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2.1 O Brasil e as feministas da década

A sociedade brasileira também passava por inúmeras e “significativas transformações políticas, culturais, sociais e econômicas” no final dos anos cinqüenta e durante a década de 1960 (Ferreira, 1996, p. 170). Tudo parecia estar mudando. A participação feminina no traba- lho, nas universidades e na vida social crescera consideravelmente. O movimento hippie, a mini-saia e a pílula anticoncepcional revolucionavam o cotidiano e os costumes.

No campo da política e da economia, uma espécie de “milagre econômico”, resultado das políticas desenvolvimentistas iniciadas na década anterior pelo governo de Juscelino Ku- bitschec (1956-1961) satisfizera a classe média urbana emergente e aprofundara as desigual- dades sociais. Segundo Goldberg-Salinas (1996), essa mudanças tiveram um forte impacto so- bre a vida das mulheres jovens da classe média urbana que procuravam escapar do domínio de suas famílias e decidir seus próprios rumos. Para dar vazão a estes anseios emancipatórios, al- gumas jovens fizeram curso superior e seguiram uma carreira (conciliando-a com o casamento e a maternidade), outras assumiram uma certa radicalidade e passaram a freqüentar o meio ar- tístico-cultural e grupos de esquerda.

As revistas dedicadas ao público feminino igualmente modificavam-se, agora mais dispostas a refletir e questionar a situação tradicional da mulher na sociedade, substituindo “o conteúdo de suas matérias, que até então estavam mais voltadas para culinária, corte e costura, decoração moda e beleza” (Toscano e Goldenberg, 1992, p. 32). Enfatizava-se uma “nova mu- lher”, consumista e transgressora dos valores. Como coloca Goldberg-Salinas (1996)

Celui-ci oeuvrait à diffuser des représentations soit de femmes célibataires de plus en plus attirantes et libérées sexuellement et de plus en plus intéressantes d'un point de vue intellectuel (ce qui devient la bonne formule pour réussir dans le marché du mariage et du travail), soit de femmes mariées qui ne souffraient pas du “mal sans nom” car si la vie en famille devenait difficile à supporter, il était facile de se procu- rer des distractions (y compris un amant), d'avoir d'autres activités en dehors du foyer comme, par exemple, fréquenter des cours de culture physique, d'extension universitaire et autres.

Exceção pode ser dada à coluna de Carmen da Silva na revista Cláudia. Contratada para escrever a coluna A arte de ser mulher, no ano de 1962, a escritora, jornalista e feminista respondia às inúmeras cartas que falavam da insatisfação das mulheres para com a sua vida sexual e afetiva, incentivando-as, através de uma linguagem convincente e acessível, a enfren- tarem a situação por meio do rompimento de relacionamentos fracassados e da busca por re- muneração salarial. De grande abrangência pelo país, o trabalho dessa jornalista influenciou muitas mulheres no sentido de modificarem suas vidas e de se engajarem em causas feminis- tas (Toscano e Goldenberg, 1993, p. 33)32.

Essa “modernização” da mulher brasileira entrava em curso “numa sociedade altamen- te hierarquizada em termos de classe, raça e gênero, reproduzindo estas diferenciações” (Sarti, 1988, p. 39). A forte hierarquia foi decisiva para a expansão de apenas uma parcela da popula- ção feminina (enquanto limitava outra33) e para atenuar os conflitos entre homens e mulheres.

Ainda assim, a imagem da “mulher moderna” espalhou-se, criando um novo modelo de con- duta e estética.

Nesse período, a presença da mulher na universidade e no mercado de trabalho, davam início às primeiras pesquisas sobre a condição feminina no país. Dentre elas destacam-se o trabalho pioneiro de Heleieth Saffioti de investigação sobre as operárias da indústria têxtil e professoras primárias realizado no ano de 1962 (Saffioti, 1987, p. 121), a dissertação de mes- trado de Manoel Tosta Berlinck, Algumas percepções sobre a mudança do papel ocupacional

da mulher na cidade de São Paulo, defendida na Escola de Sociologia e Política em 1964 e,

em 1965, a tese de doutorado de Marly A. Cardone, A influência da gravidez no contrato de

trabalho, na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da USP.

