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7 Considerações finais

O feminismo brasileiro, da segunda metade do século XX em diante, se organizou em meio a uma “onda” de modernização da sociedade e de tomadas de decisões políticas por par- te do Estado que agravavam as hierarquias e as desigualdades sociais no país. Com a progres- siva implantação do regime de ditadura civil-militar e suas práticas arbitrárias (cassação aos direitos civis e políticos, censura, prisões e torturas, etc.), o feminismo se aliou aos demais grupos de resistência em favor das chamadas lutas gerais (saneamento básico, anistia, rede- mocratização, etc.), adquirindo a marca da dupla militância: nas causas sociais e na luta pelos direitos das mulheres.

As feministas da década de 1970, e início dos anos 80, circulavam entre os inúmeros grupos que compunham o movimento de mulheres brasileiro (clubes de mães, Movimento de Mulheres pela Anistia, associações de bairro, departamentos femininos, etc.), os movimentos sociais e a esquerda no país. Nestes espaços, estiveram muitas vezes em desacordo com as idéias vigentes e/ou não encontravam aceitação para algumas das suas questões. Alguns temas foram percebidos como temas-tabu: a sexualidade, a violência doméstica, o aborto, a distri- buição do poder decisório no espaço público e na família, dentre outros.

Grupos só de mulheres foram organizados para propiciar o “desabafo” e a discussão

dos temas-tabu. Nos grupos exercitava-se a fala e a tomada de consciência dos problemas co- muns à maioria das mulheres na sociedade. Verdadeiros laboratórios feministas e de conscien- tização política, estes grupos deram suporte e força às suas participantes para assumirem a luta contra a discriminação e a subordinação da mulher em todos os espaços por elas freqüentados.

Dentre as estratégias de luta adotadas pelas feministas brasileiras estava a da publica- ção de material informativo e formativo (livros, jornais, panfletos, artigos em revistas, etc.), o contato com as exiladas políticas e feministas de outros países (latino-americanas, européias, estadunidenses), a insistência em incluir nas pautas dos demais grupos (igrejas, sindicatos, partidos políticos, movimentos populares, etc.) as questões referentes a situação da mulher no Brasil (e nos próprios grupos), manifestações coletivas (passeatas, peças de teatro, comemora- ções públicas) para dar visibilidade às causas das mulheres e, posteriormente, a criação de en- tidades específicas para auxiliar na superação dos problemas (SOS - Saúde, delegacias de

atendimento à mulher, Conselhos da Condição Feminina, ONGs, etc.),

As estratégias adotadas surtiram três tipos de efeito: a expansão das idéias feministas, a ampliação dos direitos das mulheres (divórcio, administração dos bens, acesso a carreiras de trabalho consideradas masculinas, uso de métodos contraceptivos, cotas nos partidos e sindi- catos, direitos trabalhistas para empregadas domésticas, aposentadoria para a trabalhadora ru- ral, etc.) e uma rejeição ao termo feminismo por vários setores da sociedade.

Um forte preconceito marcou a palavra feminista, dando-lhe, em muitos casos, uma conotação pejorativa: anti-feminina, anti-homem, anti-nacionalista (adepta de um “estrangei- rismo”), promíscua, “puta”, “sapatão”, com problemas emocionais (“mal-amada”, “frígida”) e/ou estéticos (“feia”), etc. Este preconceito, disseminado pelas alas conservadoras da socieda- de e por parcelas da esquerda (companheiros/as de partido, sindicato, movimentos populares, CEBs, jornalistas ligados à imprensa alternativa, etc.), foi responsável pela rejeição do termo feminismo por muitas mulheres, incluindo militantes identificadas com causas feministas.

Ainda assim, o pensamento feminista brasileiro “sustentou e se nutriu do processo de construção coletiva empreendido historicamente pelas mulheres em distintas partes do mundo [e desestabilizou] a lógica moldada por mitos e estereótipos, que reforçava a discriminação das mulheres”. (Prá e Carvalho, 2004). Além disso, causou transformações no campo social e político do país.

Todo o processo de organização do feminismo no Brasil foi permeado por debates: in- ternos e externos, em pequenos grupos (locais) e grandes fóruns (encontros nacionais e inter- nacionais), sobre temas compartilhados com os demais movimentos ou temas-tabu, discutindo as pautas e os rumos a seguir.

As feministas entenderam que o seu campo de ação compreendia todas as esferas da sociedade: a família, os partidos e sindicatos, as igrejas, os meios de comunicação e produ- ção, o sistema educacional e jurídico, as área da saúde e da arte, etc. A luta era geral. Institui- ções, práticas e mentalidades precisavam ser alteradas. Como resultado, adquiriu-se uma prá- tica teórica e política complexa e flexível, com uma variedade de posições e estratégias.

