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2. AS TUTELAS COLETIVAS E A IRRESPONSABILIDADE

2.1. TEMÁTICA PROCESSUAL COLETIVA – ESTADO ATUAL DO

2.1.4. As propostas de codificação dos processos coletivos

2.1.4.1. A proposta de código de processos coletivos de Antônio

Desenvolvida por Antônio Gidi entre 1992 e 200371, a

proposta pioneira sobre a codificação dos processos coletivos no Brasil apresenta-se como um modelo para “países de direito escrito”72, vez que possui forte inspiração nas class actions norte-

americanas73. A proposta também motivou a adoção de um Código-

Modelo de Processos Coletivos para Ibero-America74, documento

analisado na sequência deste trabalho.

Para o autor, a LACP foi discutida e promulgada, na primeira metade da década de 1980, com base na releitura italiana da experiência norte-americana, realizada especialmente na década de 1970, por autores como Michele Taruffo, Mauro Cappelleti, Vincenzo Vigoriti, Proto Pisani, e Nicolo Trocker. Entretanto, essa adaptação é problemática por duas razões principais: (i) em primeiro lugar, porque os estudos brasileiros permaneceram embasados nas mesmas fontes italianas quando aqueles autores já não demonstravam interesse no assunto, não havendo acompanhado, portanto, a evolução substancial do direito norte-americano nas últimas décadas; (ii) em segundo lugar, a aproximação italiana ao direito processual civil norte-americano teria sido superficial, pois o direito italiano

71 GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo. Op. Cit.

72 GIDI, Antonio. Código de processo civil coletivo: um modelo para países de direito escrito. Revista Direito e Sociedade. Curitiba, v. 3, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2004. Disponível em:

<http://www.mp.pr. gov.br/ceaf/rev31at4.doc>. Acesso em: 14 de março de 2011.; GIDI, Antônio. Código de Processo Civil Coletivo: um modelo para países de direito escrito. In: Revista de Processo. v. 111. jul./set. 2003. p. 192-208. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

73 O autor aprofunda a temática em obra específica, que analisa comparativamente as ações coletivas brasileiras e as class actions norte-americanas. As ações coletivas brasileiras, contudo, derivaram das class actions apenas por via indireta, por intermédio da doutrina italiana. GIDI, Antônio. A class action como instrumento de tutela coletiva de direitos. As ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 525 p. 74 Segundo a exposição de motivos do Código-Modelo de Processos coletivos para Ibero- America, “a ideia de um Código Modelo […] surgiu em Roma, numa intervenção de Antonio Gidi, membro brasileiro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, reunido em maio de 2.002, no VII Seminário Internacional co-organizado pelo “Centro di Studi Giuridici Latino Americani” da “Università degli Studi di Roma – Tor Vergata”, pelo “Instituto Italo-Latino Americano” e pela “ Associazione di Studi Sociali Latino-Americani”. A partir de então, a Diretoria do IADP incorporou a ideia “com entusiasmo” e passou a debater seu aprimoramento. INSTITUTO IBERO-AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL. Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-America. Exposição de Motivos, Op. Cit.

“não tem nem nunca teve tradição de processo coletivo”75. As class actions permanecem, portanto, “virtualmente desconhecidas no Brasil”. Gidi referencia Barbosa Moreira, para quem “é superficial e lacunoso o conhecimento que se tem aqui, com as exceções de praxe, dos ordenamentos anglo-saxônicos; ele em geral se alimenta, na

melhor hipótese, da leitura de obras de segunda mão”76.

Nesse contexto, a exposição de motivos do Código de Processo Civil Coletivo de Gidi revela que o objetivo do projeto é, tendo em conta a experiência do direito internacional comparado, inspirar a redação de um código adaptado à tradição derivada do direito continental europeu (civil law) – o que justifica o uso de linguagem não-técnica, que torna a redação autoexplicativa, e o uso da numeração arábica progressiva na redação dos artigos e subitens. O “espírito” do Código fica bem evidente no art. 30, que determina a interpretação “criativa, aberta e flexível”, de modo a evitar “aplicações extremamente técnicas, incompatíveis com a tutela coletiva [...]”. O item “30.1” determina que “o juiz adaptará as normas processuais às necessidades e peculiaridades da controvérsia e do grupo, levando em consideração fatores como o valor e o tipo da

pretensão”77. Resulta, aqui, o ideal de superar o formalismo

característico do direito das codificações, mais adequado a questões proprietárias.

