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2. AS TUTELAS COLETIVAS E A IRRESPONSABILIDADE

2.1. TEMÁTICA PROCESSUAL COLETIVA – ESTADO ATUAL DO

2.1.3. A reparação de danos ambientais mediante ação civil

O sistema integrado LACP + CDC e a Ação Popular são instrumentos privilegiados da proteção do bem ambiental em sua dimensão comunitária, no intuito de responsabilizar civilmente o poluidor e corrigir as externalidades ambientais. O uso destes mecanismos processuais coletivos vem inspirando, inegavelmente, respostas jurídicas mais eficazes do que num passado recente. A própria legitimação ativa do Ministério Público e de varias outras entidades públicas e privadas para a defesa de interesses transindividuais, constantes do art. 5º. da LACP e do artigo 82 do CDC constituiu uma ruptura em face da lógica do autor singular do direito patrimonialista.

A coisa julgada erga omnes e ultra partes53 também foi uma conquista de suma importância, sem a qual a tutela processual de direitos coletivos seria inconcebível. Encontra-se prevista no artigo 18 da Lei da Ação Popular, no artigo 16 da LACP e artigo 103 do CDC – limitada, contudo, à competência territorial do órgão prolator, o que reduz em muito a eficácia da decisão. Para Grinover, é preciso que os tribunais compreendam o verdadeiro o alcance da coisa julgada erga omnes, deixando de limitar os efeitos da sentença e das liminares segundo os critérios da competência54.

A responsabilização civil do poluidor aparece como figura central da tutela ambiental, não apenas por constituir mecanismo de reparação dos danos ecológicos – para além da responsabilidade civil tradicional, comporta uma forte dimensão preventiva, no desestímulo às ações poluentes, e também uma dimensão precaucional, no

52 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e reparação do dano ao meio ambiente. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.; STEIGLEDER, Annelise Monteiro.

Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no Direito brasileiro.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

53 BATISTA, Roberto Carlos. Coisa julgada nas ações civis públicas: direitos humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.

54 GRINOVER, Ada Pelligrini. Processo coletivo do consumidor. In: CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS E DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Textos - Ambiente e Consumo. v. I. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 1996. p. 221-230, p. 226.

estímulo ao desenvolvimento e à utilização de melhores tecnologias do ponto de vista ecológico55. O § 3º do artigo 225 da CRFB determina que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente “sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”56.

Como se sabe, a responsabilidade ambiental independe de culpa desde que a Lei nº. 6.938/81 estabeleceu, no art. 14, §1º, a responsabilização objetiva do poluidor57. Basta, portanto, para a configuração da responsabilidade civil e estipulação do dever de reparar, a existência de nexo de causalidade entre uma ação/omissão e a lesão constatada. O Código Civil de 2002, pelo artigo 927 § único, previu genericamente a responsabilização objetiva por risco da atividade, havendo obrigação de reparar os danos causados independentemente de culpa “nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”58. O instituto da responsabilidade vem sendo reforçado pela chamada teoria da “responsabilidade objetiva integral”, que além de não admitir excludentes de responsabilidade (as figuras do caso fortuito e força maior não elidem a responsabilidade por danos ao meio ambiente) fundamenta o dever integral de reparar apenas na lesividade da atividade, ainda que lícita59.

55 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

56 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.Acesso em: 27 de abril de 2011.

57 “Art 14. [...] § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”. BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L6938.htm>. Acesso em: 27 de abril de 2011.

58 “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/

ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 27 de abril de 2011.

