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6.2 Críticas ao uso do conceito

Críticas às diferentes formas de uso do conceito de gênero têm sido mais numerosas no Brasil do que aquelas relativas ao conceito de gênero. As críticas vão desde as dificuldades em se explicar o conceito201, até sua equiparação à categoria mulher e o esvaziamento do cará-

ter mais político do feminismo dentro dos estudos de gênero. Tem-se discutido, também, a forma como as instituições têm lidado com questões de gênero e o efeito do binarismo nas mais diversas pesquisas.

Segundo Costa (1998, p. 135), a interpretação do conceito de gênero, dada por Scott teria acarretado mal-entendidos no Brasil. O aspecto relacional do conceito foi compreendido de forma binária, reduzindo-se à relação masculino-feminino, homem-mulher, deixando de abordar uma série de outras relações no campo do social. Para ela (CLC, 16/11/2004), “o gê- nero é relacional mas não o é apenas em relação aos homens. É em relação a todos os outros eixos da diferença [...] porque uma mulher nunca é só uma mulher, é mulher, negra, lésbica”, além disso, “O gênero ficava, por assim dizer, entre o homem e a mulher, e não nas relações de poder que estruturam sistemas de desigualdade e opressão” (Costa, 1998, p. 135)202.

Este binarismo teria colocado sobre as pesquisadoras um fardo ainda maior diante da exigência de que (Costa, 1988, p. 135) “para estudar a mulher tinham também que estudar o homem”. Exigência presente nas instituições de fomento e no incentivo ao levantamento de dados “para ambos os gêneros”:

201Como observa Stolke (2004, p. 88), a tradução do termo inglês gender para outras línguas “gerou algumas di-

ficuldade e deu lugar a uma série de deslizes”. Em português, assim como no espanhol, a palavra gênero é bas- tante polissêmica, referindo-se tanto ao “gênero humano”, quanto ao gênero gramatical e, “a parte de los incon- venientes políticos de ser un término que tiene diversos significados y ser además poco conocido, género se prestó facilmente a un uso plural: los o dos géneros”. Maria Lygia Quantim de Moraes (1998, p. 101) aborda a dificuldade semântica do termo em português, entendido como substantivo masculino (e não “neutro” ou se re- ferindo à ambos os sexos, como acontece no inglês) designando uma classe que se divide em outras (as espécies). Esta característica da língua levaria à necessidade de se definir o conceito sempre que ele é usado para evitar confusões.

202Um exemplo dessa forma de trabalhar com o gênero se encontra no texto “Relendo Joan Scott no sertão”

O que também estava acontecendo nesse momento é que havia pelas agências e ins- tituições internacionais de fomento, doações internacionais de dinheiro para pesqui- sa com homens. Havia uma preocupação em estudar a questão da reprodução e do papel da paternidade na reprodução203. Havia muito incentivo dessas agências de fo-

mento para estudar o comportamento dos homens (CLC, 16/11/2004).

Devido à esta concepção binária de relações de gênero, o campo dos estudos sobre masculinidades teria ficado igualmente restrito: “Enquanto nos Estados Unidos estes estudos se deram dentro das teorias feministas e separando masculinidades de homens, no Brasil estão atrelados aos estudos de gênero e cindindo sobre corpos “masculinos” (CLC, 16/11/2004). Neste caso, um duplo binarismo se evidencia: os homens estudados em ligação com o “mundo das mulheres” e a masculinidade (o efeito do social) atrelada ao corpo/sexo de um homem. Para Costa (p. 5), a quebra do binarismo sexo-gênero “possibilita a separação, não só do femi- nino do corpo da mulher como o masculino do corpo do homem. Não necessariamente mascu- linidade tem de incidir com homem e feminilidade com mulheres”.

A idéia binária de dois sexos/gêneros causou ainda outro efeito: a substituição dos ter- mos mulher e homem por gênero. Moraes (1998, p. 102) usa o exemplo da sociologia, onde a categoria gênero foi incorporada ao linguajar acadêmico como algo “politicamente correto” mas “o que se tem, via de regra, é uma utilização restrita e precisa de gênero, como sinônimo de homem e mulher”. Para exemplificar, Moraes cita dois textos de Anthony Giddens (Socio-

logy: a brief but introduction, cap. 5: The family and Gender e As conseqüências da moderni- dade), nos quais a palavra gênero aparece esvaziada de seu conteúdo teórico e, quase sempre,

como substituto de mulher.