A idéia de política foi ampliada para acomodar questões ligadas ao mundo do privado e novas estratégias de atuação social e de diálogo com o Estado foram colocadas em prática. Junto aos partidos políticos e sindicatos, conseguiu-se implantar cotas para mulheres. Foram criados órgãos estatais (como o CNDM e, recentemente, a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres) voltados para causas de cunho feminista. Além disso, vias de ação mais direta também foram experimentadas (como por ocasião do processo constituinte de 1997/1988,

quando diferentes interesses foram articulados e defendidos no espaço legislativo sem a medi- ação efetiva dos partidos). As ONGs feministas procuram trabalhar com as demandas dos mais diversos grupos de mulheres, estabelecendo redes de apoio e intermediando parte da pro- dução técnica e teórica.

Dentre os campos de ação do feminismo brasileiro, estavam as universidades e os de- mais espaços de produção acadêmica (como institutos e fundações). Pretendia-se tornar o mundo das mulheres visível, denunciar as desigualdades e a opressão e valorizar as funções por elas desempenhadas. Para tanto, era preciso convencer a comunidade científica da rele- vância e legitimidade de pesquisas sobre a mulher.

O trabalho das feministas acadêmicas foi identificado como incompatível com a pes- quisa científica por não apresentar algumas das características consideradas básicas para este campo: neutralidade e objetividade. O grau de envolvimento entre pesquisadora e objeto era evidente, bem como o teor político da pesquisa. Além disso, a necessidade de obter recursos financeiros colocava as pesquisadoras em uma situação delicada frente aos órgãos de fomento que passavam a atuar no país. Dentro do movimento de mulheres, questionava-se a viabilida- de de um projeto como este por não se acreditar ser possível manter sua autonomia se vincula- do às instituições.

Apesar das dificuldades, os estudos feministas começaram a se estruturar no Brasil. A exemplo dos grupos de reflexão, as pesquisadoras se organizaram em grupos para discutir seus problemas, elaborar estratégias e dividir resultados. As Associações Nacionais de Pesqui- sa e Pós-Graduação serviram de palco para muitos desses encontros no final da década de 1970 e na década seguinte. A “questão da mulher” também era incorporada por fundações e institutos dedicados ao estudo da realidade brasileira e, especialmente, a Fundação Carlos Chagas criava meios para fomentar pesquisas e instrumentalizar jovens pesquisadoras na área.

Organizadas em grupos, encontrando-se com certa regularidade, as feministas criaram um campo de pesquisas próprio. Uma das principais marcas deste novo campo foi a multidis- ciplinaridade. Representantes das mais diversas disciplinas “sentavam” juntas para discutir te- mas e questões com colegas de uma mesma universidade ou com representantes de várias par- tes do país. Uma rede de contatos e pesquisas foi montada.

As pesquisas giraram, inicialmente, em torno do tema da condição feminina e tiveram por característica o levantamento de dados sobre a situação da mulher no Brasil. Em seguida, passaram a contemplar um leque bastante grande de problemáticas atreladas ao tema dos estu-

ras a evitá-lo. Além disso, a categoria mulher se mostrava capaz de agregar um número maior de pesquisadoras e possuía melhor aceitação dentro e fora da universidade (pelas demais mili- tantes do movimento de mulheres).

Três grupos merecem destaque pela sua organização e produção teórica nos primeiros anos de estruturação dos estudos sobre a mulher no Brasil: as pesquisadoras da Fundação Car- los Chagas (ligadas ao Curso de Dotação para Pesquisa), as antropólogas do Museu Nacional do Rio de Janeiro e as sociólogas organizadas dentro da ANPOCS. A pergunta sobre os funda- mentos da desigualdade entre homens e mulheres norteou grande parte do trabalho destas pes- quisadoras. Para respondê-la, inúmeras teorias foram revisitadas e reelaboradas: teorias mar- xistas, psicanalíticas, estruturalistas, etc. Muitos temas entraram em pauta: ganharam especial destaque os temas do trabalho, do patriarcado e dos estereótipos sexuais, ancorados em disci- plinas como a Antropologia, a Psicologia Social e a Sociologia.

A rede de contatos formada pelas feministas, além de mantê-las conectadas, propiciava uma grande circulação de textos. Muitas feministas também mantinham contato com outros centros de pesquisa nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina. Dessa forma, o cam- po dos estudos feministas no Brasil se formou interligado ao feminismo internacional, rece- bendo, simultaneamente, uma grande quantidade de informações e posicionamentos teóricos.