O tema trabalho interessava a acadêmicos/as e militantes de grupos populares (cujo número aumentava consideravelmente em todo o país sob influência da esquerda, em especial, do Partido Comunista Brasileiro, até o golpe de 1964). Além disso, as pesquisas de mercado e de caráter ocupacional eram tendências sociológicas da época.

Tal qual acontecera em outros lugares, após a revelação dos crimes de Stalin na União Soviética, os/as intelectuais marxistas do país iniciaram um processo de reflexão e abertura no PCB. Como coloca Coutinho (1990),

32Carmen da Silva, em sua autobiografia Histórias Híbridas de uma Senhora de Respeito (1984) comenta o efei-

to da coluna A arte de ser mulher na vida de muitas das suas leitoras. Algumas lhe escreviam para agradecer, de- sabafar, pedir conselhos e falar das mudanças que começavam a operar na própria vida após a leitura de um dos seus artigos. A coluna existiu por quase vinte anos, extingüindo-se em 1985 devido o falecimento da jornalista. Uma coletânea de seus artigos encontra-se em: Civita, 1994).

33Exemplo disso é a presença de empregadas domésticas (em sua maioria negras) “na casa de grande parte das

famílias das camadas médias e altas, uma particularidade brasileira, para não dizer latino-americana”. A “inde- pendência feminina” teve um nítido recorte de classe e cor (Sarti, 1988, p. 39).

Ingressando na universidade e influenciando vários aparelhos culturais (inclusive governamentais), a cultura marxista cujo raio de ação começava a transcender o âm- bito do PCB foi obrigada a se diversificar, a se abrir para o debate com outras cor- rentes ideológicas, a romper os estreitos limites do Diamat soviético. Embora a dire- ção do PCB não tenha promovido essa renovação, o fato é que não obstaculizou o seu encaminhamento por parte de alguns jovens intelectuais ligados ao partido: a di- reção parecia ter compreendido que a renovação do marxismo era o pressuposto ne- cessário para que o partido continuasse a exercer influência sobre uma esquerda que se expandia, sobretudo entre os intelectuais e os estudantes universitários.

A abertura se dava, no entanto, de forma parcial. Ainda segundo Coutinho, em meados da década de 1960, “os intelectuais comunistas podiam agir livremente no domínio da cultura, propondo uma renovação filosófica e estética do marxismo brasileiro, mas continuava a ser atribuição da direção do partido a tarefa de dar a última palavra nas questões especificamente políticas”. Como resultado, duas vertentes se formavam: um marxismo menos dogmático no campo acadêmico e um “marxismo-leninista” na política.34

A implantação do regime civil-militar, em 1964, causou um enorme choque entre os grupos que se organizavam no campo político. Nas palavras de Goldberg-Salinas (1996),

D'un côté, un miracle économique proclamé crée une société de consommation as- sez sophistiquée et favorise les rêves d'ascension sociale des couches moyennes ur- baines ; d'un autre côté la répression féroce à toute opposition au régime se traduit par un rétrécissement considérable du champ de possibilités pour l'expansion de projets transformateurs de la société.

Fanny Tabak (1983, p. 78) observa que, durante as ditaduras latino-americanas, milha- res de mulheres “vieram a compreender a estreita relação existente entre suas vidas e famílias 'privadas' e os sistemas políticos no poder”, transformando-se em ativistas políticas. No Bra- sil, inúmeras mulheres se juntaram à luta armada ou ingressaram em partidos políticos fazen- do oposição ao regime civil-militar.

