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Mapa 1 Mapa da província do Paraná, 1865

3 Os praças e os oficiais: carreiras dentro e fora da Força

3.4 Escapando da Guarda Nacional

Vejamos então os canais de fuga desse indesejável serviço, tomando por base a perspectiva dos homens que a compunham, assim como a dinâmica da economia local.

Para burlar a partida para comandar ou compor as forças destacadas algumas alternativas estavam disponíveis. Primeiro, o pedido de licenças, concedidas aos praças para tratar de assuntos particulares, de ordem administrativa. O tempo auferido era variável, mas de certa forma longo, concedido para oficiais e praças. O guarda nacional Miguel da Silva Pompeo, da 4ª Companhia de Castro recebeu seis meses de licença para tratar de seus assuntos no Rio Grande do Sul, em julho de 1858. Em dezembro do mesmo ano, o tenente da 2ª Companhia de Guarapuava, também juiz de Paz, peticionou diretamente ao presidente, solicitando a liberação de quatro meses para seguir o mesmo destino, “para tratar de seus negócios”. No mesmo mês um major do Comando Superior de Paranaguá pediu licença de três meses para tratar de seus negócios no Rio da Prata, possivelmente no Uruguai ou na Argentina.66

Requerimentos envolvendo a província mais meridional dominavam o cenário, em seguida vinham solicitações para São Paulo, especialmente a cidade de Sorocaba e, por fim, as regiões do Prata. Eram raras as solicitações que não envolviam alguns destes três destinos. Dentre os poucos exemplos encontrados, há pedidos feitos para a Corte, Santa

66 REQUERIMENTO enviado pelo Comando Superior de Castro ao presidente da província do Paraná.

Castro, 6 jul. 1858. Deap- PR GNP379.38, f. 298; REQUERIMENTO enviado pelo tenente da 2ª Companhia de Cavalaria de Guarapuava ao presidente da província da província do Paraná. Guarapuava, 18 nov. 1858. Deap- PR, GNP442.38, f. 157; REQUERIMENTO enviado pelo Comando Superior de Paranaguá ao presidente da província do Paraná. Morretes, 31 dez. 1858. Deap-PR, GNP494.38, f. 320.

Catarina e Minas Gerais.67 Isolando o local de origem desses documentos, a compreensão da economia paranaense no século XIX pode ser desnudada. Para além da fuga dos destacamentos, os peticionários participavam ativamente da vida material da região.

O transporte de gado muar e de gado vacum dava a tônica na vida nos Campos Gerais, já que essa atividade envolvia a quase totalidade dos habitantes. O delegado de polícia Francisco Manoel de Assis França, por exemplo, não retornou ao posto no tempo acertado, por conta dos “negócios urgentes de venda de animais”, fazendo-o escusar-se “desta involuntária falta acarretada pela necessidade”, conforme relatou.68 Vale lembrar que

uma característica inerente aos postos das forças da ordem era estar conectado à função, sob controle do governo, tanto que a mobilidade dos funcionários era monitorada. Por isso, grandes e pequenos proprietários precisavam não só comunicar como também pedir para os superiores o direito de se ausentar.

O comércio de animais era pujante no século XIX. De acordo com os estudos de Herbert Klein, havia uma sazonalidade, iniciada nos meses de setembro e outubro, quando compradores deixavam o Rio Grande do Sul com rebanhos de 400 ou 500 mulas, aproveitando o período em que a grama nova estava nascendo, ideal para alimentar os animais. No caminho, a parada prioritária era no Paraná, e durava cerca de um ano, era a chamada invernada. Numa divisão simples, grosso modo, os gaúchos vendiam, os paranaenses alimentavam, enquanto aos paulistas cabia comprar a mercadoria. Na década de 1850 a média de muares chegados a Sorocaba, nas estimavas do autor, atingiu o patamar de 40.917 animais; no decênio seguinte o número diminuiu um pouco, chegando a 39.871 cabeças.69 O desenvolvimento de pesquisas ulteriores mostra que, a despeito das informações de Klein, os paranaenses não ficavam apenas na parte da invernada. Segundo

67 Vide, por exemplo: OFÍCIO do quartel do Comando Superior de Morretes ao presidente da província do

Paraná. Morretes, 30 set. 1858. Deap – PR, GNP429.38, f. 235. REQUERIMENTO do Comando Superior de Castro ao presidente da província do Paraná. Castro, 2 set. 1858, f. 136.Deap- PR, GNP403.38, f. 136.

68 OFÍCIO enviado pelo delegado de polícia da vila de Guarapuava ao presidente da Província do Paraná.

Guarapuava, 1858. Deap-PR, SPP209, f. 30.