Em praticamente todas as universidades (nacionais e internacionais) as feministas se depararam com elaborações teóricas ancoradas em uma lógica binária do mundo que aproxi- mava as mulheres com a natureza, a matéria, a reprodução, a passividade e o irracional (em oposição à cultura, ao trabalho produtivo, à ação transformadora e à razão). Para estas teorias, a causa da opressão das mulheres estava nelas mesmas, inscrita na sua “natureza”: o corpo, o aparelho reprodutor feminino, definia o destino da mulher, moldando sua mente e, conseqüen- temente, seu lugar em todas as esferas da sociedade (na família, na política, no mundo do tra- balho, na religião, no campo intelectual, etc.)

Este determinismo bio-sexual das explicações correntes sobre a situação de inferiori- dade das mulheres foi rejeitado pelas feministas. Teorias marxistas, psicanalítica e antropoló- gicas apontavam para a historicidade e a grande variedade de comportamentos sociais, políti- cos e econômicos. Ainda que na maioria dos casos a opressão e a subordinação da mulher era verificada, esta era compreendida como resultado de um complexo emaranhado de relações legitimadoras do poder dos homens sobre as mulheres. Em meio a estas reflexões, as feminis- tas se depararam com o conceito de gênero.

Cunhado entre a classe médico-psicanalítica estadunidense para distinguir aspectos só- cio-culturais daqueles considerados inatos e atrelados ao sexo dos indivíduos, o conceito de gênero foi reformulado e resignificado pelas pesquisadoras feministas para enfatizar o caráter político e histórico das definições normativas de feminilidade e masculinidade. Para a antro- póloga Gayle Rubin (1993), a subordinação da mulher deveria ser pensada dentro de sistemas

culturais de atribuição de características e valores. Estes sistemas tomavam por base o sexo

dos indivíduos e os enquadravam dentro de uma lógica de ordenação binária e hierárquica do mundo. O conjunto de características consideradas adequadas para cada sexo implicava o gê- nero de cada um.

O gênero indicaria, pois, uma complexa rede de relações sociais. Para compreendê-la seria necessário entender as realidades empíricas dos indivíduos e os contextos específicos nos quais o sistema sexo/gênero operacionaliza relações de poder. Às pesquisadoras caberia denunciar e analisar as diferentes formas pelas quais as hierarquias de gênero são construídas, legitimadas, contestadas e mantidas entre os grupos mais diversos e em diferentes tempos his- tóricos. Com isso, pretendia-se uma mudança de paradigmas para conciliar teorias concebidas em termos universais aos contextos específicos de cada grupo humano ou sociedade.

O conceito de gênero chegou ao Brasil no início da década de 1980. As antropólogas do Museu Nacional se referem ao sistema sexo/gênero, pensado por Rubin, em uma publica- ção de 1981. No entanto, é na segunda metade da década que o conceito passou a circular en- tre os demais grupos de pesquisadoras brasileiras, advindo do contexto francês e apoiado nos estudos de uma historiadora: Joan Wallach Scott. A época marcava a consolidação da pesquisa sobre as mulheres no campo da História tanto nos EUA como na França.

No ano de 1987, o Núcleo de Pesquisas Sobre a Mulher da USP, iniciou uma forte dis- cussão sobre a utilidade do conceito, amparada no ensaio de Scott. O texto também circulara entre as pesquisadoras reunidas naquele ano na ANPOCS. Em pouco tempo, os mais diversos grupos discutiam o conceito de gênero e procuravam aplicá-lo. As publicações em torno do tema indicam um número ainda maior de disciplinas envolvidas no campo de estudos sobre a mulher: Ciência Política, Literatura, História, Pedagogia, Psicologia, etc.

O conceito parecia condensar uma série de questões há muito discutidas e pensadas entre as feministas. Além disso, representava uma alternativa às dificuldades vivenciadas na academia: uma suposta crise de paradigmas, rejeição ao termo feminismo, acusação de falta de objetividade e neutralidade das pesquisas, críticas ao “gueto” e à qualidade das pesquisas multidisciplinares, necessidade de financiamento científico, incentivo e pressão dos órgãos fi-

nanciadores, etc. Cada um destes elementos influenciou, em maior ou menor medida, a ado- ção do conceito de gênero.

No início da década de 1990, parte dos estudos sobre a mulher se fundiu com os estu-

dos de gênero no Brasil e a grande maioria dos núcleos e grupos de pesquisa das universida-

des passaram a se auto-denominar grupos dedicados ao estudo das relações de gênero. No mesmo período, porém, as redes de pesquisa nacionais (que congregavam os núcleos) se iden- tificavam abertamente com o feminismo e a Revista Estudos Feministas foi criada para impul- sionar a publicação das pesquisas feministas/sobre a mulher e de gênero no país.