Apesar do foco destas lutas não ter sido o questionamento e a modificação dos papéis sociais atribuídos às mulheres pela sociedade, a presença de feministas entre os mais diversos grupos e partidos políticos era significativa. Como observa Celi Regina Pinto (2003, p. 45), o feminismo brasileiro não escapou do fato de ter de trabalhar com uma problemática dupla: por um lado, o “reconhecimento de que ser mulher, tanto no espaço público como no privado, acarreta conseqüências definitivas para a vida e que, portanto, há uma luta específica”, contra a subordinação e a opressão da mulher. Por outro, a consciência “de que existe no Brasil uma grande questão: a fome, a miséria, enfim, a desigualdade social, e que este não é um problema

34Como conseqüência, durante o período da ditadura militar, “amplos setores da intelectualidade de esquerda, ra-

dicalizando sua oposição a uma ditadura que também se radicalizava, não mais reconheciam nas formulações políticas do PCB (e da cultura marxista que permanecia sob sua influência) uma resposta adequada aos desafios da nova situação” (Coutinho, 1990).

que pode ficar fora de qualquer luta específica”.

Por conta das contradições presentes na realidade brasileira, inúmeras temáticas foram assumidas pelas feministas durante a segunda metade da década de 1960, exemplificadas em suas produções teóricas. Assim, no ano de 1966 a Editora Vozes publicava A Mulher na Cons-

trução do Mundo Futuro, de Rose Marie Muraro, abordando as mudanças tecnológicas do sé-

culo XX, as restrições impostas às mulheres e a necessidade de elas se apossarem dessas transformações. O livro vendeu 10.000 exemplares em apenas 3 meses. No mesmo ano a Civi- lização Brasileira publicou os textos de Carmen da Silva em sua coluna A arte de Ser Mulher e, no ano seguinte, o livro de Carmen O Homem e a Mulher no Mundo Moderno.

Alguns periódicos iniciavam, igualmente, a publicação de textos de feministas ou que tratavam de assuntos afins. A Revista Civilização Brasileira (Rio de Janeiro, n. 1, vol. 4, set. 1965) publicou um texto de Olga Werneck intitulado “O subdesenvolvimento e a situação da Mulher”. A Revista Paz e Terra (Rio de Janeiro) publicou artigos de Maria Helena Kühner, “Mulher, Sujeito ou Objeto” (n. 2, set. 1966) e “Sexo, uma dimensão da liberdade humana” (n. 5, out. 1967). A revista Digesto Econômico (São Paulo, n. 22, mar./abr. 1967), publicou “A Mulher no mundo contemporâneo, de Ivan Lins, e a Revista de Ciência Política (Rio de Janei- ro, n. 2, v. 4, out./dez. 1968) publicou “A Declaração Universal e os Direitos da Mulher, de Fanny Tabak.

Como observa Goldberg (1989, p. 48), os textos de Kühner discutiam a formação de uma autoconsciência em contraposição à consciência-reflexo (onde o olhar de outro atribui o sentido à existência da mulher). Uma postura de engajamento na sociedade seria necessária para uma verdadeira libertação da mulher. Rose Marie Muraro (apud Goldberg, 1989), por sua vez, influenciada pelo pensamento católico de esquerda, acreditava em valores específicos das mulheres, ligados à capacidade de gerar e manter a vida (a maternidade). Tais valores podiam salvar o mundo, cada vez mais desigual, despersonalizado, manipulado pela cultura de massa e dominado por valores masculinos (altamente competitivos e belicistas). Muraro fala ainda de um “feminismo da fome”, “aplicável às sociedades onde a estrutura de classes e o sistema de dominação faziam com que um movimento de liberação só pudesse ser eficaz se fosse as- sumido pelas mulheres das camadas mais desfavoráveis [sic] e integrado a uma luta 'mais ge- ral' contra o Estado”, pela transformação social.

Abordando a temática da produção intelectual feminista, Saffioti (1987, p. 124) vê o Brasil como um dos países pioneiros dentro de um contexto internacional. Do seu ponto de vista, poucas autoras estrangeiras eram lidas durante a década de 1960 e, ainda assim, eram

escassos os exemplares. Para ela, “embora essas obras, sobretudo O Segundo Sexo35, tenham sido responsáveis pelo despertar de um primeiro interesse pelo tema, a produção brasileira foi, desde seu início, bastante original”.

