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3.3 A nova imprensa feminista

Com o abrandamento das políticas de censura do regime civil-militar, novos progra- mas jornalísticos começaram a ser elaborados. As mudanças de comportamento entre as mu- lheres levaram a maior rede de televisão do país, a Rede Globo a produzir programas voltados ao público feminino e à discussão de temas presentes no universo feminista. O primeiro destes programas, Malu Mulher, entrou no ar em horário nobre entre maio de 1979 e dezembro de 1980. Sua personagem principal questionava a rotina doméstica e vivia em desacordo com o estereótipo da esposa e mãe de família feliz. Além disso, discutia sua sexualidade (inclusive, o tema do aborto), estava em processo de separação (após 13 anos de casamento), tornando-se “chefe de família” e ingressando no mercado de trabalho82.

Entre 1980 e 1986 a Rede Globo veiculou o TV Mulher, um programa matutino que incluía discussões sobre os direitos da mulher, escolarização e trabalho (além de temas ligados ao espaço doméstico, como decoração e cozinha). A sexualidade (considerada assunto pesso-

82O programa foi distribuído posteriormente para mais de cinqüenta países e recebeu diversos prêmios. Ver:

al) ganhou destaque o quadro “Comportamento Sexual”, dirigido pela psicóloga e sexóloga Marta Suplicy, para quem as telespectadoras escreviam sobre as dúvidas em relação ao pró- prio corpo e ao comportamento sexual (direito de ter desejo, opção sexual, recuperação do sa- ber sobre o próprio corpo, aborto, etc.). O TV Mulher foi responsável pela disseminação e dis- cussão de temas feministas por todo o país83.

Durante a década de 1980, a imprensa feminista ganhou fôlego84. Em sua pesquisa,

Elizabeth Cardoso (2004, p. 66) identificou um salto quantitativo na produção de periódicos feministas no Brasil (revistas, boletins e jornais) neste período: de 9 para 44. Para ela (p. 68), há uma mudança de perfil em relação ao material produzido na década anterior, marcada pelo debate entre a questão da mulher versus questão geral e pelas reivindicações de igualdade, au- tonomia partidária e pelo combate a ditadura. Esta nova geração do jornalismo feminista,

[...] incorpora o conceito de gênero, assume os temas relacionados direta e exclusi- vamente às mulheres (como sexualidade, planejamento familiar e violência contra a mulher); tende para a especialização por temas; luta pelo direito à diferença e opera em parceria com um novo ator social, a sociedade civil organizada, na forma de ONGs e associações voltadas para a questão de gênero.

Dentre as publicações do período, destacamos dois jornais, em especial, por represen- tarem dois grupos de feministas que entravam em evidência no cenário nacional: as feministas lésbicas e as acadêmicas. Os jornais em questão são: Mulherio (vinculado a um núcleo de pes- quisas: a Fundação Carlos Chagas) e Chanacomchana (informativo do GALF-Grupo de Ação Lésbica-Feminista85).

O jornal Mulherio (1981/1988) surgiu do projeto de um grupo de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas interessadas em fazer um informativo que integrasse pesquisadores/as, diferentes grupos organizados de mulheres e órgãos da imprensa em geral. A proposta era a da diversidade e do debate de idéias, com um amplo leque de assuntos: resulta- dos de pesquisa, resenhas, notícias de encontros feministas, discussão de políticas públicas e condições de trabalho, informações sobre saúde, sexualidade, cuidados com o corpo, além de denúncias de violência e de discriminação contra a mulher negra. Dava-se ainda destaque à vida das operárias e da periferia das grandes cidades, e à produção cultural de escritoras e ar- tistas de todo o país.

83A pergunta pelos motivos que levaram ao fim do programa, na mesma época em que se ampliaram os debates e

a circulação de periódicos ligados ao tema da mulher, permanece aberta.

