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A província emancipada: o governo de Zacarias de Góes e Vasconcellos

Mapa 1 Mapa da província do Paraná, 1865

1 História da Guarda Nacional no Paraná

1.2 A província emancipada: o governo de Zacarias de Góes e Vasconcellos

As províncias do Império brasileiro eram administradas por presidentes, dotados de amplas atribuições. O cargo fora criado após a independência como parte das medidas responsáveis pela separação entre os poderes executivo e legislativo.21As nomeações eram feitas pelo Imperador, a pedido do ministério vigente. O período de exercício era usualmente pequeno: a média durante o Segundo Reinado não ultrapassava um ano e meio.22 Enquanto representante do governo geral nas províncias o presidente exercia expressiva autoridade, nomeava e demitia membros da administração e controlava as finanças. Em alguns casos, a escolha de postos-chave para a província não fazia parte de suas competências, no entanto, as fontes indicam que normalmente o governo geral

19 Essa questão é discutida minuciosamente em BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. Senhor de homens, de

terras e de animais: a trajetória política e econômica de Joao da Silva Machado (província de São Paulo,

1800-1853). 2014.Tese (Doutorado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p. 197-200.

20 As idas e vindas parlamentares acerca da emancipação política do Paraná podem ser acompanhadas em

GREGÓRIO, Vitor Marcos. Dividindo as Províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção do Estado nacional brasileiro (1826-1854). 2012. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 274-390.

21 Sobre os arranjos envolvendo a atuação dos presidentes e a divisão de poderes entre o governo geral e as

províncias após a independência, vide SLEMIAN, Andréia. Delegados do chefe da nação: a função dos presidentes de província na formação do Império do Brasil (1823-1834). Almanack Braziliense, São Paulo, v. 6, 2007, p. 20-38.

22 Essa média foi calculada por CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política

solicitava sua opinião. Isso era um costume no preenchimento de cargos relacionados à segurança pública, por exemplo.

O exercício dessa função demandava enorme responsabilidade, pois as principais decisões regionais passavam pela mesa presidencial. A comunicação com o governo geral deveria ser cotidiana e contínua. Além das incumbências de caráter administrativo, havia outras, ainda mais importantes: as atividades políticas. O presidente precisava comparecer, ao menos uma vez a cada ano, à Assembleia Legislativa Provincial para apresentar o relatório anual de seu governo. A participação em desfiles e comemorações patrióticas também fazia parte da rotina.

Nas províncias esta autoridade deveria negociar com as elites locais e regionais, para assegurar a vitória eleitoral de seu Partido, além do cumprimento das políticas elaboradas pelo gabinete. Essa era uma das tarefas mais duras e imprescindíveis ao cargo. Caso não fosse executada com precisão, o designado dificilmente progrediria no mundo político imperial.

Em geral, os escolhidos para presidir províncias estavam em plena ascensão na carreira. Ocupar essa posição era uma espécie de treinamento em estágio avançado. Seguindo uma trajetória linear, quem almejasse o cargo precisaria debutar no poder judiciário, como juiz de Direito ou Promotor, em seguida passar pelas tribunas da Assembléia Geral, como deputado, estando, por fim, apto a representar o governo, como o mais alto funcionário, em alguma das 22 províncias.23 Evidentemente esse caminho é apenas um modelo geral, não aplicável para todos os casos. A função também poderia servir como um atalho para cargos mais cobiçados como o de Senador, ademais a importância das regiões também era levada em conta, na hora de escolher o dirigente. Fato é que ser presidente de província significava estar presente nos círculos íntimos de poder do governo geral.

Zacarias de Góes e Vasconcellos, primeiro presidente da província do Paraná, participava desse mundo há algum tempo. Com apenas 38 anos a lista de cargos públicos que havia ocupado na administração geral era extensa: presidente das províncias do Piauí e

23 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política

de Sergipe, deputado geral pela Bahia, sua província natal, e ministro da Marinha.24 A carreira de Vasconcellos havia caminhado a passos largos. Essa significativa ficha de serviços, aliada a juventude – pelo menos para o mundo político - talvez tenha lhe qualificado a assumir uma situação inusitada: administrar um novo território que era estratégico para a defesa do Império, devido as suas fronteiras com os países platinos.