O problema da simplificação/substituição do termo mulher por gênero já aparece no contexto em que Scott escreve seu artigo (1990, p. 7). O mesmo ocorre no material da mexica- na Marta Lamas (1996, p. 332), revelando a recorrência do problema em outros países. Para Neto (2000, p. 144), este fenômeno está ligado ao processo de criação de um campo de pes- quisas feminista e às exigências acadêmicas de separação entre prática política (militância) e teoria. O texto de Scott (1990, p. 7) segue na mesma direção:

Durante os últimos anos, livros e artigos que tinham como tema a história das mu- lheres, substituíram em seus títulos o termo “mulheres” pelo termo “gênero”. Em al- guns casos, este uso, ainda que se referindo vagamente a certos conceitos analíticos, trata realmente da aceitabilidade política desse campo de pesquisa. Nessas circuns- tâncias, o uso do termo “gênero” visa indicar a erudição e a seriedade de um traba- lho, pois “gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”. O gênero parece integrar-se à terminologia científica das ciências sociais e, por con- seqüência, dissociar-se da política (pretensamente escandalosa) do feminismo. Neste uso, o termo gênero não implica necessariamente na tomada de posição sobre a desi- gualdade ou o poder, nem mesmo designa a parte lesada (e até agora invisível). En-

quanto o termo “história das mulheres” revela sua posição política ao afirmar (con- trariamente às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos válidos, o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma ameaça crítica. Este uso do “gênero” é um aspecto que poderia ser chamado de pro- cura de uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas nos anos ’80.

Duas novas questões aparecem ligadas ao problema da substituição do termo mulher por gênero: um retorno sutil à invisibilidade das mulheres e o problema da militância política no interior e fora da academia. Estes dois pontos parecem ser os que mais têm recebido críti- cas por parte de feministas brasileiras.

O deslocamento de foco, de mulher para gênero, possibilitou o desenvolvimento de uma série de pesquisas sobre a mulher sem nomeá-la diretamente. A visibilidade alcançada pelas lutas feministas e pelo esforço das acadêmicas em incluir as mulheres como objeto de pesquisa nas mais diversas disciplinas parece ficar ofuscada. Ao mesmo tempo em que os es- tudos de gênero viraram sinônimo de estudos sobre as mulheres, estas voltam a ficar “suben- tendidas” (Costa e Sardenberg, 1994, p. 395). A mera substituição de termos esvazia o concei- to e se refere às mulheres de uma forma velada.

Para Ana Alice Costa e Cecília Sardenberg (1994, p. 395), o conceito de gênero se es- palhou pelo país de forma muito rápida, antes de completar o seu amadurecimento teórico ou de se tornar mais compreensível entre os diferentes setores do movimento de mulheres/femi- nista. Esse processo de recepção fez o conceito “a figurar em todas as instâncias do movimen- to, substituindo pura e simplesmente a palavra mulher”. Como exemplo, Costa e Sardenberg (p. 395) citam as “reivindicações de gênero” presentes nas pautas dos sindicatos e nas deman- das dos movimentos populares.

A substituição da categoria mulher por gênero também ocorre no plano institucional. Segundo Melo (2000, p. 7-8), na ótica de muitos/as planejadores e implementadores de políti- cas públicas no Brasil “parece condição suficiente para a contemplação de gênero nas políti- cas, a inclusão de mulheres no rol dos beneficiários” ou, acredita-se “ter contemplado o gêne- ro nos programas elaborados, baseados no fato de não proibirem a participação da mulher na condição de beneficiária. Outras vezes, tendem (Lobo, 1992) a privilegiar a organização fami- liar e seu projeto estratégico, subsumindo integralmente as mulheres como atores sociais”204.

204Devreux (2005, p. 681), abordando a relutância das feministas francesas em aceitar o termo gênero, comenta:

”o termo gender, no sentido de 'sexo social', não contava com a aprovação das pesquisadoras francesas, princi- palmente em razão da polissemia e da indefinição que seu uso trazia em diversas esferas. Assim, para diversas ONGs ou instâncias internacionais, o gênero significava pura e simplesmente. [...] as mulheres, o que nos pare- cia a melhor maneira de eufemizar as problemáticas feministas. Seu emprego generalizado, em oposição ao sexo biológico, representava para as pesquisadoras francesas um duplo inconveniente”.