84Cardoso (2004, p. 66) se refere a este material como pertencente a uma “segunda geração” feminista (a “pri-

meira geração” seria a da década de 1970). No entanto, o trabalho desta autora não leva em consideração as pu- blicações de brasileiras no final do século XIX e na primeira metade do século XX.

85O grupo chamava-se inicialmente Movimento Lésbico-Feminista mas, por motivos políticos e alternância de li-

Abertamente identificado como feminista, o jornal dava ênfase à discriminação sexual, criticando, dentre outras coisas, a supervalorização do corpo da mulher em detrimento de sua pessoa e suas idéias. Como é possível perceber no texto de Maria Rita Kehl em um exemplar do jornal totalmente dedicado a discutir a “beleza da mulher brasileira” (Mulherio, ano 2, n. 5, jan./fev. 1982, p. 14-15):

Se os homens afirmam que vêem na mulher antes de mais nada belos contornos, considero isso como um empobrecimento de sua capacidade de olhar e ver. Estou convencida de que nosso olhar sabe encontrar no homem sinais do que ele é, além dos contornos de sua musculatura [...] Não somos aceitas e talvez não nos aceitemos como seres que existem a partir de, dentro de, através de um corpo. O corpo que po- demos e devemos ostentar, corpo plástico e sem “imperfeições”, corpo que esconde todas as marcas de vida – esse corpo feminino é exibido, cobiçado e consumido nes- sa condição: a de ser um corpo morto. Nosso corpo é aceito, exposto e aparentemen- te liberado de uma moral que o considerava como lugar do pecado – mas é libertado somente na condição de coisa. Como tal, pode e deve exibir sua superfície, sua for- ma, seu contorno – mas deve forçar suas tendências naturais de modo a que tal con- torno se enquadre dentro de um contorno-padrão, custe o que custar.

As dificuldades enfrentadas pelas militantes feministas de esquerda também aparecem em muitos textos. Critica-se a rigidez do modelo de militância proposto e a ausência de direi- tos relativos a uma vida pessoal prazerosa, como o evidencia o artigo de Verônica Guedes, “Lutar, mas também amar e ser feliz” (Mulherio, n. 3, set./out. de 1981, apud Manini, 1995/1996, p. 58-59)

Como será um mundo construído por pessoas que acham que a militância substitui a própria vida? Por pessoas que esqueceram a sua sexualidade em alguma página solta do Capital? Por pessoas cuja amargura e sisudez se sobrepõem à tarefa de construir um mundo mais sadio e feliz? Por isso, em nome de todos os torturados, de todos os humilhados, de todos os mortos e desaparecidos, em nome de todos os suicidas e, principalmente, em nome de todos os que estão vivos, devemos transformar o amor em um exercício diário de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, pensam em revolucionar o mundo! Para isso nosso movimento tem importância fundamental, porque questiona as relações afetivas e políticas a partir dos indivíduos. Por isso também representa um perigo estarrecedor a quem não consegue se libertar do mar- tírio que representa sua opção política. Não pensamos em trocar fuzis por flores, nem abrimos mão de lutar por uma sociedade justa e mais humana. Queremos parti- cipar da construção dessa nova sociedade, mas queremos também amar, sermos feli- zes e alegres com a mesma intensidade com que sofremos pela nossa trágica realida- de social e, para isso, precisamos de uma identidade, de nossa identidade de mulher- sexo feminino e não de uma triste militância assexuada.

O Mulherio obteve boa aceitação nos meios universitários, chegando rapidamente a três mil assinaturas (no seu terceiro número). Segundo Duarte (2003) “alguns números torna- ram-se verdadeiros documentos da trajetória da mulher na construção de uma consciência fe- minista, tal a seriedade do trabalho realizado para a conscientização da cidadania e o avanço das conquistas sociais da mulher brasileira”.

O jornal Chanacomchana (1981-198986) iniciou com uma tiragem de 200 exemplares

e periodicidade instável (trimestral ou quadrimestral), editado por estudantes universitárias li- gadas às Ciências Humanas e ao Movimento Lésbico-Feminista (MLF). Divulgado em bares, festas e boates (eventualmente em congressos), era mantido por doações, pequenos anúncios e assinaturas.