No Paraná sua administração durou um ano e cinco meses.25 Político experiente, apesar de jovem, Vasconcellos estava acostumado com as dificuldades inerentes à função, afinal supõe-se que o bacharel conhecia bem as disparidades envolvendo o ser político na Corte e fora, em locais afastados do centro nervoso do poder geral. Deveria ter ciência também que nas províncias as divisões não estavam necessariamente aglutinadas em siglas partidárias, mas sim em lógicas próprias. O problema maior dessa nova tarefa era o seu ineditismo: pela primeira vez a antiga 5ª Comarca da província de São Paulo teria um presidente.

Acompanhando o primeiro governo vinha a necessidade de erguer nova e engenhosa estrutura. Cabe ressaltar que, apesar do poder auferido pela função, era impossível estabelecer e dar andamento em uma nova província sem a ajuda dos poderosos representantes da elite regional, muitos deles interessados em abocanhar os novos postos que estavam surgindo. Logo, é possível sumarizar a missão de Zacarias de Góes e Vasconcellos no Paraná provincial da seguinte maneira: mais do que administrar, era hora de construir.

O desafio começou bem: a recepção preparada para a nova autoridade foi abastada. De acordo com uma carta, publicada na primeira página do maior jornal da Corte, às oito horas da manhã do dia 06 de dezembro, quando o navio que o trazia ancorou em Paranaguá, próximo à fortaleza da barra, uma salva de tiros o saudou. A cidade toda estava aparelhada “para recebê-lo dignamente”, e “quando S. Ex. desembarcou às 10 horas, nas nossas praias, já tudo estava para este fim na melhor ordem possível”. Desde o desembarque “nove meninas das principais famílias daqui [Paranaguá], vestidas de branco,

24 VARGAS, Túlio. O conselheiro Zacarias. Curitiba: Grafipar, 1977 (especialmente o capítulo 1).

25 Em todo o regime monárquico foram 41 homens a ocupar o cargo de presidente da província do Paraná,

perfazendo uma média de 08 meses para cada um dos nomeados WACHOWICZ, Rui. História do Paraná. 9. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001, p. 125.

coroadas de flores” acompanharam o presidente e sua esposa, cada uma representando um município da província. A moça que simbolizava Paranaguá ofereceu para a senhora Vasconcellos “um bonito bouquet”. No pequeno trajeto da comitiva até a casa que os receberia – cedida pelo comendador Manoel Antonio Guimarães – todas as janelas abriram- se, fazendo “um dilúvio de flores e grinaldas”, ao som da artilharia da Guarda Nacional. Segundo o periódico, as simpatias políticas foram esquecidas: “As pessoas principais da cidade, de todas as particularidades políticas, apressaram-se em ir cumprimentar o presidente”. Os três dias seguintes foram de intensas festividades, culminando num grandioso baile, realizado no dia 08, no qual “via-se pintado o prazer em todos os olhos, o sorriso em todos os lábios”.26

O único imprevisto, durante os primeiros dias do novo presidente, surpreendeu a todos: “o coletor Luiz de Oliveira Franco, tendo saído de Curitiba, desapareceu, e nem mais notícias há de sua pessoa”. Dizia-se que poderia ter morrido pela mão de seus inimigos ou pela “ferocidade dos índios”. A outra possibilidade remetia-se ao medo da prisão: “sentindo-se alcançado com a fazenda fizera ablativo de viagem”. Talvez esta fosse a motivação mais plausível, dada a reflexão final apresentada pelo autor anônimo: “cada cabeça, cada sentença”.27

Essa descrição sobre os primeiros dias do representante do governo geral no Paraná foi alvo de uma interpretação um tanto descuidada por parte da historiografia. Alguns autores acabaram dando atenção apenas ao conteúdo, deixando de lado questões circunvizinhas que, na verdade, fazem parte de uma lógica mais ampla.28

A carta, não assinada, buscava mais do que valorizar a nova província. Ela pretendia interferir em um debate que tomara fôlego desde o momento em que a emancipação fora confirmada pela Câmara dos deputados gerais: a escolha da nova capital.

