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Mapa 1 Mapa da província do Paraná, 1865

1 História da Guarda Nacional no Paraná

1.1 O Paraná às vésperas da emancipação

Às vésperas da independência política do Brasil, a antiga Capitania de São Paulo era formada por três grandes Comarcas, eram elas: São Paulo, Itu, Paranaguá e Curitiba. A última fora criada pelo alvará de 19 de fevereiro de 1812, englobando várias vilas e freguesias.1 Mais da metade do seu território localizava-se no litoral: Paranaguá,

Guaratuba, Antonina, Cananéia e Iguape. A outra parte era conhecida por seus habitantes como Serra Acima: Curitiba, Castro, Príncipe e Lages.2

A Comarca de Paranaguá e Curitiba, transformada na 5ª Comarca da província de São Paulo no ano de 1851, ocasião em que perdeu algumas vilas e freguesias que faziam parte da composição anterior, era conhecida pela população unicamente como Comarca de Curitiba.3 Segundo alguns autores a localidade desejava emancipar-se desde o século XVIII. Alegavam os proponentes que a Comarca de Curitiba havia se desenvolvido economicamente a ponto de pleitear independência, e também que não recebia atenção do governo, pois estava distante da Capital, ficando assim com as fronteiras desguarnecidas. Apesar de tentativas anteriores, a separação ocorreu somente na segunda metade do século XIX.4

1 Este documento alterou o nome da Comarca, e transformou Curitiba em “cabeça de comarca e residência

dos Ouvidores das Comarcas de Paranaguá e Curitiba”, o que de fato dava à vila de serra acima maior predominância sobre as demais por albergar um representante do poder judiciário português (ALVARÁ de 19 de fevereiro de 1812. Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, 1812, p. 4. Para a atuação destes ouvidores na Comarca, ver: BORGES, Joacir Navarro. Das justiças e dos litígios: a ação judiciária da Câmara de Curitiba no século XVIII (1731-1752). 2009. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.

2 ALVARÁ de 19 de fevereiro de 1812. Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, 1812, p.

4.

3 Cananéia e Iguape saíram da alçada de Paranaguá, enquanto a vila de Lages passou à jurisdição da província

de Santa Catarina.

4 Certa historiografia e aponta uma continuidade entre as tentativas separatistas, surgidas em 1811, 1821 e

1822, quando autoridades de Paranaguá juraram obediência à Constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, sendo retomada em 1842, durante a Revolução Liberal Vide: BELOTTO, Divonzir. A

Durante a maior parte do Oitocentos, as principais atividades econômicas giravam ao redor da exploração de erva-mate, madeira, farinha de mandioca, arroz, e da criação de gado-vacum e muar. Dois locais destacavam-se nestas produções: o litoral e os Campos Gerais. Nas vilas litorâneas estavam os engenhos de processo e beneficiamento da erva-mate, assim como o Porto de Paranaguá, responsável por escoar a produção do chamado “ouro verde”, principalmente para os países localizados na bacia do Rio da Prata. Nos Campos Gerais, localizavam-se as fazendas de criação e paragem, onde tropas saídas do município de Viamão, localizada na província do Rio Grande do Sul, descansavam e engordavam o rebanho, para entregá-los no destino final: habitualmente a feira de Sorocaba, no interior da província paulista. A maior parte dos habitantes estava envolvida, direta ou indiretamente, em alguma atividade ligada a esses setores, que serão detalhados nos capítulos subsequentes.

Antes da emancipação, a população da 5ª Comarca era vista como diversificada, composta por uma ampla parcela de mestiços, isto é, não brancos.5 Apesar dessa característica, o número de escravos africanos ou afrodescendentes não era grande, principalmente quando comparado com outras cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, por exemplo.6 Segundo a clássica tipologia de Ira Berlin, a melhor definição para o caso do Paraná seria a de uma sociedade com escravos, e não uma sociedade escravista.7

A reprodução da comunidade escrava era majoritariamente endógena. Inexistiam rotas envolvendo diretamente traficantes transatlânticos e proprietários rurais: “A maior parte dos escravos domiciliados nas vilas e freguesias paranaenses era

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1990; WACHOWICZ, Ruy. História do Paraná. 9. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001, p. 112-113.