59 LEITE, José Rubens Morato; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Riscos e danos ambientais na jurisprudência brasileira do STJ: um exame sob a perspectiva do Estado de Direito ambiental. Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do

A tese da imprescritibilidade do dano ambiental (ou ao menos da extensão do prazo prescricional em demandas ecológicas) ganha força gradualmente e passa a ser invocada em alguns julgados, sob a ótica do princípio de precaução e de responsabilidade transgeracional60 e com fundamentação na continuidade dos efeitos lesivos ao longo do tempo61. As situações em que há poluidores certos, porém não é possível determinar a porção de responsabilidade de cada um, são solucionadas satisfatoriamente pelas regras de solidariedade passiva, em casos exemplares62 que com frequência retomam a problemática da responsabilidade comissiva e omissiva do Estado pelo dano ecológico. Estas decisões consagram o princípio de que, assim como a inexistência de culpa, a licitude da atividade não descaracteriza o dever de reparar. A lesividade do empreendimento basta para justificar o dever de reparar os danos causados e a responsabilidade do Estado por omissão, em se reconhecendo um dever objetivo de fiscalização63.

Urbanismo e do Ambiente. Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Ano

XI., n.22, 02. 2008. p. 75-102., p. 84.

60 “Defesa ambiental. Reserva de Iraí vigente. Pedreira antiga. Dano renovado. Prescrição impensável. Não há falar-se em prescrição por ser antiga a pedreira guando se deve recuperar o ambiente e a agressão se renova inclusive pelo novo conjunto se máquinas. Descabe invocar-se ‘desuso’ da lei protetiva, justamente agora em que se revigoram as defesas da reserva de Iraí por melhor consciência ecológica”. RIO GRANDE DO SUL. TJRS, AC. 590028197, 2ª Câmara Cível, Rel. Des.Milton dos Santos Martins, j. 15. ago. 1990.

61 “A arguição de prescrição foi bem repelida, pois não se trata de ação por ofensa ou dano ao direito de propriedade, mas, sim, de ação de indenização por dano ambiental. Além disso, os danos estão se protraindo no tempo, ou seja, continuam em larga escala. A prescrição, assim, se é que dela se pode cogitar, seria a comum de 20 anos, por ser pessoal a ação”. RIO GRANDE DO SUL. TJRS. AI. 124.287-1. 7ª Câmara Cível. Rel. Des. Souza Lima. 28 mar. 1990. 62 BRASIL. STJ. REsp 647.493 / SC. T2 Segunda Turma. Rel. Ministro João Otávio de Noronha. 22 maio 2007. “Recurso Especial. Ação Civil Pública. Poluição ambiental. Empresas mineradoras. Carvão Mineral. Estado de Santa Catarina. Reparação. Responsabilidade do Estado por omissão. Responsabilidade Solidária. Responsabilidade Subsidiária”. Esse julgado determina a responsabilidade do Estado pelos danos ambientais causados, em face do seu dever de fiscalização das atividades mineradoras. Sabiamente, porém, considera essa responsabilidade subsidiária em relação à responsabilidade das empresas, aquelas que lucraram com a lesão ambiental, para que a sociedade não arque, mediatamente, com os custos da reparação. Desconsidera-se também a personalidade jurídica das empresas, para chamar à responsabilidade seus sócios e administradores e considera-se o dano ambiental imprescritível. Ademais, diversas empresas mineradoras foram responsabilizadas objetivamente, sem prova da culpa, e o dano e o nexo causal foram considerados fatos notórios, conforme inquérito civil público, sem a necessidade de comprovação específica.

63 O tratamento que a jurisprudência confere à responsabilidade do Estado é ilustrada pelo julgado Recurso Especial no. 28222 / SP, no qual o STJ responsabiliza o Município de Itapetininga de forma objetiva e por risco, solidariamente à empresa concessionária do serviço de esgoto urbano pela poluição causada em um rio (Ribeirão Carrito). A legitimidade passiva do município é fundamentada no dever de fiscalização da boa execução do contrato. A

A prova do nexo causal, difícil e onerosa para o legitimado ativo na ACP, é considerada como o grande obstáculo à responsabilização civil do poluidor pelos danos ambientais causados;

dela depende, em grande medida, a efetividade da tutela ecológica64.