Nessa peleja havia duas fortes concorrentes: Curitiba e Paranaguá. Percebe-se no texto uma inclinação pela segunda, já que a cidade é retratada como um local de união,

26 Jornal do Commercio, 24 dez. 1854, p. 1. 27 Jornal do Commercio, p. 2.

28 Nesse sentido, ver: VARGAS, Túlio. O conselheiro Zacarias. Curitiba: Grafipar, 1977. p. 65-68, 70;

CAVASSIN, Alessandro. A província do Paraná (1853-1889). A classe política. A parentela no governo. 2014. 505 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p. 34.

capaz de reunir pacificamente grupos hostis, conhecidos por todos na Corte pela violência de suas disputas.29

A ênfase na recepção, planejada com todas as honras que tal autoridade merecia, por meio de uma guarda nacional zelosa e bem trajada, recepcionada em bailes luxuosos, não se deu ao acaso. Pretendia-se mostrar o quanto o litoral, representado pela sua maior cidade, estava preparado para ser a cabeça da nova Província. Depois de encerrada a estadia, não há qualquer referência ao destino final de Zacarias de Góes e Vasconcellos: o município de Curitiba, designado provisoriamente como sede. Provavelmente a elite de Paranaguá possuía certo trânsito na Corte, possibilitando a publicação dessa correspondência, quase um manifesto velado para que a vila se tornasse capital, num jornal cuja preferência era dada aos membros do Partido Conservador.

A primeira resolução de impacto do governo Vasconcellos foi justamente apontar Curitiba como capital. A localização geográfica centralizada e a quantidade de eleitores para as eleições primárias foram argumentos centrais para sua decisão, explicitados no primeiro relatório presidencial.30 Os confrontos do ano anterior, em São

José dos Pinhais, também serviram como pretexto para que Curitiba recebesse a primazia de tornar-se a cabeça do governo, pois a presidência julgava que “a ação do governo muito mais benéfica deve ser, posta aqui a capital, para velar de perto na observância da lei, e

29 No dia 07 de novembro de 1852 uma briga opondo liberais e conservadores, durante uma eleição de

eleitores, resultou na morte de 07 pessoas e feriu outras 16, em São José dos Pinhais, região que havia conquistando recentemente sua elevação à categoria de vila. Os acontecimentos repercutiram na Corte, gerando grande comoção. Para uma reconstituição dos confrontos, ver: RELATÓRIO apresentado à Assembleia Geral Legislativa na primeira sessão da nova legislatura pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça, José Idelfonso de Souza Barros. Rio de Janeiro: Typographia Navarro, [18--], p. 3-4; CAVASSIN, Alessandro. Liberais e conservadores: a luta política em São José dos Pinhais em 1852. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE SOCIOLOGIA & POLÍTICA, 2014, Curitiba. Anais... Curitiba: UFPR, 2014. p. 1-16. Uma parte da historiografia defende que este episódio acelerou o processo de emancipação do Paraná: “Esse conflito foi o fim de um longo processo que marcou a separação política de São José, a legitimação da classe dominante no poder local e ajudou à emancipação do Paraná, que ocorreria um ano depois” (BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. Particularidades familiares: a trajetória de Manuel Mendes Leitão no Paraná, século XIX. 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. p. 147. Todavia, a emancipação estava em pauta desde 1843, como indica a pesquisa de GREGÓRIO, Vitor Marcos. Dividindo as Províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção do Estado nacional brasileiro (1826-1854). 2012. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 372-375.

