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2. AS TUTELAS COLETIVAS E A IRRESPONSABILIDADE

2.1. TEMÁTICA PROCESSUAL COLETIVA – ESTADO ATUAL DO

2.1.2. Instrumentos de tutela dos interesses difusos e coletivos no

O Brasil foi pioneiro, dentre os ordenamentos da chamada civil law, na introdução de mecanismos de tutela dos interesses difusos e coletivos36, desenvolvimento que pode ser analisado a partir de seus quatro acontecimentos legislativos mais importantes.

34 BRASIL. Lei n.º 7.347, de 24 de Julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. Disponível em <www. planalto.gov.br >. Acesso em 20 de setembro de 2008.

35 BRASIL. Lei n.º 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br >. Acesso em 20 de setembro de 2008.

36 INSTITUTO IBERO-AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL. Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-America. Exposição de Motivos. Disponível em:

<http://www.pucsp.br/tutelacoletiva/download/codigomodelo_exposicaodemotivos_2_28_2_2 005.pdf>. Acesso em 12 de março de 2011.

O marco inicial foi a reforma da Lei da Ação Popular37 em 1977. Instituto jurídico constitucional, a ação popular tem como objeto, originalmente, o pleito de anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público (art. 1º.). A partir da reforma de 1977 a legitimação cidadã foi estendida aos direitos difusos ligados ao patrimônio ambiental38 de modo que o cidadão, na ação popular, age em nome próprio na defesa de um bem público ou da coletividade39.

Mais tarde, a própria CRFB, através do inciso LXXIII, estendeu para todos os cidadãos a legitimidade para propositura de ação popular “que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural [...]”, o que vem ampliar a importância deste instrumento processual. Milaré ressalta que esta dicção ampliada, pela qual a ação deixa de tutelar apenas bens de natureza pública em sentido estrito para abranger também os de natureza difusa, com destaque para a proteção contra a danosidade ambiental, consagra posição que já era assente na doutrina e na jurisprudência40.

Apesar de sua importância, a ação popular “não tem o tom da reparabilidade de que é dotada a ação civil pública”41, uma vez que o provimento visado é a anulação de ato lesivo – no caso, ao ambiente –, ainda que a possibilidade de liminar do §4º. do artigo 5º possibilite o uso deste instrumento em um sentido preventivo. É importante destacar que a sentença terá eficácia da coisa julgada oponível erga omnes (art. 18), tópico fundamental para as tutelas de natureza coletiva, que se fará presente em todos os documentos legais, códigos-modelo e anteprojetos voltados ao tema a partir de então.

Em um segundo momento, a criação da Ação Civil Pública em 1985 foi um verdadeiro “marco divisor42”, tornando-se a principal

37 BRASIL. Lei nº 4.717, de 29 de Junho de 1965. Regula a ação popular. Disponíve em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4717.htm>. Acesso em 27 de abril de 2011. 38 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. Disponível em: <http://www .ufrnet.br/~tl/otherauthorsworks/grinover_direito_processual_coletivo_principios.pdf>. Acesso em 18 de março de 2011.

39 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 12 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 799-800.

40 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. Op. Cit., p. 1125. 41 Ibid., p. 1129.

42 BARBOSA Jr., Juarez Gadelha. Direitos coletivos e o microssistema de Processo Civil Coletivo Brasileiro. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/41888>. Acesso em 25 de

ação na defesa dos chamados “direitos difusos”, embora essa denominação tenha sido introduzida no art. 1º da LACP apenas mediante a criação do CDC, cinco anos depois. A ACP trata da “responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”, conforme se depreende da ementa e do art. 1º.

Muito já foi escrito a respeito da importância da ACP para o ordenamento jurídico brasileiro. Em um sentido crítico, vale notar que prevalece aqui a orientação de responsabilizar o demandado por danos causados, ponto que será problematizado no seguimento do trabalho. Não obstante a possibilidade dos mandados liminares e da proposição de ação cautelar, a tutela jurisdicional do risco ecológico representa ainda papel coadjuvante em face da preocupação com o dano. A proteção do bem ambiental ante a proliferação desenfreada de riscos de toda espécie dá-se apenas como reflexo da responsabilidade civil por ato ilícito, constante dos artigos 186 e 927 do CC de 2002.

Um terceiro momento foi a elevação dos interesses difusos e coletivos a direito constitucional na CRFB de 1988. Para Mancuso, a tendência de coletivização do processo decorre do fenômeno da “coletivização dos conflitos” no último quarto de século, restando evidente a inaptidão do processo civil clássico para instrumentalizar as “megacontrovérsias” próprias da sociedade de massas. A proliferação de ações de cunho coletivo é evidente nos incisos XXI (legitimação das entidades associativas para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente); LXX (legitimação de organização sindical, entidade de classe ou associação para impetrar mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros); e LXXIII (ação popular para anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural) do artigo 5º da CRFB43.