69 KLEIN, Herbert. A oferta de Muares no Brasil Central: o mercado de Sorocaba, 1825-1880. Estudos

Carlos Eduardo Suprinyak, condutores das tropas vinham majoritariamente de Castro, Lapa e Ponta Grossa.70

Era também para participar desse mundo, o caminho do sul, que oficiais e praças pediam a liberação de suas tarefas, ao lado de vários trabalhadores e arrivistas que orbitavam em torno do tropeirismo, conforme observado pelo viajante Auguste de Sainte- Hilaire: “Homens de todas as classes, operários, agricultores, no momento em que ganham algum dinheiro partem para o Sul, onde compram burros bravos para revendê-los em sua própria terra e em Sorocaba”.71 Um ofício enviado pelo subdelegado do Rio Negro ao

inspetor das matas, narrando as dificuldades para encontrar jornaleiros, vai ao encontro das impressões do francês. De 30 homens solicitados, 26 estavam disponíveis, graças ao esforço empreendido pelos inspetores do segundo e do terceiro quarteirão, o complemento, no entanto, estava difícil, porque a população masculina não estava habituada com tais afazeres e sim com a “colheita de roças”, além da “condução de tropas, da província do Rio Grande do Sul para esta, em que se empregam uma não pequena parte de indivíduos deste distrito, engendrados pelo ganho certo e algum tanto vantajoso que dali resultam e que estão acostumados”72

Os escravos eram parte importante desse processo, atuando como cozinheiros, tropeiros e capatazes. Os cativos também exerciam o especializado métier de roubar animais, tão comum naquelas paragens.73 A vila de Castro, assim como a Comarca homônima, floresceu por conta desse comércio; alguns fazendeiros tornaram-se verdadeiros

70 SUPRINYAK, Carlos Eduardo. Comércio de animais de carga no Brasil imperial: uma análise quantitativa

das tropas negociadas nas províncias do Paraná e São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em Economia) – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2006, p. 71-72.

71 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Tradução: Cassiana Lacerda Carollo.

Curitiba: Farol do Saber, 1995. p. 19. Sobre a formação desse caminho, ver: PETRONE, Maria Theresa. O afluxo de gado a Sorocaba e a importância do caminho do sul na década da independência. Revista de

História da USP, 1973; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à

Sorocaba ( 1780-1810). 2009. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 45-62.

72 OFÍCIO do subdelegado do distrito de Rio Negro ao Presidente da Província do Paraná. Rio Negro, 21 ago.

1854. Deap- PR, SPP130, fl. 301.

73 A maior comunidade escravista no Paraná provinha da região dos Campos Gerais, desde o período anterior

a emancipação. Sobre esse tema ver: MARTINS, Ilton César. E eu só tenho três casas: a do senhor, a cadeia e o cemitério: crime e escravidão da Comarca de Castro. 2011. Tese (Doutorado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 58, 132.

magnatas, com fortuna aquilatada. Dois dos mais conhecidos foram comandantes superiores da Guarda Nacional.74

Em Paranaguá, as poucas licenças provavelmente possuíam ligações com a exportação da erva-mate, o carro-chefe da economia paranaense até o último quartel do século XIX. O resultado da produção era desovado nas repúblicas do Prata, local onde a erva passou a ser consumida em substituição a produção paraguaia, cessada com o início da Guerra com os países vizinhos. Na década de 1860, a província do Paraná tornou-se a maior produtora e exportadora do continente. As plantações localizavam-se no litoral e na capital, particularmente no município de Morretes, situada aos pés da serra do mar. O governo provincial buscava a todo custo controlar a qualidade da erva produzida no Paraná, bem como uma maior diversificação na produção de bens industriais. Técnicas empregadas em seu fabrico foram vistas como a gênese da industrialização, assim como interpretada pela historiografia como incompatível com o trabalho escravo, dada sua especialização. O papel e a natureza do trabalho cativo na fabricação da “congonha”, apelido da erva no século XIX, produziu importantes revisões, expandindo os horizontes de pesquisa para uma nova geração de pesquisadores.75

Os ervateiros – nome dados aos proprietários de engenho – representavam a elite local e regional: eram donos de imóveis, navios, fortuna, cargos políticos de destaque e títulos honoríficos. Basta relembrar o personagem amplamente analisado no primeiro capítulo, o onipresente Manoel Antonio Guimarães. A maior parte deles era de origem portuguesa, particularmente dos Açores, local que possuía uma requintada rede de imigração com a Capitania de São Paulo desde a segunda metade do século XVIII.76 Foram

74 Aqui a referência é ao fazendeiro Manoel Ignácio do Canto e Silva e a João da Silva Machado, o Barão de

Antonina.

75 Sobre o fabrico da erva mate, assim como a legislação sobre o tema, ver: LINHARES, Temistoclez.

História econômica do mate. São Paulo: José Olympio Editora, 1969; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso: ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense (1829-1889).

Curitiba: Editora da UFPR, 1996 (especialmente o capítulo 1). O debate em questão diz respeito à crítica feita ao trabalho de IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional. São Paulo: Difel, 1962, empreendida em PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 66-70.