Invocam-se diversos mecanismos processuais no intuito de atenuar o desequilíbrio processual decorrente da hipossuficiência econômica, técnica e informativa daqueles que buscam a tutela do meio ambiente via ACP. Dentre eles, a inversão do ônus da prova é solução plausível do ponto de vista teórico, possível do ponto de vista estritamente jurídico e coerente com os princípios que orientam a matéria65. Embora não amplamente recepcionada, já foi adotada em vários julgados66, inclusive nos tribunais superiores67. Decisões

responsabilidade por risco torna desnecessário discutir se as atividades executadas pelo concessionário foram ou não lícitas, bastando a configuração do requisito da lesividade para justificar o dever de reparar os danos causados. Também o Recurso Especial no. 604725/PR responsabiliza o Estado objetivamente por omissão no dever de fiscalização da atividade ambientalmente lesiva. Pelo fato de não haverem exigido Estudo Prévio de Impacto Ambiental nem realizado audiências públicas, pré-requisitos legais para concessão da licença, e por não tendo paralisado a obra logo que se mostrou lesiva, o Município de Foz do Iguaçu e o Estado do Paraná foram responsabilizados por danos causados solidariamente aos executores da obra. Por fim, no Recurso Especial no. 295797/SP o STJ determina a responsabilidade solidária dos construtores, do adquirente e do município pelo desmatamento de área de preservação permanente (APP) na realização de loteamento.

64 ARCHER, António Barreto. Direito do ambiente e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2009, p. 63-64.

65 SILVEIRA, Clóvis Eduardo Malinverni da. A inversão do ônus da prova na reparação do dano ambiental difuso. In: LEITE, José Rubens Morato e DANTAS, Marcelo Buzaglo.

Aspectos processuais do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. 66 Nos embargos declaratórios no. 70002338473, a 4ª Câmara Cível do TJRS foi precursora ao determinar a admissibilidade da inversão do ônus da prova e a atribuição dos custos da perícia ao demandado em demandas que envolvem a proteção ao meio ambiente com fundamento no fato de que o MP e demais legitimados ao ajuizamento de ações civis públicas estão “em franca desvantagem perante os demandados”. No acórdão, o TJRS explicita os motivos pelos quais é cabível a inversão do ônus da prova e a atribuição dos custos da perícia ao demandado, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana local – DMLU. A decisão é fundamentada na necessidade de restabelecer o equilibro entre as capacidades processuais das partes, sendo uma delas hipossuficiente.

67 No Recurso Especial no. 972.902/RS a Relatora Eliane Calmon inverteu o ônus da prova em favor da coletividade em ACP movida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul objetivando a responsabilização de empresa de borracharia por danos ambientais. De acordo com a teoria do risco integral, acolhida no julgado e defendida por Antônio Herman Benjamin, José Afonso da Silva, Fábio Dutra Lucarelli, Nelson Nery Jr., Édis Milaré, dentre outros, cabe ao demandado o ônus de demonstrar que a atividade não enseja riscos ao ambiente, ante a relevância do bem protegido e das dificuldades peculiares a este tipo de demanda. A motivação invoca também a aplicação dos princípios estruturantes do direito ambiental, notadamente a precaução, a prevenção e a responsabilização. LEITE, José Rubens Morato; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Riscos e danos ambientais na jurisprudência brasileira do STJ: um exame sob a perspectiva do Estado de Direito ambiental. Op. cit., p. 87-89.

importantes impõem também o dever do proprietário adquirente de reparar o meio ambiente lesado, mesmo não tendo sido ele o

causador do dano68, o que pode ser entendido como “flexibilização”

da prova do nexo causal.

Estas e outras evoluções doutrinárias e jurisprudenciais permitem constatar o desenvolvimento dos mecanismos de tutela do ambiente, na realização dos direitos de cunho material e dos princípios que orientam a matéria. Tais conquistas, substanciais do ponto de vista da ruptura com o direito das codificações, de tradição privatista e patrimonialista, parecem ainda tímidas do ponto de vista do status da degradação ambiental e dos desafios propostos por uma sociedade de risco.