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3.1 Feminismo e esquerda brasileira

Com a abertura política no Brasil, as possibilidades de atuação na sociedade aumenta- vam, bem como as discussões em torno das pautas e prioridades dos grupos. A recusa das mu- lheres em deixar suas questões para um segundo plano criou novas tensões e rupturas, princi- palmente dentro da esquerda brasileira, interessada no potencial político e mobilizador do mo- vimento feminista mas muito fechada para inúmeras de suas questões.

Analisando a relação entre feminismo e esquerda no ocidente, Delphy (1994, p. 188) observa a complexidade do tema. Para ela,

[...] as relações do feminismo com os movimentos de idéias e com os movimentos institucionais que, há um século e meio, são chamados de “esquerda” não são sim- ples. A nova história feminista está estudando essas relações e ainda não pode, talvez nunca consiga, chegar a uma conclusão geral e unívoca desse estudo. Existem po- rém constantes, verificadas na história recente [...], a esquerda, e mais exatamente a extrema esquerda, foi ao mesmo tempo o interlocutor privilegiado e o “principal ini- migo”.

No Brasil, a situação não foi diferente. Anette Goldberg (1996) argumenta que a es- querda brasileira emitia uma opinião negativa sobre o feminismo antes mesmo de sua organi- zação na esfera pública. Entendido como um “estrangeirismo”, “alheio aos verdadeiros pro- blemas brasileiros, não refletindo nada mais do que as angústias de lésbicas e/ou burguesas se- xualmente frustradas”77, o feminismo era inaceitável. Além disso, “nas questões de moral e

comportamento, a esquerda era conservadora. As mudanças de comportamento nem sempre eram recebidas como avanço, mas como retrocesso, sintomas da decadência da burguesia” (Colling, 1997, p. 33). Neste quadro, alguns dos temas feministas, como a sexualidade, era mal interpretado e entendido como desviante das questões consideradas centrais.

Dentre os movimentos sociais, sindicatos e partidos a situação das feministas também não era fácil, havendo temas-tabu em quase todos. Clair Castilhos, comentando sobre a cria- ção dos primeiros grupos feministas de Santa Catarina (apud Petersen, 2006, p. 75 e 84), ob- serva a existência de uma pauta de restrições imposta às palestrantes do II Encontro de Mu- lheres Catarinense em Chapecó (1981)78 por conta dos dirigentes católicos das Comunidades

Eclesiais de Base. O fato evidenciou para algumas das presentes a necessidade de uma organi- zação mais autônoma, desvinculada dos partidos políticos ou qualquer outra instituição que li- mitasse suas lutas e causas.

77Citação no original: [...] étrangère aux véritables problèmes brésiliens', ne reflétant que les 'angoisses de lesbi-

ennes et/ou de bourgeoises sexuellement frustrées'.

78O I Encontro da Mulher Catarinense fora realizado um ano antes, em 1980, na cidade de Itajaí. No Encontro de

Chapecó se fizeram presentes muitas agricultoras, já dando mostras do que viria a ser um dos movimentos de mulheres mais forte e bem organizado do estado nas décadas seguintes.

Feministas socialistas que militavam no movimento operário enfrentavam, igualmen- te, hostilidades e preconceitos. Como colocam Sardenberg e Costa (1994, p. 91), “a participa- ção das mulheres na produção social sempre foi rechaçada pelos trabalhadores com medo da concorrência, inclusive não aceitavam a participação feminina nos sindicatos, mesmo quando as mulheres constituíam a maioria dos trabalhadores numa categoria profissional”.

