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Mapa 1 Mapa da província do Paraná, 1865

2 A Guarda Nacional paranaense

2.3 Vantagens de ser guarda nacional

Embora realizassem funções semelhantes, o soldado do Exército e o praça da Guarda Nacional não recebiam o mesmo tratamento. O primeiro estava propenso a deslocamentos territoriais, o segundo atuava na localidade. O soldado tinha o tempo de engajamento pré-determinado, enquanto o do praça era praticamente vitalício. Caso as duas forças atuassem de forma conjunta, a Guarda sempre ocuparia o posto mais elevado.40 Os próprios termos empregados para definir as formas de ingresso, recrutamento e qualificação, mostravam bem as diferenças. A primeira era uma espécie de punição, desqualificação; a segunda, relacionada à Guarda, significava o contrário, era considerada uma espécie de distinção.

A melhor fonte para a compreensão dessas nuances são os dicionários contemporâneos; por meio deles é possível apreender tais diferenças. De acordo com Moraes e Silva recrutar era “fazer gente nova para o serviço militar, fazer levas de gente para completar a tropa, ou formar novos e mais regimentos”, já para recruta, a definição

38 Pesquisando o planalto catarinense, Paulo Pinheiro Machado assim definiu estas atividades: “O peão era,

normalmente, um morador agregado à fazenda que possuía um pedaço de terra ‘de favor’. Ali, com sua família, construía uma choupana de rachões de pinheiro e teto de palha, mantinha uma pequena lavoura de subsistência, protegida do gado por muros de pedra encaixada, cultivando feijão, milho, abóboras e criando pequenos animais” MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: a formação e a atuação as chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 67.

39 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, século

XIX). 3. ed. rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 55.

40 “Art. 76. Sempre que a Guarda Nacional concorrer com tropas de Linha tomará o lugar mais distinto”

BRASIL. Lei n. 602 de 19 de setembro de 1850. Dá nova organização à Guarda Nacional do Império.

dizia tratar-se de “soldado novo, bisonho, que se fez recentemente”. No texto o verbo qualificar significa: “aprovado pelo censor, sujeito qualificado para alguma dignidade, o que tem as qualidades que se requerem. Homem de qualidade”.41 No dicionário da língua brasileira, publicado na província de Minas Gerais por Luiz Maria da Silva Pinto, em 1832, o autor trouxe descrições quase idênticas. Recrutar é fazer recrutas, enquanto o recruta tem a definição de soldado e de “uma leva de gente para o serviço militar”. E qualificar é “dar predicamento, qualidade civil”.42

As definições são basicamente as mesmas. O recruta era o soldado bisonho, membro de um grupo destinado exclusivamente a fazer volume, logo inexistia qualquer tipo de individualização, já o qualificado era alguém que havia recebido uma diferenciação, possuidor de qualidades, o verdadeiro “homem de qualidade”. Essa distinção era dada para uma determinada categoria de homens livres: os cidadãos eleitores do Império brasileiro. Mesmo não se tratando de um dicionário militar, tais termos podem ser utilizados para dimensionar os significados de ser recrutado para o Exército e o de estar qualificado à Guarda Nacional.

Na Guarda Nacional estavam reunidos os cidadãos distintos, homens que cuidavam de suas lavouras, possuíam ocupação, eram em sua maioria casados, enfim, pessoas que cumpriam o que se esperava deles – sobretudo pelos legisladores. Por se tratar basicamente de homens sem recursos financeiros, podem ser definidas como “pobres honrados”, de acordo com a excelente categorização de Meznar.43 As obrigações desses

“pobres honrados” era a de votar nas eleições de eleitores de primeiro grau, tanto para o governo geral quanto provincial, participar como membros do Júri e, claro, atuar no baixo oficialato e nas fileiras de praças da Guarda. Para todos esses encargos, que na verdade compunham o rol dos direitos do cidadão, o mecanismo de escolha empregado chamava-se qualificação. Eleitores, jurados e guardas nacionais: todos eram qualificados. Tratava-se de

41 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza: recompilado dos vocabularios impressos

ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typ. Lacerdina, 1813, p. 269, 300.

42 PINTO, Luiz Maria da Silva Pinto. Diccionario da Lingua Brasileira.. Ouro Preto: Na Typographia de

Silva, 1832, p. 110, 115..

43 MEZNAR, Joan E. The ranks of the poor: military service and social differentiation in northeast Brasil,

papéis reservados aos homens livres - deve ficar bem entendido que os libertos juntavam-se a esse grupo de maneira extremamente parcial.