76 Sobre a imigração portuguesa em Paranaguá, ver: CAVAZZANI, André Luiz Moscaleski. Tendo o sol por

testemunha: população portuguesa na Baía de Paranaguá. 2013. Tese (Doutorado em História Social) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 106-116. Para um período posterior: BOSCHILIA, Roseli Terezinha. À procura de um novo destino: imigrantes

estes imigrantes e seus descendentes os primeiros a introduzir os ervais no litoral, depois do aprendizado das técnicas de plantio com especialistas das repúblicas do Prata.77

Evidentemente os envolvidos na plantação, processo e beneficiamento da erva- mate não representavam a totalidade da população, tampouco esse labor ocupava o mesmo espaço na vida da população que os negócios do gado. O cultivo de produtos como farinha, milho, feijão, banana também eram importantes, ao lado das profissões dedicadas ao trabalho marítimo e de artesanato.78 Por isso, os pedidos de licença nessa região eram feitos

exclusivamente por oficiais, que partiam para o sul vender o lucrativo “ouro verde”.

O historiador José Augusto Leandro trouxe como epígrafe de um dos capítulos de seu trabalho um verso que deslinda com argúcia a percepção corrente sobre o impacto da Guarda na vida dos lavradores, escrito por autor anônimo e publicado num dos jornais do Paranaguá, no ano de 1870, chamado “O Guarda”:

Da roça qualquer matuto, que não tem renda legal, é logo qualificado, como guarda nacional.

Deixa a roça abandonada. Perde todo o seu feijão. Fica o pobre sem recurso. E a família sem ter pão.79

Para os empregados públicos também estavam previstas dispensas. O porteiro da secretaria de polícia, Antonio Modesto Corrêa, recebeu liberação do serviço ativo. O empregado da capitania do Porto, Francisco Gouveia, guarda nacional, também conseguiu a

portugueses no Paraná da segunda metade do século XIX. História, Questões e Debates, v. 56, 2012, p. 87- 112.

77 De acordo com Cecília Westphalen, o argentino Francisco Alzaragay trouxe para o litoral paranaense as

primeiras técnicas de fabricação, colhidas junto a produtores paraguaios. Anteriormente, o plantio era artesanal, conforme sublinhou Ferreira: “As técnicas artesanais de beneficiamento eram de domínio público e não exigiam instrumentos ou edificações dispendiosas. Os arbustos do mate era m nativos e disseminados nas matas que cobriam boa parte da região. Portanto, em relação à erva-mate ou às populações que dela faziam uso, não havia nada que prenunciasse o ulterior desenvolvimento de técnicas industriais de beneficiamento” WESTPHALEN, Cecília. Comércio exterior no Brasil Meridional. Curitiba: CD, 1999, p. 118-121; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso: ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense (1829-1889). Curitiba: Editora da UFPR, 1996, p. 35.

78 Sobre os padrões de riqueza em Paranaguá relacionado com a produção da erva, ver: LEANDRO, José

Augusto. Gentes do mar redondo: riqueza e pobreza na Comarca de Paranaguá. 2003. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 73-118.

79 Operário da Liberdade, Paranaguá, 8 out. 1870, p. 4.apud LEANDRO, José Augusto. Gentes do mar

redondo: riqueza e pobreza na Comarca de Paranaguá. 2003. Tese (Doutorado em História) – Centro de

licença, bem como os remeiros do escaler (espécie de canoa) da saúde e da força policial de Paranaguá. A depender do presidente de província, os funcionários do paço estavam protegidos.80

Quando a proteção vinha de dentro da Guarda, olhares mais sagazes poderiam denunciar o engodo, como fez certo personagem anônimo, que respondia pela alcunha de Pestana:

Fala-se em Ponta Grossa que o senhor Major do esquadrão de guardas nacionais daquela vila, isentou do serviço ativo por ocasião do Conselho de Revista do qual era Presidente, a seu filho, Joaquim Procópio de Souza Castro (Jr ou filho), visto ser ele caixeiro e ter em sua loja de fazendas mais de 20 contos de réis de capital, não obstante ser ele negociante matriculado. Queria pois o Senhor Major mostrar a esses maldizentes, por intermédio deste periódico, o que dispõe o artigo 15 da Lei n. 602, e artigo 25, 27 e 28 do decreto n. 722 de 25 de outubro de 1850.81

O misterioso cidadão valeu-se da retórica para desafiar o oficial a exibir publicamente as credenciais do filho. Possivelmente tratava-se de algum membro da Guarda, pois a referência aos artigos específicos do segundo decreto supracitado, acerca da dispensa de comerciantes mostra inquestionável ciência da legislação.82 Não eram poucas as maneiras de escapulir do serviço, conforme apontado, mas quando se estava nele, as relações com a comunidade eram duráveis.