Os porta-vozes dos movimento quase sempre eram homens, enquanto as mulheres eram pressionadas a assumir funções secundárias de apoio e obrigadas a respeitar a tomada de decisões da liderança masculinas quando davam voz às suas reivindica- ções, eram freqüentemente sujeitas à humilhação das piadas ou ao menosprezo aber- to. [...] As mulheres do movimento [de mulheres] começaram a perceber o quão di- fícil era para elas mesmas se desvencilharem de atitudes culturais de baixa auto-esti- ma e insegurança, da facilidade com que os homens conseguiam fazê-las duvidar de si mesmas. Ou impedi-las de se perceberem tão politicamente capazes quanto eles. (Adelman, 2005, p. 50)

Apesar das dificuldades, a grande inserção das mulheres no mercado de trabalho, na década de 70, propiciara “uma aproximação entre o movimento sindical e o movimento femi- nista, entre o movimento de mulheres populares e as idéias feministas” (Oliveira, 2005). Para dar conta da problemática das relações de exploração de classe e opressão de sexo, foi cons- truída uma prática social de mão dupla entre os mais diversos grupos de mulheres. Segundo Molyneux (apud Costa, 2005), esta prática distingüiu o feminismo brasileiro do europeu e es- tadunidense, criando “um projeto mais amplo de reforma social, dentro do qual se realizavam os direitos da mulher e formas organizativas que possibilitavam o envolvimento de setores po- pulares”.

A ligação do feminismo com setores populares e o seu potencial político e organizaci- onal eram de grande interesse para a esquerda, preocupada em atrair as mulheres para as suas causas. Hildete Pereira de Melo, militante do Partido Comunista até meados da década de 1970 confirma o interesse do PCB pelo Centro da Mulher Brasileira e as estratégias utilizadas para criar dentro deste centro uma base para o partido (Soihet, 2006, p. 3)79. Como resultado,

as mulheres que defendiam uma pauta diferente, voltadas

para a assimetria de poder nas relações entre homens e mulheres, a violência contra a mulher, enfatizando problemáticas ligadas à subjetividade e às relações interpesso- ais, constituiram–se numa tendência derrotada nos debates que definiram a criação e o perfil do CMB nos primeiros anos de sua fundação.

79Segundo Mary Castro (2000, p. 106) um estudo sobre a “cultura organizacional das esquerdas” no Brasil,

quanto à forma de se relacionarem com os movimentos sociais revelaria a recorrência dessa prática, a de “redu- zir movimentos e organizações específicas a 'cadeias de transmissão' do partido”.

Cardoso (2004), em sua pesquisa sobre a imprensa feminista brasileira, indica uma es- pécie de cerco contra o feminismo desencadeado por grupos de esquerda no início da década de 1980. Para ela (p. 69), o II e o III Congressos da Mulher Paulista (1980 e 1981)80 represen-

taram a ruptura entre as feministas e as pautas destes grupos, marcando o início de uma nova fase para o feminismo brasileiro, mais autônoma e voltada para as questões hoje identificadas como questões de gênero e o aprofundamento dos temas específicos à mulher (Teles, 1993).

O II Congresso da Mulher Paulista reuniu 4 mil mulheres no auditório do Tuca, teatro da PUC/SP. Segundo Cardoso (2004, p. 69), “a movimentação gigantesca era momento ideal para os partidos de esquerda conquistarem força política e convencerem as mulheres de que o feminismo era separativista”. As feministas, por sua vez, já estavam decididas a ter encontros a-partidários e voltados para as questões específicas das mulheres. Prevendo o impasse,

[...] a comissão organizadora tomou todos os cuidados possíveis para garantir a legi- timidade das propostas feministas e impedir que o Congresso fosse usado como pa- lanque político. Mas os acontecimentos não saíram como o esperado. Lideranças do PC, do PC do B e do PMDB usaram até de agressão física para fazer valer seus pon- tos de vista. As feministas se uniram e redigiram um documento execrando as atitu- des presenciadas por todas as presentes, e o Congresso entrou para a história do fe- minismo como um momento de cisão. (Moraes, apud Cardoso, 2004, p. 70)

Para Teles (1993), o “racha” definitivo aconteceu no congresso seguinte (III, 1981), também no Tuca. Na reunião preparatória para o encontro, o MR-8 posicionara-se contra a participação das lésbicas. O PC do B, por sua vez, marcara um encontro paralelo com o intuito de esvaziar o Congresso da Mulher Paulista e forçar suas militantes a escolherem entre o par- tido e as discussões feministas.