Para feministas como Costa (1998) e Alvarez (2000), o problema está no uso do con- ceito de gênero fora do seu contexto de origem: as lutas das mulheres e do movimento femi- nista. Costa (p. 129) observa que os “Estados e agências inter-governamentais nas Américas adotam amplamente o conceito de gênero em suas políticas públicas e programas de desenvol- vimento social”, no entanto, grande parte da “crítica feminista à opressão e à subordinação da mulher dilui-se e neutraliza-se nos discursos e práticas de tais instituições”. Citando a pesqui- sa de Sônia Alvarez sobre ONGs no Brasil, Costa (p. 129) argumenta que, “apesar do papel inegável que tiveram os lobbies feministas locais e globais em promover as normas internaci- onais de gênero que indiretamente inspiram estes modernos discursos estatais”, na prática, eles se afastam do potencial transformador sugerido pelo feminismo:

A assídua crítica feminista à subordinação das mulheres muitas vezes se traduz e ter- giversa nas práticas e discursos do Estado.... Entre alguns funcionários públicos, “gênero” parecia ter se convertido em mais um termo no léxico de planificação, um indicador neutro de “modernidade” e “desenvolvimento”, ao invés de um terreno ou domínio minado por relações desiguais de poder entre mulheres e homens. (Alvarez, p. 129-130).

Como observa Nalu Faria (2005, p. 34), o Estado não é neutro em se tratando das re- lações entre homens e mulheres: “Isso significa que, se não houver uma intencionalidade de reequilibrar essas relações, as políticas do Estado acabam reforçando as atuais relações e sua naturalização”. Treillet (2003), confirma esta mesma perspectiva em seu estudo sobre as mu- danças de política do Banco Mundial, como segue:

O Banco esvaziou parcialmente o sentido real dessas palavras, além de tirar um pou- co da sua carga subversiva: desse modo, a palavra gênero (gender), utilizada de for- ma corriqueira, vem a perder o sentido crítico que ela tem nas ciências humanas, de- signando “relações sociais entre os sexos”, para designar somente de forma descriti- va a condição feminina. Por fim, o Banco Mundial tentou adaptar as suas análises aos seus objetivos, se servindo delas para o seu discurso e para fornecer estatísticas “sexuadas”. Sendo assim, por esse motivo, as mulheres teriam um papel central. Mas dentro dessa lógica, elas são antes de tudo consideradas um recurso, um inves- timento rentável, e totalmente instrumentalizadas. Por um lado, porque as múltiplas formas de discriminação que elas sofrem são [...] fonte de ineficiência frente ao mercado e entraves à sua produtividade, tanto no ambiente doméstico quanto no mercado de trabalho. Por outro lado, porque elas são, antes de tudo, consideradas educadoras. Reencontra-se aqui o raciocínio em termos de capital humano, que está realmente no centro do dispositivo205.

Heleieth Saffioti, em seu texto Ontogênese e Filogênese do Gênero (2006, p. 17) criti-

205O ensaio de Kate Bedford (“Loving to straighten out development: sexuality and “ethnodevelopment” in the

World Bank's Ecuadorian lending. Feminist Legal Studies, n. 13, p. 295–322, Springer, 2005) é bem elucidativo. O projeto Gender and development do Banco Mundial junto aos grupos indígenas do Equador procura adaptar as comunidades ao funcionamento do mercado impondo um modelo ocidental de família e de sexualidade. Quando as mulheres não se enquadram ao projeto são consideradas “pouco racionais”, quando se enquadram são rational enough to work but their labour was understood to be motivated by love. (p. 304). Além disso, the emphasis on loving heteronormative partnership within the loan resulted in a persistent refusal to deal with con- flict between men and women, even when it affected project performance. (n. r. 12, p. 304)

ca (como Scott, 1990) o emprego do termo gênero como substituto de mulheres, gerando um efeito descritivo206. Usado desta forma, (p. 17) “o gênero não implica, necessariamente, desi-

gualdade ou poder nem aponta a parte oprimida”. Para a autora (p. 18), “quem lida com gêne- ro de uma perspectiva feminista, contesta a exploração-dominação masculina. Por via de con- seqüência, estrutura, bem ou mal, uma estratégia de luta para a construção de uma sociedade igualitária”.

Chegamos agora ao centro das críticas aos estudos de gênero no Brasil: o seu uso polí- tico e a sua relação com o feminismo e as lutas dos movimentos de mulheres. Ana Alice Costa e Cecília Sardenberg (1994, p. 396-397) vêm uma relação entre o aumento de mulheres des- comprometidas com o feminismo dentro da área dos estudos de gênero e seu afastamento da militância. Para elas, gênero constitui,

[...] um conceito que veio para ampliar, para possibilitar um entendimento relacional que incorpora outras categorias além do sexo e que portanto poderia dar uma contri- buição substancial à luta das mulheres, tem ficado, no Brasil, muito aquém do que prometia. Isso trouxe como conseqüência a despolitização do feminismo na acade- mia, na medida em que vem tornando invisível toda uma série de demandas e ações que visem a melhoria da condição feminina e a própria equiparação social da mu- lher nos meios científicos acadêmicos.