5 O caso da vila de Guaratuba, localizada no litoral, ilustra bem essa questão. Segundo os estudos de Carlos

Alberto Medeiros Lima, a região atraiu majoritariamente uma população não branca, após a sua fundação, de acordo com os cálculos do autor, mais de 75% da população livre era formada por não brancos, caracterizando-a como o maior povoado negro do litoral paulista no início dos Oitocentos (LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Sertanejos e pessoas republicanas livres de cor em Castro e Guaratuba. Estudos Afro-

Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 2, 2002, p. 327.

6 De cada cinco habitantes no período de 1798-1830, um era escravo. Número esse baixo para o contexto

nacional GUTIERREZ, Dario Horácio. Crioulos e africanos no Paraná, 1798-1830. Revista Brasileira de

História, São Paulo, v. 8, n. 16, , mar./ago. 1988, p. 163.

7 BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Tradução de Julio

aparentemente formada por indivíduos nascidos e criados nesta região ou em suas circunvizinhanças”.8 O fato de não haver uma comunidade tão grande quanto em outras partes do Império, no entanto, não diminuía o significado e a importância da escravidão para o desenvolvimento da localidade.9

A então 5ª Comarca era local estratégico para os interesses brasileiros, principalmente pelas fronteiras que possuía com as repúblicas da Argentina e do Paraguai. Tais bordas eram de ocupadas por grupos indígenas, portanto o governo geral não possuía grande ingerência ou jurisdição sobre elas, o que frequentemente causava preocupação. Para maior conhecimento e como forma de ocupação, foram enviadas diversas expedições no começo do século XIX, a fim de mapeá-la e, por fim, implementar uma efetiva política de dominação, garantindo a legitimidade da posse e a expulsão das comunidades autóctones.10 A presença de forças da ordem era recurso importante para o logro de tais políticas.

No Brasil, elas eram formadas inicialmente pelas forças de primeira linha, Auxiliares e Ordenanças, sendo posteriormente substituídas pela Guarda Nacional. O engenheiro português Daniel Pedro Mueller calculou o número de guardas nacionais em toda a província de São Paulo em 1838, computando cerca de 16.247 homens, dos quais 3.624 serviam à Comarca de Curitiba e Paranaguá, representando 22% do efetivo. A distribuição se dava por meio de 02 regimentos: o primeiro de Cavalaria e o segundo de Infantaria. A cavalaria estava reunida próxima a Curitiba, enquanto os homens da artilharia concentravam-se no litoral, sobretudo na vila de Paranaguá. 11

O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, utilizando partes do trabalho de Mueller, observou que o crescimento das forças no local, durante o período que compreende os anos de 1813 – 1838, foi superior ao crescimento demográfico da

8 GUTIERREZ, Dario Horácio. Crioulos e africanos no Paraná, 1798-1830. Revista Brasileira de História,

São Paulo,v. 8, n. 16, mar./ago. 1988, p. 168.

9 A partir de distintas abordagens teóricas e metodológicos os trabalhos de IANNI, Octavio. As metamorfoses

do escravo. São Paulo: Difel, 1962; e de PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos

senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999 chamaram a atenção para aspectos fundamentais da comunidade escrava no Paraná, com ênfase em Curitiba.

10 LEITE, Rosangela Ferreira. Nos limites da exclusão: ocupação territorial, organização econômica e

populações livres pobres (Guarapuava, 1808-1878). São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011.

11 MUELLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo. São Paulo: Reedição

população. O autor atribui o aumento a vários fatores, inclusive a certa abertura racial dos regimentos:

Essa diferença não se deve, creio eu, a uma maior severidade no recrutamento e sim ao fato de se ter tornado mais próspera a região e ser maior o número de homens que podiam comprar o equipamento necessário; e talvez ao fato, também, de terem sido incluídos entre os brancos alguns jovens cujos pais tinham traços mais marcados de sangue indígena. 12

Embora confunda, ou melhor, não faça distinção neste primeiro momento, entre milicianos e guardas nacionais, o autor sugere forte presença mestiça nessas forças, além do engrossamento das fileiras, após a extinção de critérios raciais.13 Mais adiante o viajante descreve o funcionamento da Guarda Nacional em Paranaguá, composto por batalhões de Infantaria: “Um governador militar comandava todo o regimento, cujos homens eram chamados, cada um por sua vez, para prestarem serviço, não podendo, entretanto, ser requisitados como barqueiros”. Enquanto os praças da Guarda serviam, os trabalhos marítimos só eram realizados pelos chamados ordenanças, “uma milícia inferior composta de mestiços diferentes tipos”, que “eram obrigados a trabalhar nas barcas empregadas no serviço do Rei”. De acordo com autor, “Os verdadeiros guardas nacionais faziam questão absoluta de usar em seus chapéus o pequeno penacho vermelho e azul que constituía um sinal distintivo”.14