O modelo traz várias inovações, muitas dentre as quais foram adotadas pelo Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero- America. O artigo 1º. realiza uma classificação bipartite das pretensões transindividuais, segundo a qual a ação coletiva pode ser proposta para a tutela de direitos difusos, ou seja, os transindividuais de natureza indivisível em que um grupo de pessoas estão ligadas entre si ou com a parte contrária por relação jurídica comum ou por

75 GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil, Op. Cit., p. 32-34.

76 O autor afirma ainda que o aumento do interesse pelos ordenamentos processuais anglo- saxônicos no Brasil é louvável, porém não se faz acompanhar, em muitos casos, da busca de subsídios nas fontes originais: “publicam-se estudos – alguns de méritos inegáveis – em que o direito inglês e o norte-americano são descritos e avaliados com base restrita a exposições de segunda mão, constantes, v.g., de livros ou artigos italianos”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A importação de modelos jurídicos. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 8ª. Serie. São Paulo: Saraiva, 2004, 305 p., p. 265. Ver também: MOREIRA, José Carlos Barbosa. A importação de modelos jurídicos. In: Direito contemporâneo: estudos em homenagem a Oscar Dias Corrêa. MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, 298 p.

77 GIDI, Antonio. Código de processo civil coletivo: um modelo para países de direito escrito. Op. Cit.

circunstâncias de fato (1.1.1) – conceito que engloba as noções de direitos difusos e coletivos stricto sensu do CDC; e direitos individuais homogêneos, ou seja, o conjunto de direitos subjetivos individuais de origem comum (1.1.2).

Para a tutela adequada e efetiva dos direitos de grupos e seus membros são admissíveis todas as espécies de ações, e a ação coletiva pode ter por objeto “pretensões declaratórias, constitutivas ou condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer” (1.2)78. A ação, portanto, constitui instrumento “aberto” destinado à proteção efetiva de direitos materiais – proteção esta comumente “engessada” por formalismos excessivos que, tendo por objeto a segurança jurídica, produzem muitas situações de injustiça e desequilíbrio.

O artigo 10 do anteprojeto de Gidi, que trata dos poderes do juiz, também revela a orientação de superar os formalismos do direito das codificações em prol de um processo mais flexível. Sem deixar de ser neutro e imparcial, o juiz deve zelar pelo respeito a todos os direitos, interesses e garantias dos grupos e seus membros (10), mantendo o “controle direto” sobre o processo coletivo e tomando as medidas “adequadas ao seu célere, justo e eficiente andamento” (10.1). O juiz pode admitir representantes e intervenientes, para que participem do processo, apresentem documentos, argumentos ou requerimentos (10.2); pode ainda modificar suas decisões a qualquer tempo, no decorrer do processo, desde que preservado o contraditório, e que isso não represente prejuízo injustificado para qualquer das partes (10.6)79. Além da agilidade processual, tais regras aproximariam do processo não apenas os diretamente interessados, mas todos aqueles que pudessem colaborar de algum modo para a solução dos problemas aventados.

Através da sentença coletiva, regulada pelo artigo 16, julgar- se-ia a controvérsia coletiva “da forma mais ampla possível”, decidindo-se “sobre as pretensões individuais e transindividuais, declaratórias, constitutivas e condenatórias, independentemente de pedido” – resguardados, novamente, o contraditório, o cuidado em não prejudicar as partes injustificadamente e a ampla e adequada notificação (16.1). O objeto do processo coletivo (7) seria “o mais abrangente possível” e englobaria “toda a controvérsia coletiva entre o grupo e a parte contrária, independentemente de pedido” e incluiria

78 Ibid. 79 Ibid.

“tanto as pretensões transindividuais de que seja titular o grupo como as pretensões individuais de que sejam titulares os membros do grupo”80.

No entendimento do autor, o dogma de que o pedido determina os limites da ação, perpetuado de modo acrítico, deve ser eliminado de qualquer codificação coletiva. A influência do direito processual norte-americano nos referidos dispositivos representaria um rompimento com a “vetusta teoria de que o objeto do processo é rigidamente delimitado pelo pedido feito pelo autor e sua primeira manifestação nos autos, quando a controvérsia e suas consequências ainda estão imaturas”. Traria, portanto, a vantagem de permitir a adaptação às modificações da situação de fato e às novas

expectativas das partes em cada momento do processo81. Em um

processo coletivo abrangente não haveria conexão nem continência, apenas litispendência, e todos os interessados poderiam integrar o processo original, dele participando ativamente. É evidente que tais técnicas demandariam “coragem” e “sensibilidade” do julgador e cautela no sentido da observância do princípio do devido processo legal82, matéria a ser exaustivamente problematizada.