O inciso III do artigo 129 da CRFB prevê como função institucional do MP a propositura da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A conflitualidade “coletiva”

43 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução de conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, 772 p., p. 379-

resultante dos mais variados segmentos sociais (como consumidores, infância e juventude, idosos, deficientes físicos, investidores no mercado de capitais e torcedores de modalidades desportivas) tornou “evidente” e “premente” a necessidade de novos instrumentos, “capazes de recepcionar esses conflitos assim potencializados, seja em função do número expressivo (ou mesmo indeterminado) dos sujeitos concernentes, seja em função da indivisibilidade do objeto litigioso”44.

Um quarto momento na evolução dos instrumentos processuais de tutela transindividual no Brasil é a criação do CDC em 199045. Após o CDC, os “direitos coletivos” passaram a ser conceituados como aqueles pertencentes a grupos ou classes de pessoas, ou seja, de titularidade subjetiva indeterminada46, por oposição àqueles de titularidade subjetiva determinada, quer seja privada, quer seja pública. Porquanto transcendem a esfera individual, os direitos

coletivos latu sensu são designados “transindividuais”,

“metaindividuais” ou “supraindividuais” (expressões usadas comumente como sinônimas). Subdividem-se, conforme artigo 81, em interesses difusos, ou “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”; coletivos stricto sensu, ou “os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”; e individuais homogêneos, ou “os decorrentes de origem comum”.

A criação do CDC é de suma importância na medida em que suas disposições processuais foram estendidas à tutela dos interesses transindividuais em geral. O artigo 110 do CDC criou um inciso IV no artigo 1º da LACP. Esta, então, passou a reger as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a qualquer interesse difuso ou coletivo. Deixou de estar restrita, enfim, apenas ao meio ambiente, consumo, bens e direitos de valor histórico, artístico, estético e paisagístico. O artigo 21 da LAPC, por sua vez, foi acrescido ao CDC, consoante disposição do artigo 117 deste, com o seguinte texto: “art.21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os

44 Ibid., p. 379-380.

45 INSTITUTO IBERO-AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL. Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-America. Exposição de Motivos, Op. Cit.

46 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008., p. 15.

dispositivos do título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do consumidor”47.

O título III do CDC a que se refere o artigo contém disposições processuais inovadoras, condizentes com a natureza da lei, que é a de oferecer tratamento efetivo aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Esse mútuo intercâmbio de dispositivos possui visível função de estender o alcance dos

instrumentos processuais comunitários, consolidando e

harmonizando um sistema uniforme de tutela de todo interesse transindividual48.

A categoria “transindividual”, portanto, representa o sustentáculo de uma nova geração de direitos, antes inexistentes no ordenamento pátrio, que pretende extrapolar os limites civilistas clássicos. Fala-se, a partir de então, no fim da dicotomia público/privado e na “superação do Estado Liberal para um Estado Social, que, diante dos direitos metaindividuais, é obrigado a atuar como um imprescindível coadjuvante da coletividade na tutela dos referidos direitos”49.

A partir dos anos 90, sustenta-se a distinção fundamental entre dois processos: um que regula conflitos individuais (processo civil, regulado pelo Código de Processo Civil - CPC) e outro que tutela os interesses metaindividuais50 (transindividuais ou supraindividuais). Na defesa de direitos coletivos as regras do CPC são utilizadas apenas subsidiariamente, naquilo que não contrariar as disposições

do CDC51. A LACP e o CDC, por sua vez, são utilizados

conjuntamente, numa espécie de “sistema processual coletivo”, cuja finalidade é assegurar um tratamento coletivo a uma série de novos

47 Brasil, Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985. Cit.

48 “O CDC tem função polarizadora do subsistema processual coletivo, porque teve o papel de harmonizar as regras processuais, na medida em que não somente incorporou, pelo art. 83, os avanços legislativos anteriores, à tutela dos direitos do consumidor, mas também aproveitou a oportunidade para estender o alcance dos instrumentos processuais que consagra para a tutela de outros direitos transindividuais. Desse modo, é de grande importância a regra contida no artigo 21 da lei no 7.347/85 (LACP), introduzida pelo artigo 117 do CDC”. CAMBI, Eduardo. Inversão do ônus da prova e tutela dos direitos transindividuais: alcance exegético do art 6º, inc. VIII, do CDC. Revista Jurídica Consulex, ano VI, n. 128, p. 29-30, 15 maio 2002, p. 30. 49 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislação aplicável. São Paulo: Max Lemonad, 1999, p. 87.

50 CAMBI, Eduardo. Op. Cit., p. 29.

51 Pelo artigo 90 do CDC, “aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7.347, de 24 de junho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições”. BRASIL. Lei n.º 8.078 de 11 de setembro de 1990, Cit.

conflitos que não encontravam tutela no direito preexistente, preso à bipolarização publico/privado52.

2.1.3. A reparação de danos ambientais mediante ação civil