Por maior que pudesse ser a exigência e a frequência dos serviços exigidos na Guarda Nacional, o fato de ter o nome arrolado nas listas de qualificação tirava os praças da sujeição à disciplina militar, praticada contra os soldados do Exército e da Armada. Os guardas nacionais, na maior parte do tempo, estavam isentos. Geralmente efetuado por autoridades locais, notadamente inspetores de quarteirão, subdelegados e delegados de política, o recrutamento funcionava como uma espécie de profilaxia social, afastando pessoas consideradas indesejáveis da comunidade. Ao ser integrado às Forças Armadas, o destino era incerto: primeiro o recruta era enviado para a Corte e depois redistribuído. De acordo com Leonardo Pataca, o intrépido personagem do romance Memórias de um Sargento de Milícias, ambientado no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado: “Ser soldado era naquele tempo, e ainda hoje talvez, a pior coisa que podia suceder a um homem”.44

A historiografia sobre o recrutamento tem demonstrado o quão fatigante era servir nas forças armadas brasileiras durante o Oitocentos. Punições frequentes, soldos pagos com grande atraso e insuficientes para a sobrevivência, deslocamentos constantes, armamento obsoleto, além da má qualidade na alimentação ofertada, consistiam parte da dura rotina na caserna.45 Daí a importância da Guarda Nacional, por constituir-se numa proteção contra os agentes recrutadores. Ademais, prestar serviços frequentes, mas não regulares, e realizar deslocamentos dentro dos limites provinciais era mais aceitável do que vagar pelos distantes rincões do Império.

Mormente as adversidades, para alguns, ser recrutado poderia significar a abertura de uma janela, na qual novos horizontes abriam-se, especialmente para escravos em fuga, libertos, indígenas e condenados criminalmente. Nesse caso, valiam-se daquilo que o historiador Hendrik Kraay sabidamente definiu como “o abrigo da farda”.46 Foi isso

44 ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Pelotas: Typ. do Comércio de

Joaquim F. Nunes, 1862. tomo 2, p. 89.

45 Para uma boa coletânea sobre o tema, contendo um resumo das principais pesquisas sobre o assunto, ver:

COMISSOLI, Adriano; MUGGE, Miquéias H. Homens e armas: recrutamento militar no Brasil, século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2013.

46 KRAAY, Hendrik. ‘O abrigo da farda’: o exército brasileiro e os escravos fugidos, 1800-1888. Afro-Asia, v.

que aconteceu com Benedicto, morador de São José dos Pinhais, escravo, 25 anos de idade, mais ou menos. No dia 27 de março de 1867 ele fugiu, e dizia-se que “andou pretendendo assentar praça como voluntário”.47

As instruções de 10 julho de 1822, ao lado de várias leis e decretos complementares, publicadas do longo do século, foram as responsáveis por regulamentar o recrutamento militar no Império. Ficavam sujeitos ao envio para as Forças Armadas os homens de 18 a 35 anos, solteiros, brancos ou pardos libertos, que não estivessem em nenhuma categoria de isenções, cuja lista abarcava boa parte da população. Ficavam imunes os homens casados, irmãos de órfãos, filho único de lavrador (quando da presença de mais um rebento homem na família o pai deveria escolher qual deles gozaria da isenção), filho único de viúvas, feitor ou administrador de fazendas, plantações, criações, olarias, que contenham mais de seis escravos, tropeiros, boiadeiros, mestre de ofícios, pedreiros, carpinteiros, canteiros, pescadores, marinheiros, grumetes, toda sorte de funcionários públicos e clérigos. Tratava-se de um grupo amplo.48 Com o passar das décadas, o segmento daqueles dispensados só fez aumentar. Durante o período eleitoral, como visto no caso José Pereira, o processo simplesmente parava. O intento do governo, nas palavras de um estudioso, “era de proteger os que eram percebidos como essenciais à sociedade e à economia, por esse meio assegurando o bem-estar da sociedade”.49

Os milicianos, pertencentes à força que antecedeu a Guarda Nacional, eram recrutados apenas em casos extremos, de acordo com essa legislação. As circunstâncias eram as seguintes: quando não estivessem devidamente alistados, por falta de farda ou por “não subsistirem de forma honesta e legal indústria”. O artigo deixa transparecer que recrutar esses homens era uma punição, por eventuais serviços prestados de maneira desleixada.50

47 O Dezenove de Dezembro, 30 mar. 1867, p. 4.

48 INSTRUÇÃO de 10 de julho de 1822. Marca o modo porque se deve fazer o recrutamento. Coleção das

Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1887, p. 56-58.

49 KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial. Diálogos, v. 3, n. 3, 1999, p.

117.