Desde o início do processo de introdução do conceito de gênero nas universidades bra- sileiras é possível perceber uma certa preocupação, entre algumas pesquisadoras, com a liga- ção do conceito às práticas políticas feministas (Vicentini, 1989). Nos últimos anos, esta preo- cupação deu lugar a um conjunto de críticas, divididas em dois grupos: as críticas ao conceito e às formas como ele é usado.

As críticas ao conceito aparecem agrupadas em torno de duas questões. A primeira diz respeito ao binarismo sexo-gênero (onde a ênfase recai apenas sobre o gênero e se deixou de questionar as elaborações teóricas tradicionais sobre o corpo, a natureza e o sexo) e a segunda se preocupa com a radicalização da idéia construtivista derivada deste conceito (onde tudo é relativizado, causando uma paralisia política). Além disso, o conceito expressaria a existência de inúmeras categorias da diferença (etnia, geração, classe, opção sexual, etc.), mas sem con- seguir abarcá-las, o que implicaria a necessidade de sua resignificação para contemplar as de- mais intersecções.

As principais críticas ao uso do conceito podem ser resumidas na dificuldade em ex- plicá-lo (a semântica do termo em português: um termo masculino com outros significados dentro da língua), na redução do seu aspecto relacional ao binarismo homem-mulher (ou mas- culino-feminino), na sua equiparação à categoria mulher (onde ocorre uma mera substituição de termos, implicando na descaracterização do conceito e em uma nova forma de invisibilida- de da mulher: nomeada apenas de forma implícita), na apropriação do termo pelas instituições governamentais sem a carga crítica dos estudos feministas (à opressão e à subordinação da mulher), na ausência de uma postura crítica aos fundamentos sexistas da ciência (optando pela adaptação ao espaço acadêmico), e na ausência de um compromisso político mais claro em prol da superação das desigualdades no campo social.

As críticas aos usos e limites do conceito de gênero no Brasil têm levado algumas pes- quisadoras a debater a questão e a publicar artigos referentes ao assunto. As publicações, além de retratarem a problemática, sugerem propostas para alguns dos problemas verificados: o re- torno à categoria mulher (resignificada, não-essencialista, entendida como categoria política, uma identidade positiva e capaz de aglutinar os mais diversos grupos no campo político, res- peitando-lhes as diferenças), a utilização do conceito de gênero acompanhado dos conceitos de classe e patriarcado (para lidar com as demais formas de desigualdade social, exemplifica- das na simbiose “patriarcado-racismo-capitalismo”) e a reformulação do conceito para adaptá- lo aos eixos das políticas de redistribuição (focadas na classe e na problemática do trabalho) e das políticas de reconhecimento (focadas no status e nos valores sociais/culturais).

Para a maioria das entrevistadas, o conceito de gênero é entendido como uma conquis- ta do/para o feminismo, resultado de muitas décadas de reflexão e amadurecimento teórico. Com exceção de Cláudia de Lima Costa (que trabalha com a idéia de insuficiência do concei- to) as críticas se dão quanto à sua instrumentalização. Há um consenso de que é preciso dialo- gar e refletir sobre as tensões surgidas no campo dos estudos feministas e dos estudos de gê-

nero. Parte das dificuldades teriam a ver com o alto grau de complexidade do conceito (segun-

do Corrêa, Schmidt e Maluf) e parte com a “acomodação de forças” dentro de um campo mai- or: o campo das pesquisas sobre mulher/feminismo e gênero.

A preocupação com a militância também aparece nas entrevistas. Não se acredita em neutralidade política na academia. O posicionamento do gênero dentro do campo do feminis- mo teria a função de atrelar o novo conceito às causas políticas feministas que, por sua vez, implicam em ação e reflexão, teoria e prática: uma negatividade crítica (no campo teórico) e uma afirmatividade política (no campo da ação/prática, Cf. Maluf, Costa e Schmidt).

Avaliando o material apresentado nesta dissertação, concluímos que os estudos femi- nistas efetuaram uma grande caminhada nas últimas três décadas. Um volume muito grande de pesquisas foi realizado e um certo respeito foi conquistado entre a comunidade acadêmica. O processo de implantação do campo de pesquisas atualmente identificado como feminis- ta/sobre a mulher/de gênero parece ainda não ter terminado. Neste campo, os debates internos são uma prática salutar e constante, auxiliam no amadurecimento das questões e procuram manter a academia ligada à prática nos movimentos.

O diálogo e o esforço para superar práticas políticas hierárquicas têm complexificado tanto a teoria quanto a prática política feminista. O conceito de gênero reflete essas dificulda- des: pretende abarcar uma totalidade complexa, respeitando-lhe a diversidade. Não há como

fazê-lo sem enfrentar tensões e conflitos. Além disso, os estudos feministas/sobre a mulher/de gênero têm se estruturado de forma multidisciplinar, acarretando novos ganhos e problemas.