De 1968 a 1969, mais três livros foram lançados (todos pela editora Vozes36, exempli-

ficando a grande variedade de discussões em torno do tema “mulher”): A Automação e o Fu-

turo do Homem, de Rose Marie Muraro (1968, abordando a questão do desenvolvimento da

sociedade e da participação das mulheres nesse processo); A Mulher Brinquedo do Homem, de Heloneida Studart (1969, sexualidade e relações entre homens e mulheres); e Mulher na Soci-

edade de Classes: Mito e Realidade, Heleieth Saffioti (1969, trabalho e lutas de classe).

O livro de Heleieth Saffioti tornou-se referência para feministas e cientistas sociais brasileiras/os e anglo-saxãs/ões37. O argumento central de sua obra era o processo de incorpo- ração do trabalho da mulher pelo sistema capitalista que, “ora incorpora as mulheres no siste- ma de produção, ora descarta-as e as marginaliza na família como exército de reserva, segun- do as suas exigências, para rebaixar os salários e dividir a classe trabalhadora” (Sorj, 1995, p. 157). Saffioti, mediante uma análise marxista da situação da mulher, percebia a sua inferiori- dade na sociedade como produto de uma necessidade estrutural do capitalismo.

Ainda que militasse entre os grupos de esquerda e entendesse a luta feminista como intimamente ligada às questões de classe, Saffioti (1976, p. 274) valorizava as conquistas do feminismo tido por ela como “pequeno-burguês” (representado pelas sufragistas e por grupos de classe média).

Conquanto não tenha obtido pleno êxito e nem tenha contado, mesmo na fase de apogeu, com a adesão de grandes massas femininas, desempenhou relevante papel no que diz respeito ao despertar da consciência da mulher não apenas para os seus problemas, como também para todos os problemas do mundo moderno que, em últi- ma instância, a afetam direta ou indiretamente.

Para ela (Saffioti, 1976, p. 274), o feminismo de suas antecessoras fora responsável “em boa parcela das mulheres” pela “aspiração de libertar-se e de emancipar-se através do tra- balho”, atuando como um “fator positivo, porquanto permitiu certa concomitância entre o amadurecimento das idéias feministas nacionais e o avanço da mulher em determinadas áreas

35O livro será abordado no capítulo III.

36Demonstrando o grande interesse dessa entidade para com as questões da mulher nesse momento histórico. 37Para avaliar o alcance dessa obra e seus efeitos, no contexto dos debates sobre a mulher das décadas de 60 e

70, ver o texto Dois olhares sobre Heleieth Saffioti (Sorj, 1995). Celi Pinto (2003, p. 86) observa que o livro de Saffioti é “um marco por uma série de razões, principalmente por seu inegável mérito acadêmico, mas também por ter trazido o tema da opressão da mulher para dentro do debate marxista, que até então não a admitia de for- ma alguma. Além disso, a importância do trabalho levou ao envolvimento público com o tema de dois dos mais importantes intelectuais brasileiros da segunda metade do século XX, Florestan Fernandes e Antônio Candido”. Fernandes orientou Saffioti e Candido escreveu o prefácio para a publicação do livro.

como as do trabalho fora do lar, da educação, da participação na vida social em geral”. Ainda assim (p. 132-133), era necessário vincular o feminismo às lutas de classe para que não incor- resse no erro de se tornar um mecanismo de atenuação das tensões sociais, não conseguindo jamais modificar a sociedade como um todo.

Uma espécie de “dupla militância” compunha o ideário de muitas feminista brasilei- ras, fazendo com que elas circulassem entre os grupos mais diversos, engajando-se nas causas gerais da sociedade enquanto discutiam problemas específicos ao universo das mulheres. Esta forma de agir teve como conseqüência graves tensões com a esquerda e setores progressistas da Igreja Católica (Costa, 2005).