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A «purificação» da noção de regime semipresidencial

Contrariamente ao rápido abandono da noção pelos investigadores franceses, o debate internacional acelerou nos anos 90, quando muitos países do Leste europeu passaram por uma fase de transição democrática após o desaparecimento do bloco soviético. Mesmo que não seja neces- sário debruçar-se sobre a toda a história das discussões científicas à volta do semipresidencialismo, há que relembrar um dos elementos cruciais do debate no seio da comunidade politóloga internacional: a forma de qualificar e de integrar (ou não) os poderes presidenciais na definição do regime semipresidencial. Na sua definição seminal mundialmente reco- nhecida, Maurice Duverger (1980, 166) fixa três elementos: um presi- dente eleito por sufrágio universal, que detém poderes bastante conside- ráveis, um primeiro-ministro e ministros que detêm o poder executivo e que só podem manter-se em funções com o assentimento do parlamento. Nesta definição tudo é discutível – e foi discutido – mas o mais incomo- dativo é sem dúvida a expressão, particularmente imprecisa, «poderes bastante consideráveis».4

Perante esta imprecisão, a «purificação» mais radical, mas também a mais razoável, foi proposta por Robert Elgie (1998). Confrontado com a multiplicação das taxinomias dos regimes democráticos, quanto à con- fusão e às ambiguidades subsequentes, Robert Elgie sustentou que a di- ficuldade provinha da mistura de dois tipos de propriedades quanto à classificação dos sistemas políticos: as propriedades primeiras (dispositional properties) e as propriedades relacionais (relational properties). As primeiras são disposições constitucionais que podem ser descritas independente- mente dos usos. Nada dizem, nomeadamente, do poder efetivo dos ti- tulares das funções políticas; podem ser apreciadas independentemente das relações de força políticas (ou eleitorais) ou das circunstâncias histó- ricas. Por exemplo, a eleição do presidente por sufrágio universal direto nada diz sobre a potência real do presidente eleito. Ao invés, as proprie- dades relacionais remetem para os poderes efetivos dos titulares das fun- ções institucionais: isto é, a práticas efetivas dos titulares destas funções (e que podem também ser diferenciadamente analisadas). Consequente-

4Como mostrado por Steven D. Roper (2002), Maurice Duverger não é mais preciso

noutros textos e utiliza uma grande variedade de expressões – todas imprecisas – para ca- racterizar os poderes presidenciais num regime semipresidencial.

mente, Robert Elgie defende que só as propriedades primeiras podem con- duzir a um resultado objetivo na classificação dos regimes: a utilização das propriedades relacionais depende excessivamente da subjetividade do analista,5como o próprio demonstra pelos profundos desacordos exis-

tentes na literatura francesa e internacional sobre o funcionamento do sistema político francês (e sobre a sua classificação). Deve notar-se – esta precisão é particularmente importante – que a distinção entre proprie- dades primeiras e propriedades relacionais não se sobrepõe totalmente à distinção entre poderes constitucionais e poderes reais (ou efetivamente exercidos). Assim, alguns poderes constitucionais, como o poder de dis- solução ou o poder presidencial de exonerar o seu primeiro-ministro, participam, segundo Robert Elgie (1998, 225), nas propriedades relacio- nais porque a sua prática está muito dependente do contexto político. Então, para classificar os regimes políticos, Robert Elgie só considera três propriedades correspondentes ao critério das propriedades primeiras: a existência distinta (ou não) de um chefe de Estado e de um chefe de governo, a eleição direta (ou não) dos titulares destas funções e a exis- tência (ou não) de um termo predeterminado para o exercício destas fun- ções.

Baseando-se nesta distinção, é possível chegar a uma definição «pu- rificada» do semipresidencialismo: «Semi-presidentialism is the situation where a constitution makes provision for both a directly elected fixed- -term president and a prime minister and cabinet who are collectively res ponsible to the legislature» (Elgie 1999, 13). Esta definição, que já não faz referência ao critério duvergeriano dos «considerable presidential po- wers» (Elgie 2007, 2-6), foi rapidamente adotada pela maior parte dos es- pecialistas, podendo ser considerada hoje como a definição estandarte da literatura internacional (Schleiter e Morgan-Jones 2009, 875).

