidade de viabilizar recursos nos or- çamentos públicos para programas e projetos” ligados às causas das mulheres e, paralelamen- te, “capacitar-se para a realização do controle social – fiscalização dos gastos públicos, em ter- mos de destinação e de execução orçamentárias” (Rodrigues, 2001).

Como observa Barsted (1994, p. 42), “o apoio financeiro das agências internacionais permitiu o desenvolvimento de pesquisas, publicações, seminários, ações comunitárias, for- mação de redes entre os diversos grupos de mulheres para levar adiante projetos independen- tes do apoio governamental”. Além disso (p. 47), “possibilitou a manutenção de ações de cur- to e longo prazos, sistematização de atividades, maior mobilidade e poder de diálogo com o Estado e com outras esferas da sociedade”102.

Trabalhando com a temática da “onguização” de parcelas da sociedade ligadas aos movimentos sociais durante as décadas de 1980 e 1990, Sônia Alvarez (1998) aponta para o diferencial das ONGs feministas em relação às demais Organizações Não Governamentais (mesmo aquelas voltadas ao trabalho com mulheres). Para ela, as feministas não se vêm como alguém que apenas trabalha prestando serviços a outrem, mas como pessoas engajadas em

100As questões ligadas ao tema das ONGs e da ineficiência do Estado, por si só, dariam uma dissertação. Ellen

Wood, em Democracia contra Capitalismo (1993), apresenta argumentos interessantes para esta discussão.

101O financiamento das ONGs, e o direcionamento das agendas de trabalho conforme os indicativos das agencias

financiadoras, é um tema bastante discutido pelo feminismo e o Movimento de Mulheres no final da década de 1990, citado, por vezes, como responsável pela perda de autonomia na realização de ações mais combativas e ra- dicais (Alvarez, 1998, 2000) e pela “redução do papel político da base social que consolidava o protagonismo das mulheres nos coletivos anteriormente estruturado” (Gurgel, 2006, p. 4).

102Muitas das críticas elaboradas contra as ONGS estão associadas à questão das pautas impostas pelos órgãos fi-

nanciadores. No entanto, inúmeras ONGs feministas têm trabalhado de forma estratégica, aceitando as temáticas propostas pelas instituições e apresentando resultados não esperados. Como exemplo pode-se citar o tema do controle da natalidade, muito em voga no início dos anos 80 por conta do interesse de alguns órgãos internacio- nais em diminuir a população do “Terceiro Mundo”. As ONGs feministas utilizaram os recursos financeiros ad- vindos destes órgãos e redimensionaram as pesquisas para a questão dos “Direitos Reprodutivos”, partindo em defesa do direito das mulheres em conhecer e decidir sobre o próprio corpo e o número de filhos (acesso à infor- mação e à utilização de métodos contraceptivos), agindo contra a esterilização em massa de mulheres de cama- das mais pobres da população (que atingiam, em sua maioria, mulheres negras) e contra a criminalização do aborto, exigindo do Estado os recursos educacionais e científicos para o exercício dos direitos das mulheres (fa- zendo valer o parágrafo 7 do artigo 226 da Constituição de 1988) e incluindo nas discussões as relações homem- mulher e o tema da paternidade responsável. Esta prática, de burlar regras e usar espaços disponibilizados para outros fins em favor de discussões feministas, foi muito utilizada pelo feminismo brasileiro (principalmente di- ante da Ditadura) (Petersen, 2006, p. 111-119).

modificar relações desiguais entre os sexos, havendo um forte componente identitário nas suas posturas e propostas. Alvarez pontua que:

The space created by the NGO stimulates a reelaboration of the identity of its mem- bers as social and political subjects. [...] The vast majority of NGO activist-professi- onals also view themselves as an integral part of a larger women’s movement that encompasses other feminists (in other types of organizations or “sueltas”) as well as the poor and working-class women for or on behalf of whom they profess to work. [...] Some understood NGOs as providing “a critical voice of a technical and profes- sional character that contributes to the movement”.

Uma identidade híbrida perpassaria a atuação das ONGs feministas, configurando es- tes espaços em centros de trabalho profissionalizado (pesquisa, formação, prestação de sevi- ços, etc.) e militante. Para Barriga (2003), esta forma de atuação proporcionou “um maior co- nhecimento da teoria e da prática do feminismo, vínculos fluídos com as redes temáticas que surgiam na América Latina e perfis institucionais mais nítidos que facilitaram sua interlocução com agentes externos”103.

Mediante o trabalho das ONGs foram criadas redes de apoio entre os mais diversos grupos de mulheres, “destacando-se as de trabalhadoras rurais, de empregadas domésticas, a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos e a Rede Contra Violência Do- méstica e Sexual” (Barsted, 1994, p. 47). Novas articulações entre feminismo e movimentos populares foram colocados em curso, contribuindo para o afrouxamento das idéias anti-femi- nistas entre alguns grupos104, como observa Costa (2005):

As mulheres pobres articuladas nos bairros através das associações de moradores, as operárias através dos departamentos femininos de seus sindicatos e centrais sindi- cais, as trabalhadoras rurais através de suas várias organizações começaram a auto- identificar-se com o feminismo, o chamado feminismo popular. As organizações fe- ministas de mulheres negras seguem crescendo e ampliando a agenda política femi- nista e os parâmetros da própria luta feminista. Esse crescimento do feminismo po- pular trás como conseqüência fundamental, a diluição das barreiras e resistências ideológicas para com o feminismo.

Para Celi Regina Pinto (2003, p. 45), são inúmeros os relatos de aproximação do mo- vimento de mulheres com o movimento feminista durante as três últimas décadas. Ainda que os mais diversos grupos tenham se aproximado do feminismo para utilizar-se de seus serviços

103No original: “un mayor conocimiento de la teoría y la práctica del feminismo, vínculos fluidos con las redes

temáticas que iban surgiendo en América Latina y perfiles institucionales más nítidos que facilitaron su interlo- cución con agentes externos”.

104Segundo Rago (2003), os rótulos ainda pesavam no final da década de 1980. Como o atesta o artigo de Isabel

Vasconcellos no Mulherio (Ano 3, n. 39, abril/maio, 1988, p. 12), intitulado “Feminista? Quem? Eu???”: “Fico muito impressionada com a quantidade de mulheres que entrevisto na TV ou com quem simplesmente troco idéi- as, que têm um medo horroroso do rótulo de 'feministas' [...] Parece bobagem, mas na prática é dramático. Mu- lheres maravilhosas que concordam com todas as nossas bandeiras, lutam pelas mesmas idéias, só não topam é serem rotuladas de feministas. Nós sabemos muito bem por que. Feminista é palavra maldita”.

(e sem querer se comprometer com ele), a partir desta aproximação passaram a problematizar a própria condição de mulher, assumindo as bases do pensamento feminista e disseminando-o ainda mais pela sociedade.

Repetiu-se dentro das ONGs o fenômeno que acompanhava o Movimento de Mulhe- res e o feminismo brasileiro nas décadas anteriores: o contato entre mulheres de diversas gera- ções, etnias, escolaridades, classes sociais, opções sexuais e posturas políticas.

As ONGs feministas passaram a intermediar (e repassar) parte da produção técnica e teórica de uma parcela do feminismo brasileiro, de cunho mais acadêmico, para as demais mi- litantes (nos partidos, clubes de mães, movimentos populares, etc.). Uma intensa produção in- telectual de mulheres ligadas às universidades e centros de pesquisa desvendava, por meio de dados quantitativos e qualitativos, aspectos da condição feminina brasileira, problematizando e propondo alternativas de superação da desigualdade social.