Os requisitos da ação coletiva (art. 3) são simples e de interpretação aberta: a existência de questões comuns de fatos e direito que permitam um julgamento uniforme (I); não ser a técnica da ação coletiva manifestamente inferior a outras também viáveis (III); e a possibilidade de representação adequada dos direitos dos direitos do grupo e de seus membros pelos legitimados ativos (II). O juiz, portanto, tem o poder/dever de admitir no processo quaisquer atores que possam representar adequadamente os interesses do grupo, na análise de critérios como a “competência, honestidade, capacidade, prestígio e experiência” (3.1.1); “histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses do grupo” (3.1.2); “conduta e participação no processo coletivo e em outros processos anteriores” (3.1.3); “capacidade financeira para prosseguir na ação coletiva” (3.1.4); e “tempo de instituição e o grau de representatividade perante o grupo” (3.1.5). Os legitimados, desde que considerados “adequados” por interpretação judicial, podem intervir no processo em qualquer tempo e grau de jurisdição (6), seja para auxiliar outros representantes ou para demonstrar a inadequação de um deles, ou

80 Ibid.

81 GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Op. Cit., p. 46.

mesmo para assistir parte contrária (6.1). Essa participação pode

consistir em trazer informações, provas e argumentos novos (6.2)83.

A prova, por sua vez, é distribuída de forma dinâmica, contrariando a regra do artigo 333 do CPC brasileiro, que tantas dificuldades traz aos legitimados ativos na proteção de direitos difusos. Pelo artigo 11, “quando o descobrimento da verdade dos fatos depender de conhecimentos técnicos ou de informações que apenas uma das partes dispõe ou deveria dispor, a ela caberá o ônus da prova, se as alegações da parte contrária forem verossímeis”. Sempre que a produção da prova for demasiadamente difícil e custosa para uma das partes, o juiz atribuirá sua produção à parte contrária (12). O artigo 13, ainda, possibilita a prova estatística ou por amostragem. A distribuição dinâmica da prova é um instrumento de promoção da igualdade processual, afirma o autor, pois frequentemente há assimetria técnica, financeira ou de informações entre as partes, também em casos de direito individual, mas muito especialmente nos casos de proteção ao consumidor e ao meio- ambiente84.

A coisa julgada coletiva vinculará o grupo e seus membros apenas quando a representação não for considerada inadequada e em não havendo insuficiência de provas (18). Há, portanto, a possibilidade de proposição da mesma ação coletiva por qualquer legitimado valendo-se de nova prova, “que poderia levar a um

diferente resultado” (18.1)85. Essa sistemática parece de fundamental

importância na defesa do ambiente enquanto bem comum, porquanto ali os fatos são de difícil comprovação, ou em razão da própria incerteza científica prevalecente na matéria. Ademais, a própria percepção dos riscos e dos danos ecológicos, quer dos cientistas,

quer da coletividade, tendem a variar ao longo do tempo86 – de modo

que o conceito tradicional de coisa julgada, originário do direito privado e de inspiração patrimonialista, não pode ser tomado como evidência apodítica no âmbito dos processos coletivos.

Outras inovações, recuperadas por propostas de codificação posteriores, devem ser recuperadas da proposta de Gidi. Dentre elas a

83 GIDI, Antonio. Código de processo civil coletivo: um modelo para países de direito escrito, Op. Cit.

84 GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Op. Cit., p. 126-127.

85 GIDI, Antonio. Código de processo civil coletivo: um modelo para países de direito escrito, Op. Cit.

prioridade de processamento da ação coletiva quando manifesto o interesse social, “evidenciado pela dimensão ou característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido” (22). Inclui- se nesse rol a possibilidade de interrupção da prescrição das pretensões do grupo e a ação coletiva passiva, proposta contra os membros de um grupo de pessoas devidamente representado (28).

Por fim, cabe destacar a proposta de criação de um fundo cuja finalidade compreenderia não apenas a reconstituição ou reparação de danos causados, mas também o financiamento e a fiscalização de outras ações coletivas e projetos científicos, de pesquisa, informativos e educacionais (24.1). Trata-se de interessante solução para o problema da falta de recursos na propositura e condução de ação coletiva, bem como para a questão do desenvolvimento da pesquisa científica, considerando que a defesa do ambiente frequentemente esbarra em dificuldades técnicas e em impasses científicos. Além da pesquisa, também o financiamento de projetos informativos e educacionais teria o condão de melhor instrumentalizar os legitimados ativos e passivos das ações coletivas; traria, ainda, forte caráter preventivo/precaucional, espírito do direito ambiente. Na medida em que o dano ao ambiente é dificilmente reparável em sentido próprio e muitas vezes a condenação da atividade poluente acarreta indenização, é coerente que o fundo contemple tais finalidades.

2.1.4.2. O código modelo de processos coletivos para Ibero-America.