O erro nas denominações deve ter ocorrido pela distância entre o tempo da visita, feita na década de 1820, e a publicação da obra, datada de 1851. O viajante, por suposto, nunca poderia ter encontrado um guarda nacional: simplesmente pela razão de a força ainda não existir naquele momento. Todavia, a narrativa pode ser vista a partir de uma importante perspectiva: a representatividade. Para o botânico, a Guarda Nacional havia sido concebida para isentar seus membros de serviços braçais e para cumprir critérios distintivos, reforçando hierarquias sociais vigentes. A partir da reconstituição dos dados

12 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Tradução: Cassiana Lacerda Carollo.

Curitiba: Farol do Saber, 1995.

13 Sobre os milicianos pardos em São Paulo, vide: SOUZA, Fernando Prestes de. Milicianos pardos em São

Paulo: cor, identidade e política (1765-1831). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências

Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.

14 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pela comarca de Curitiba. Tradução: Cassiana Lacerda Carollo.

apresentados é possível ainda perceber uma continuidade na distribuição das Armas. Desde a administração do Morgado de Mateus, primeiro governador da capitania de São Paulo após o restabelecimento da autonomia frente ao Rio de Janeiro, o litoral era guarnecido por forças da Infantaria e as vilas de serra acima pela Cavalaria.15

No ano de 1840 o número de guardas nacionais da 5ª Comarca era um dos maiores da província de São Paulo. Artilharia e Infantaria somavam 1.381 praças, fixados nos municípios litorâneos. O restante totalizava 2.109 homens, estacionados nas demais cidades, vilas e freguesias, divididos entre Artilharia e Cavalaria. 16 Como se tratava de

região fronteiriça, os praças precisavam estar prontos para a defesa de eventuais ataques estrangeiros, assim como para conter os frequentes ataques das comunidades indígenas, fixadas na região há longo tempo. Provavelmente tais fatores levaram à formação de grande efetivo.17

A localização estratégica pode ser mensurada a partir do exemplo da Revolta Liberal, em 1842. O governo central temia que os liberais curitibanos aderissem ao movimento. Se isso acontecesse, haveria sério risco de uma junção dos revoltosos mineiros e paulistas com os rio-grandenses, mais ao sul.Uma das primeiras medidas para barrar essa ligação foi o envio de tropas do Exército de linha de Santa Catarina para o Paraná. Nesse momento a Guarda Nacional de Itu e Sorocaba estava combatendo ao lado do presidente interino, o revoltoso Rafael Tobias de Aguiar, ao passo que o restante da força estava ao lado do governo geral, engrossando as fileiras do Exército, conforme apontado por Eric Honer.18

Inicialmente as lideranças locais de Curitiba estavam propensas a encampar o lado sedicioso, mas foram dissuadidos por João Maria da Silva Machado, futuro Barão de

15 Sobre a administração de D. Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, em São Paulo,

ver: BELLOTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil Colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo, 1765-1775. 2. ed. São Paulo: Secretaria de Cultura, 2007.

16 DISCURSO recitado pelo Ex. Presidente Raphael Tobias de Aguiar no dia 7 de janeiro de 1841 por ocasião

da abertura da Assembleia Legislativa da província de São Paulo. São Paulo: Typographia de Costa Silveira, 1842. Anexo 7.

17 MOTA, Lucio Tadeu. A guerra dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná

(1769-1924). Maringá: Eduem, 1994.

18 HORNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-1844). 2010. Tese

(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p.138, 177, 182.

Antonina. A participação de Machado - a principal liderança política da 5ª Comarca - foi decisiva. Estudiosos defendem que uma das promessas feitas ao grupo liderado pelo Barão era a de que a fidelidade ao governo teria como recompensa a emancipação política.19 Realmente, anos mais tarde, a questão surgiu na Câmara, encabeçada pelo presidente da província de São Paulo. Apesar de ter provocado uma cisão entre os deputados conservadores, particularmente mineiros e paulistas, e se arrastado por quase uma década, em dezembro de 1853 a antiga 5ª Comarca transformava-se numa das últimas unidades administrativas do Império: a província do Paraná.20

1.2 A província emancipada: o governo de Zacarias de Góes e