Porém, esta definição tem uma fragilidade de um ponto de vista compa- rativo. Conduz à reunião de sistemas políticos que, embora distintos dos dois outros ideais-tipos (parlamentarismo e presidencialismo), têm carac- terísticas extremamente diferentes. A «purificação» da definição duver- geriana poderá assim conduzir a um efeito perverso: construída uma ca- tegoria demasiado abrangente, proíbe a análise dos efeitos das diferentes configurações institucionais semipresidenciais (nomeadamente quanto ao desempenho democrático). A grande variedade dos regimes semipre-

5«The nature of political science is such that country-specialist are almost bound to

disagree as to the nature of executive power relations in their country of study» (Elgie 1998, 229)

sidenciais conduziu, portanto – até, antes da tarefa de «purificação» le- vada a cabo por Robert Elgie – a propor critérios para distinguir vários subtipos. A obra de Matthew Shugart e John Carey (1992) foi seminal quando distinguiu dois tipos de configurações: a primeira, na qual o pri- meiro-ministro e o governo são coletivamente responsáveis perante o parlamento e o presidente (president-parliamentarism); a segunda, onde o primeiro-ministro e o governo são somente responsáveis perante o parla- mento (premier-presidentialism), cujo arquétipo – o que não deixa surpreen- der um leitor francês – será a França (Shugart 1993, 30).

Originalmente, esta distinção foi titubeante. Com efeito, os autores (1992) parecem primeiro indicar que só o premier-presidencialismo corres- ponde verdadeiramente ao regime semipresidencial. Mas, logo nas pu- blicações subsequentes de Matthew Shugart (Shugart 2005; Samuels e Shugart, 2010), estas duas configurações participam ambas no regime se- mipresidencial. É verdade que, entretanto, estas duas categorias foram igualmente «purificadas»: se o direito presidencial de dissolução foi pri- meiro uma das características do president-parliamentarism, este critério acabou por desaparecer, merecendo, depois, segundo Matthew Shugart, um tratamento particular (2005, 334). Esta distinção tornou-se, por sua vez, um padrão da literatura internacional, porque é indubitavelmente conforme ao imperativo determinado por Robert Elgie (2011), isto é, fundar-se exclusivamente sobre os «termos da Constituição», e porque se apoia numa das suas três variáveis para construir a sua tipologia (Elgie 1998, 226).

É neste quadro que a questão dos poderes presidenciais foi reintrodu- zida (Metcalf 2000; Roper 2002; Siaroff 2003), não como um critério da definição do regime semipresidencial, mas consoante a distinção pro- posta por Matthew Shugart et al., e segundo o imperativo avançado por Robert Elgie, a exclusiva tomada em conta das disposições constitucio- nais. É – por exemplo – o caso da publicação de Lee Kendall Metcalf (2000, 663): se aceita que os presidentes possam ter poderes que não es- tejam definidos na constituição, o mesmo considera que estes «poderes informais» são secundários – e, portanto, podem ser descartados na cons- trução de uma tipologia – porque só aumentam ou diminuem os «pode- res formais».

O modelo foi igualmente afinado de um ponto de vista conceitual. Numa importante revista da literatura existente, Petra Schleiter e Edward Morgan-Jones (2009) mostram que, aplicada à democracia representativa, a teoria do mandante-mandatário (principal-agent theory) permitia trans- crever – de forma elegante e parcimoniosa – a peculiaridade do regime

semipresidencial. Nesta perspetiva, que tem por objetivo descrever os di- ferentes modos de delegação política, considera-se que o eleitorado (o mandante) dá um mandato de representação a um ou dois mandatários de primeira linha (o presidente e/ou o parlamento), que, por sua vez, de- legam o seu mandato ao governo, mandatário de segunda linha. Os re- gimes constitucionais podem então ser descritos segundos duas dimen- sões. A primeira é o número de mandatários de primeira linha: um (como nos regimes parlamentares) ou dois (como nos regimes presiden- ciais e semipresidenciais). A segunda dimensão considera o número de mandatários de primeira linha que delegam o seu mandato ao mandatá- rio de segunda linha: um só nos regimes presidenciais (o presidente) e nos parlamentares (o parlamento); um e/ou dois nos regimes semipresi- denciais (o parlamento e/ou o parlamento e o presidente).