A desqualificação de temas feministas dentro dos partidos levou um bom número de mulheres ao desencantamento para com seus companheiros de militância que, “sempre ocu- pando as posições de liderança, as mantiveram numa posição subalterna, fato que a seus olhos tornava discutível sua sinceridade e credibilidade em qualquer domínio” (Soihet, 2006, p. 3). Schmidt (SPS, 5/6/2006), tratando deste assunto, pontua: “se for para pensar onde se sofreu mais para ser feminista, onde foi mais difícil, onde teve mais resistência (é preciso dizer que) a esquerda foi muito mais brutal nos períodos de enfrentamento do que a academia. [...] Eu apanhei muito mais da esquerda do que da academia”.81

80O I Congresso da Mulher Paulista, organizado por feministas em 1979, é citado por Soares (1994, p. 16, n.r.

17) como responsável pela articulação de centenas de mulheres espalhadas pelos bairros de São Paulo, dando maior visibilidade às lutas por creche e contra a carestia de vida (esta última considerada “uma das primeiras manifestações contra o regime civil-militar” no país).

81Christine Delphy (1994, p. 190) observa a recorrência desse fenômeno nos países ocidentais onde a esquerda e

Muitos dos temas abordados pelas esquerdas tradicionais não foram abandonadas pe- las feministas - ao contrário, permaneceram na base de suas reflexões. A luta contra formas ar- bitrárias de atuação (no plano das relações pessoais ou no campo da política), contra a opres- são e a exploração, contra as injustiças sociais, a favor da liberdade e da dignidade humana mantiveram-se uma constante. Entendeu-se, no entanto, que as questões ligadas às mulheres teriam de ser assumidas por elas pois seus aliados não o fariam (afirmando que isto se resolve- ria “depois”), muito menos a direta conservadora.

Como observa Rodrigues (2001), em relação às mulheres, as diferenças ideológicas dos mais diversos grupos não implicava práticas diferenciadas:

[...] os partidos, todos eles, os de direita e os de esquerda, desenvolviam uma relação utilitarista com as mulheres, usando-as para seus projetos partidários, [...] os parti- dos reproduziam, em geral, práticas sexistas e autoritárias, desconsiderando a condi- ção feminina e desrespeitando as próprias mulheres.

A dominação sexista e as relações de poder estabelecidas entre os sexos dentro dos grupos foram sistematicamente denunciadas, na tentativa de impedir que as questões de domi- nação interna, entre os integrantes dos grupos, fossem preteridas. Para Rago (1995/1996, p. 36-37), o distanciamento em relação ao discurso marxista masculino (e, obviamente, dos de- mais discursos de caráter masculinista) implicou ganhos para a reflexão feminista, facilitando “a incorporação de temas-tabus como os referentes aos sentimentos, às emoções, à sexualida- de ou à moda e, por conseguinte, a procura de novos conceitos capazes de enunciá-los e inter- pretá-los”.

A dicotomia entre a luta geral e a específica foi gradativamente rompida, dando lugar à crença de que “nenhuma luta é mais 'particular' que outra: todas são particulares e universais, se partirmos de uma concepção de esquerda na qual o ser humano deve buscar um desenvolvi- mento pleno e integral” (Cruz, 2003, p. 13). A separação entre as esferas pública e privada foi questionada “pois a dinâmica de poder existe nas duas esferas. As relações familiares são tam- bém relações sociais e relações de poder, entre sexos e gerações. As relações entre os sexos não são naturais ou biologicamente determinadas. São construídas socialmente e, portanto, historicamente determinadas.” (Sardenberg e Costa, 1994, p. 94). Teorias políticas que não le- vassem estes aspectos em consideração não estariam fazendo jus à realidade social nem seri- am suficientemente socialistas ou libertárias.