50 INSTRUÇÃO de 10 de julho de 1822. Marca o modo porque se deve fazer o recrutamento. Coleção das

Mais tarde, em 1837, uma nova lei tratava do recrutamento da nova força. Excepcionalmente, para completar o contingente do Exército, a regência autorizou o recrutamento de guardas nacionais até o ano de 1839. Tal medida ocorreu em virtude das revoltas e guerras civis que assolavam o país, especialmente no sul. O decreto, no entanto, era brando com os praças, pois dava várias brechas para que pudessem não se engajar. Quem estivesse beneficiado em alguma das categorias de isenção das instruções de julho de 1822, por exemplo, ficava livre de servir na força. Havia mais: o guarda recrutado poderia apresentar um substituto, escapulindo assim de marchar para alguma região conflituosa.51

Quatro anos depois a Guarda era novamente chamada a colaborar, sugerindo falha desta primeira tentativa em insuflar as Forças Armadas. Agora, a tentativa era envolver a força no recrutamento, de forma mais ativa. Para isso, os tenentes coronéis da Guarda foram encarregados de participar do recrutamento, juntamente com os oficiais do Exército, chefes de Polícia e juízes de Direito. O governo precisava, urgentemente, “elevar ao seu estado completo, e conservar efetivas as forças dos Corpos do Exército de operações no Rio Grande do Sul a fim de pôr termo à deplorável guerra da mesma Província”.52 Estrangeiros também estavam sendo recrutados. Quanto aos guardas, segundo o novo decreto, continuavam sendo recrutáveis, nos mesmos moldes da lei de 1837, exceto pelo fato de a preferência ter se deslocado para os desditosos, aqueles que “se houverem mostrado relaxados no cumprimento dos seus deveres e só na falta deles os outros que se acharem nas circunstancia de poderem ser recrutados”, como acontecia no caso dos milicianos. Na falta destes, entrariam os membros da ativa, sem isenções.53

Os exemplos pinçados da legislação referem-se a contextos belicosos, nos quais o governo precisava alimentar as Forças Armadas continuamente, para engrossar suas fileiras. Eram situações limite, previstas em lei. Sobre o não recrutamento de guardas nacionais, residia um problema de interpretação da lei. Presidentes de província e chefes de

51 BRASIL. Lei n. 45 de 29 de agosto de 1837. Sobre o modo de recrutamento para completar as forças de

terra decretadas para os anos de 1837-1838 e de 1838-1839. Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1837. p. 27. Para uma boa descrição do período: MOREL, Marco. O período das regências (1831-

1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

52 BRASIL. Decreto n. 73 de 6 de abril de 1841. Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, p. 29,

1841.

53 BRASIL. Decreto n. 73 de 6 de abril de 1841. Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1841,

Polícia muitas vezes viam a questão de modo a não conceder a isenção, que não estava claramente disposta no artigo 118 da lei da reforma:

Art. 118. Os Corpos destacados não poderão ser tirados da Guarda Nacional senão em virtude de Lei especial. Dado porém o caso de rebelião, ou invasão repentina de inimigos no intervalo das Sessões da Assembléia Geral, o poderão ser, por Decreto do Governo no Município da Corte, e por ordem dos Presidentes nas Província, dando conta na Assembléia Geral logo que estiver reunida.54

O recrutamento de praças era prerrogativa do governo geral e só ocorreria com autorização da Assembléia Geral, motivada por atentados à segurança interna ou externa do país. O representante do governo na localidade poderia baixar decreto, mandando capturar praças, mas uma resolução como essa seria muito impopular, provavelmente acirraria ânimos quando chegasse à Corte. Era, sem dúvida, uma exposição desnecessária. Quando a presidência optava pelo favorecimento dos agentes recrutadores, face à Guarda Nacional, o normal era a adoção de uma postura leniente.

No dia 23 de novembro de 1858, por exemplo, o presidente da província do Paraná respondeu ao ofício do tenente coronel comandante da Guarda Nacional do litoral, negando pedido de soltura de Bento Antonio da Costa, praça da força capturado para recruta. O despacho diz muito sobre como essa autoridade compreendida a questão: “a simples qualidade de guarda nacional não é isenção legal de recrutamento, conquanto muito se atenda a ela, quando os indivíduos por sua morigeração e trabalho são dignos disso”. 55 A

dignidade e morigeração, especificamente nesse caso, passava por vários filtros, dos representantes da Companhia de Polícia, e do próprio chefe máximo da província. Desse modo, depreende-se uma situação pessoalizada e variável, a partir das relações estabelecidas.

54 BRASIL. Lei n. 602 de 19 de setembro de 1850. Dá nova organização à Guarda Nacional do Império.

Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1850. Art 118, p. 337.

55 No mesmo extrato de correspondências é possível observar o descontentamento do presidente com o

Comando Superior de Paranaguá. No dia 13 pedia que o tenente da 3ª Batalhão de Guaraquessaba não escrevesse a ele diretamente, somente por meio do tenente coronel, não sem antes indeferir o pedido de soltura de outro praça. No dia 23 solicitava a indicação de oficiais para ocupar os postos vagos, ressaltando que os indicados anteriormente não tiveram as patentes solicitadas, por atraso do Comando Superior. O

Para preencher a cota do recrutamento, era preciso encontrar pessoas sem isenção ou proteção local, o que não era fácil. Reclamações nesse sentido avolumavam-se nas secretarias do governo geral e provincial. Provavelmente essa era uma das razões a provocar verdadeira caçada empreendida por alguns delegados contra os membros da Guarda.