A teoria do mandato-mandatário descreve, portanto, diferentes estrutu- ras de delegação política que talham as relações entre os diferentes atores institucionais. Ora, é de salientar que as diferenças constitucionais – por vezes, importantes – nos regimes semipresidenciais (nomeadamente quanto à formação e exoneração, ou ao controlo da agenda parlamentar) são sempre dependentes da estrutura de delegação política própria do re- gime semipresidencial. Dito de outra forma, as relações entre os diferentes atores institucionais são explicadas por esta dupla delegação a mandatários de primeira linha e pela capacidade destes em delegar (ou não) num man- datário de segunda linha. Esta peculiaridade distingue fundamentalmente e especificamente os regimes semipresidenciais dos outros dois regimes.6

Deste ponto de vista, o semipresidencialismo distingue-se univocamente pela «possibilidade de dois mandatários do eleitorado – o Presidente e o Parlamento – poderem exercer uma autoridade, mesmo que muitas das vezes assimétrica, sobre o governo» (Schleiter e Morgan-Jones 2009, 891). Conceitualmente, definir os regimes desta forma permite acabar com uma discussão prolongadamente viva – animada nomeadamente por Arend Lijphart (1997, 1999) no seguimento do texto seminal de Maurice Duverger (1980, 186) – que via no regime semipresidencial uma combi- nação dos dois outros tipos de regimes, aproximando-se ou do regime presidencial ou do parlamentar em função das relações de forças políticas. Mais que uma combinação, o regime semipresidencial é uma soma (Shu-

6Petra Schleiter e Edward Morgan-Jones (2009) mostram igualmente que a teoria do

mandante-mandatário permite analisar o desempenho democrático do semipresidencia- lismo e discriminar os seus efeitos, quer do ponto de vista da qualidade da representação, quer do ponto de vista da responsabilidade dos governantes, da composição e da duração dos governos e das políticas públicas legislativas.

gart 2005, 327): o que permite aliás igualmente – o que a literatura não notou – distinguir os regimes semipresidenciais do fenómeno contem- porâneo de «presidencialização» do governo nos regimes parlamentares (Poguntke e Webb 2005). Mesmo com um governo «presidencializado», os regimes parlamentares não deixam de ser diferentemente estruturados pela mesma cadeia de delegação política e, portanto, de funcionar muito diferentemente.

Rapidamente, a perspetiva neomadisoniana proposta por Mathhew Shugart (2005) aproxima-se muito da análise em termos mandante-man- datário pela centralidade ocupada pelo duplo circuito de delegação polí- tica, mas com outro objetivo. Na sua análise das combinações constitu- cionais entre as duas dimensões das relações institucionais – as relações hierárquicas (uma instituição é subordinada a outra) e as relações transa- cionais (as instituições são obrigadas à coordenação) – podem então ser incorporadas as características informais ou extraconstitucionais (por exemplo, o sistema de partidos) que formam os modelos comportamen- tais (Shugart 2005, 328; Samuels e Shugart 2010b). Trata-se, portanto, menos de uma definição do regime semipresidencial do que de uma des- crição dos jogos possíveis dentro do mesmo sistema constitucional (Shu- gart 2005, 334: por exemplo, no caso francês, é impossível transcrever o domínio presidencial sobre governo através do sistema de partidos tendo somente em conta una definição institucional). Mas, subsequentemente, torna-se difícil restringir-se a uma perspetiva meramente constitucional: David Samuels e Matthew Shugart (2010a, 88-89) defendem a ideia de uma exceção austríaca devido à «distância entre o direito e a prática» quando – curiosamente – esta distância não é explorada no caso francês... Com uma definição «purificada», dotada de um quadro conceitual ro- busto e estabilizado na literatura, a noção de regime semipresidencial já parece não levantar problemas. A partir daí, os especialistas em análise comparada das instituições em ciência política podem deslocar a sua atenção. Se a questão do «desempenho» democrático continua na atua- lidade (Elgie 2011), muitas outras estão agora a ser feitas neste quadro, relativamente a todos os aspetos de um sistema político – por exemplo, a análise do diferencial de participação eleitoral nas eleições presidencial e legislativas (Elgie e Fauvelle-Aymar 2012) –, não obstante uma atenção particular sobre os poderes presenciais, aos efeitos da eleição presidencial (Hicken e Stoll 2013; Elgie, Bucur, Dolez e Laurent 2014) e à presiden- cialização do sistema de partidos (Samuels e Shugart 2010b).

Será possível melhorar a tipologia existente