30 RELATÓRIO do Presidente da Província do Paraná o conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcellos na

abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 15de julho de 1854. Curitiba: Typhografia Paranaense de Candido Martins Lopes, 1854, p. 9.

conter com sua presença desmandos, que cumpre reprimir”. O relatório relembrava duas outras cidades que tencionaram obter o lugar: Guarapuava e Paranaguá, mas no pensamento da presidência a melhor opção realmente era Curitiba, apesar de a argumentação da Câmara de Guarapuava estar, “até certo ponto, com mais acerto do que aqueles que fazem votos pela existência da capital no litoral”.31

Nesse mesmo momento foram apresentadas as divisões judiciárias. Inicialmente foram criadas três Comarcas: Curitiba (Capital), Marinha (futura Comarca de Paranaguá) e a de Castro. Restou a ideia de futuramente instalar outra nos Campos Gerais, em Guarapuava.32 Após tal apresentação, caberia agora aos primeiros deputados provinciais a aprovação dos projetos.

Por essa época, a população total do Paraná girava em torno de 62. 255 habitantes, de acordo com os dados, sempre provisórios e incertos, do governo provincial.33 A maior população era a de Curitiba, com cerca de 6.791 pessoas, seguido de perto por Paranaguá, com aproximadamente 6. 333 moradores. Se a população das duas maiores cidades era bem próxima, a quantidade nas Comarcas guardava grandes diferenças. Na da Capital residiam 20.029 almas, ao passo que na da Marinha viviam apenas 11.373.34 O mapa de 1865, com os locais dos Comandos Superiores existentes naquele ano, ilustram a formatação da nova província.

31 RELATÓRIO do Presidente da Província do Paraná o conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcellos na

abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 15de julho de 1854. Curitiba: Typhografia Paranaense de Candido Martins Lopes, 1854, p. 10.

32 A Comarca da Capital era composta pelos municípios de Curitiba, São José dos Pinhais e Príncipe, a da

Marinha por Paranaguá, Guaratuba, Antonina e Morretes, a de Castro pela vila homônima, Guarapuava, Ponta Grossa e Palmas.

33 Existem três fontes diferentes sobre a contagem da população. Duas foram elaboradas pelo primeiro chefe

de Polícia, Antonio Manoel Fernandes Júnior. A primeira: um manuscrito enviado à presidência, contendo as características econômicas e populacionais de cada uma das regiões; posteriormente estes dados foram complementados por levantamentos históricos e publicados na imprensa. A última, talvez baseada nas duas anteriores, está nos anexos do primeiro relatório de Vasconcellos. Optou-se pela utilização desta última, por se tratar de fonte mais completa e exposta publicamente.

34 RELATÓRIO do Presidente da Província do Paraná o conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcellos na

abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 15de julho de 1854. Curitiba: Typhografia Paranaense de Candido Martins Lopes, 1854. Anexo 14.

Mapa 1 – Província do Paraná, 1865

Fonte: A Provincia do Paraná : Carta Chorografica Organisada no Arch°. Militar Pelo Tente. Coronel Antonio P. do F. Mendes Antas... [Rio de Janeiro] Lithª do Archivº. Militar Impª. por Martins Maia 1867.

Biblioteca Digital Hispânica. Disponível em: http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/bdh0000018699 Acesso em: 07 Jul. 2018

Para representar a nova província junto ao governo geral foram realizadas eleições para a escolha de um deputado e de um senador. No âmbito regional, os representantes das três Comarcas ocuparam as 20 cadeiras disponíveis na Assembléia Legislativa Provincial. As eleições para tais cargos foram rápidas. Liberais e conservadores

dividiram a casa: “estando em maioria a parcialidade saquarema, foram votados, e têm assento nesta assembléia, muitos cidadãos distintos do lado luzia”.35 O presidente dessa primeira legislatura, por exemplo, era liberal, o vice era da maioria, isto é, conservador. O governo provincial nomeou liberais para postos-chave na administração, a exemplo de Jesuíno de Oliveira Sá, bacharel em Direito, escolhido para ocupar o posto de diretor da instrução pública e procurador fiscal.

O equilíbrio de forças também havia se manifestado na eleição para o Senado – cargo vitalício à época. A listra tríplice enviada para o imperador era formada por homens das duas agremiações. Essa convergência seguia de perto a política da Corte, na qual ambos os partidos formavam um governo de coalizão, liderados pelo presidente do conselho de ministros, Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná.36