Cláudia Costa (1998, p. 134-135) também critica a forma como uma parcela de estudi- osas de gênero tem se incorporado ao espaço acadêmico. Para ela, no afã de se fazer aceitar neste território deixou-se de desafiar os fundamentos sexistas da ciência. Não havendo “no terreno supostamente neutro do gênero a necessidade de politizar a teoria e teorizar a política”. Assim, os estudos de gênero possibilitam um tipo de trabalho científico mais des- compromissado, “sem necessariamente assumir um projeto político feminista”207.

Simone Schmidt (2004, p. 19), em seu artigo “Como e Por que Somos Feministas”, identifica os estudos de gênero como uma espécie de saída da “casa materna” (o feminismo e os estudos sobre a mulher) em direção ao mundo. Para ela, este movimento de abertura impli- ca em ganhos e perdas. Dentre as perdas, uma “neutralização do caráter mais 'guerreiro' e con- tundente do feminismo, esvaziando-o de sua vinculação com uma história de lutas contra a su- bordinação das mulheres”.

206Texto ainda inédito, gentilmente cedido pela Profa Heleieth Saffioti.

207 Devreux (2005, p. 564) observa que, na França, “'gênero' permitiu às pesquisadoras francesas serem percebi-

das como menos agressivas, menos 'feministas', por suas instituições e por seus colegas homens. Não chocando, elas pensavam chegar mais facilmente a um consenso científico sobre a questão da dominação masculina, man- tendo-se mais politicamente corretas. De certa maneira, elas eram mais 'polidas', não nomeando nem a violência e o antagonismo contidos na idéia de 'relação social', nem o critério um pouco animal de 'sexo'. O termo gênero (tal qual se popularizou), ainda que se saiba que seu conceito diga respeito à algo relacional, evoca a idéia de um problema social sofrido pelas mulheres. [...] A relação social de sexo nomeia explicitamente a confrontação entre duas classes de sexo. Não pode haver relação social com uma categoria única. Não pode haver relação social sem confrontação”.

Rita Schmidt (2002) também associa a perda de força política do conceito de gênero ao seu afastamento do campo do feminismo.

Seja pela banalização do termo “gênero”, decorrente da sua descontextualização e desvinculação teórica, seja pelo alcance de sua intervenção quando utilizado con- seqüentemente em termos de crítica cultural [...] o fato é que a categoria “gênero”, ou os chamados “estudos de gênero” tem se prestado a várias apropriações e leituras fora do âmbito da crítica feminista, algumas de caráter ingênuo e simplista, outras nem tanto, sendo que ambas fornecem subsídios para pontos de vista que qualifi- cam sua dimensão analítica como restritiva e particularista. [...] Não mais restrito às práticas críticas de quem dele se utiliza como categoria analítica articulada a uma ou outra corrente dentre as teorias feministas, o termo se popularizou, não porque enun- cia um conhecimento sobre como a cultura opera ou porque mantém um compro- misso com um projeto de mudança intelectual e transformação social, mas porque muitas vezes passou a ser utilizado simplesmente, como mais uma terminologia em discursos que procuram se inscrever na contemporaneidade e garantir a adesão de leitores presumivelmente informados. Por exemplo, penso sobre textos que tratam de representações do feminino em que o feminino é visto como gênero na acepção do senso comum, desvinculado de conceitos de gênero elaborados no contexto da crítica feminista, portanto trabalhado como categoria isolada e essencializada, em lugar de relacional e histórica, e por essa razão, destituída de qualquer perspectiva crítica.

As críticas aos diversos usos do gênero e as perguntas quanto à sua relação com os es- tudos feministas na academia brasileira levaram à realização de uma mesa redonda no “En- contro Internacional Fazendo Gênero 5: Feminismo como Política”, em 2002. Segundo Simo- ne Schmidt (SPS, 5/6/2006), a mesa de encerramento do Encontro se dedicou a discutir de forma bastante específica a relação entre feminismo e gênero, “até que ponto uma coisa con- tribuía com a outra. Até que ponto esta tensão era boa, ou ruim”208.