• Nenhum resultado encontrado

2.3 Feminismo, movimento de mulheres e as “lutas gerais”

A coexistência entre uma camada que se modernizava, uma população carente de ne- cessidades básicas e uma direção política ditatorial formavam um quadro complexo e hetero- gêneo no país, influenciando as demandas sociais e agrupando mulheres de todas as camadas sociais. A este agrupamento mais amplo convencionou-se chamar de Movimento de Mulheres (Soares, 1998; Sarti, 1998; Paoli, 1995), em que as feministas compõem uma das suas faces e “as mulheres das periferias dos centros urbanos, das pequenas comunidades rurais, as que atu- am nos sindicatos compõem a outra face” (Soares, 1994, p. 15).

Uma articulação peculiar entre feministas de classe média e de camadas populares deu origem a um “movimento circular de mútua influência” (Sarti, 1988, p. 40). Como argumenta Soares (p. 39), todas as vertentes do movimento “se tocam, se entrelaçam, entram em contra- dição” e abrigam “ações coletivas diversas, com diferentes significados, alcances e durações”. Dentre elas, as feministas

[...] traduzem a rebeldia das mulheres na identificação de sua situação de subordina- ção e exclusão do poder e buscam construir uma proposta ideológica que reverta esta marginalidade e que se concretize a partir da construção de uma prática social que negue os mecanismos que impedem o desenvolvimento de sua consciência como seres autônomos e que supere a exclusão. As feministas fazem do conheci- mento e da eliminação das hierarquias sexuais seu objetivo central, e a partir daí se articulam com as outras vertentes do movimento de mulheres.

Enquanto na Europa eclodia uma série de movimentos sociais de forte conotação cul- tural, questionando os valores da sociedade industrial (que acreditava ser suficiente ter as ne- cessidades básicas supridas) e contrapondo-se ao próprio Estado (e a um modelo de bem-estar social), no Brasil ainda se lutava para garantir o acesso ao básico do básico: água, luz e esgoto permaneciam objetos fundamentais para a população. Os movimentos sociais urbanos brasi- leiros e o movimento de mulheres se organizaram em bases locais, “enraizando-se na experi- ência cotidiana dos moradores das periferias pobres, dirigindo suas demandas ao Estado como promotor de bem-estar social”. Dessa forma,

[...] a organização se deu em torno de reivindicações de infra-estrutura urbana básica (água, luz, esgoto, asfalto e bens de consumo coletivos) e tem como parâmetro o mundo da reprodução - a família e suas condições de vida – que caracteriza a forma tradicional de identificação social da mulher. Sendo o referencial de sua existência, foi o que as moveu politicamente (Sarti, 1998, p. 6).

Segundo Sarti (1998, p. 6), essa forma de organização influenciou a forma de agir dos grupos feministas do país, cujas militantes eram, em grande parte, oriundas das camadas mé- dias e intelectualizadas. Na “perspectiva de transformar a sociedade como um todo”, as femi-

nistas atuaram articuladas a estas demandas, “tornando-as próprias do movimento geral das mulheres brasileiras”. Assim, no final da década de 1960, o feminismo brasileiro encontrava- se diluído e engajado em várias frentes. Como observa Celi Pinto (2003, p. 46),

[...] tendo esse quadro como referência que o movimento feminista brasileiro deve ser entendido: é um movimento que luta por autonomia em um espaço profunda- mente marcado pelo político; defende a especificidade da condição de dominada da mulher, numa sociedade em que a condição de dominado é comum a grandes parce- las da população; no qual há diferentes mulheres enfrentando uma gama de proble- mas diferenciados.

Algumas grandes manifestações conjuntas foram lideradas pelo Movimento de Mulhe- res durante a década seguinte: o movimento contra a alta do custo de vida e o de luta por cre- ches44. A participação das mulheres nos movimentos alterou consideravelmente a visão de si

mesmas e sua posição frente a suas comunidades e famílias. Como observa Rosado, (apud So- ares, 1998, p. 40), “o uso de seu tempo, a ampliação de seu espaço de circulação geográfico e social, suas trocas com outras mulheres, seu ativismo religioso e sua militância política trans- formaram seu cotidiano”.

O engajamento de mulheres em questões públicas e em movimentos sociais não as tor- nava feministas, mas alterava sua posição destas nas redes cotidianas de poder em que se en- contravam, gerando transformações pessoais e coletivas. Celi Regina Pinto (1992, p. 133) aponta três novas situações, derivadas da inserção da mulher nas lutas sociais:

[...] a mulher deixando de atuar nos limites do privado provoca novas situações no interior da família e nas relações informais de vizinhança e amizade; a mulher passa a articular, no interior dos movimento, lutas diferenciadas em relação a seus compa- nheiros homens; e mulheres organizadas em torno de questões tradicionalmente fe- mininas passam a questionar sua própria condição de mulher.

Além disso (p. 133-134),

[...] a saída do privado para o público envolve a entrada em uma rede de relações que pressupõe novos saberes, novas informações que [...] redefinem as relações de poder ao nível privado. Os novos saberes referem-se tanto à reivindicação do grupo onde a mulher se insere como ao próprio encontro com outras mulheres, desta for- ma, redefine a posição da mulher não somente na relação direta com seu compa- nheiro, pais, familiares, mas lhe dá uma posição diversa entre suas relações de ami- zade e vizinhança o que [...] redefine a própria relação ao nível público.

A circulação de feministas entre o Movimento de Mulheres se revelou uma via de mão dupla: questões mais gerais influenciando o pensamento feminista e questões feministas influ- enciando a visão de mundo das mulheres de camadas populares.