Para Cardoso (2004, p. 99) a publicação do Chanacomchana simbolizou a “aproxima- ção definitiva entre lésbicas e feministas” no Brasil. As colaboradoras e editoras do jornal vi- venciavam uma forma particular de discriminação, que combinava sexismo com homofobia e vinculava a sexualidade ao tema da opressão e evidenciava seus aspectos políticos. O silêncio da imprensa feminista sobre estas questões levou as militantes do GALF a publicar seu pró- prio periódico (Cardoso, 2004, p. 99):

As mulheres lésbicas, que abrem uma publicação feminista, no Brasil, dificilmente se identificam com o que está escrito, pois não há nada que fale diretamente de seu cotidiano, acabando por ser reforçada a idéia. Mesmo aquelas lésbicas que se reco- nhecem nas lutas mais gerais do feminismo, como a igualdade salarial e de outros direitos entre mulheres e homens, acabam vendo mantida a velha esquizofrenia que a sociedade lhes impõem em todos os âmbitos das suas vidas. Ou seja, elas podem se identificar e mesmo batalhar pelos direitos das mulheres, já que são mulheres, mas suas vidas pessoais, a saber, sua sexualidade, sua afetividade, etc. [...] devem fiar no terreno do privado numa flagrante contradição com um dos grandes 'slogans' do feminismo que diz que o privado é político.

O jornal tornou-se canal de diálogo sobre direitos e cidadania, além de abrir espaço para depoimentos pessoais (muito próximo da experiência dos grupos de reflexão). Como co- loca Ferreira (1995/1996, p. 192), “estas mulheres percebiam-se como mulheres que enfrenta- vam os preconceitos assumindo sua sexualidade, sem medo de se exporem. Viam-se também como mulheres que tentavam driblar o autoritarismo inerente a qualquer movimento político”. As colaboradoras do Chanacomchana procuravam construir um feminismo próprio de mulheres lésbicas e distinto dos estereótipos da “feminista sapatão” (com o qual não se identi- ficavam nem como feministas nem como lésbicas)87, como segue:

O feminismo é de quem o está construindo todos os dias e, por isso, existem tantos “feminismos” quanto mulheres feministas, ou seja, existem diferentes concepções

86No ano de 1989, o GALF se tornou uma ONG, identificada como “Rede de Informação Um Outro Olhar”.

Com isso, o Chanacomchana sofreu modificações e passou a ser publicado como Um Outro Olhar, tendo sua ti- ragem aumentada para 5 mil exemplares (Cf. Cardoso, 2004, n.r. 15; www.umoutroolhar.com.br/25anos.htm)

87Em entrevista a Verônica Ferreira (1995/1996, p. 181), a feminista Eleonora Menicucci de Oliveira se refere à

imagem da “sapatão” como algo construído pelo mundo masculino, cujos pés são maiores do que os das mulhe- res em geral para evidenciar o medo que sentiam que as feministas tomassem os seus lugares na sociedade. Nas suas palavras, “quando esse mundo masculino ouviu, na década de 70, as mulheres dizerem que queriam pensar por conta própria [...], ficou louco, completamente sem sapatos, ficou descalço. Então eles olharam e falaram: 'Elas estão tomando nossos sapatos; elas vão querer pisar forte [...]; a feminista está tomando o nosso lugar'. Chamar de sapatão é desqualificar a mulher que não precisa do homem [...], tanto faz ser lésbica como não ser.

de feminismo de acordo com as experiências de suas autoras. [...] Assim, as mulhe- res lésbicas vêm também construindo sua própria concepção de feminismo através da análise da situação da mulher em suas respectivas sociedades e do lugar que ocu- pam as lésbicas neste contexto com um enfoque mais aberto (apud Ferreira, 1995/1996, p. 191).