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entre a exceção e a inconfessada política Colocação do problema

Nos termos da alínea g) do artigo 133.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) pode o presidente da República demitir o governo, desde que observado o requisito previsto no n.º 2 do artigo 195.º da CRP, ou seja, desde que a demissão seja necessária para «assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Es- tado». Face a esta formulação, o poder do presidente da República parece surgir, na Constituição, como um poder-dever, uma vez que é invocada a necessidade, algo que o presidente da República deteta e que o leva, ine- xoravelmente, a demitir o governo. Tomando esta interpretação como adequada, a condição para a verificação do requisito do n.º 2 do artigo 195.º torna-se formalmente da maior importância: é a sua verificação que desencadeia a demissão do governo por parte do presidente da República. Importa, por isso, considerar com particular atenção o que se pretende significar na Constituição com «regular funcionamento das instituições democráticas».

Porém, de uma perspetiva material é difícil entender o poder-dever do n.º 2 do artigo 195.º como um relevante mecanismo do nosso siste ma po - lítico-constitucional. Além de ele surgir como uma limitação a um poder livre que o presidente detinha entre 1976 e 1982, ele fica circunscrito a

circunstâncias muito excecionais em que uma dada atuação do governo deve ser impedida imediatamente, no contexto de alguns dias ou poucas semanas. A importância que este mecanismo possa ter decorrerá, por- tanto, da sua excecionalidade e não da sua integração no sistema como um mecanismo normal de resolução de diferendos inultrapassáveis pelo processo político comum.

São estas razões excecionais que devem interessar o cultor de direito constitucional que se debruce sobre as atuais condições em que o presi- dente da República pode demitir o governo. Só assim poderá avaliar da bondade e da utilidade desta solução constitucional. Por outras palavras, este mecanismo tem mais que ver (constitucionalmente) com a relação entre presidente e parlamento do que entre presidente e governo.

O requisito do n.º 2 do artigo 195.º da Constituição é um produto da revisão constitucional de 1982. Em 34 anos nunca foi utilizado. Ainda assim, sobre ele a doutrina já se pronunciou abundantemente (Reis No- vais 2010; Valle 2013) formulando várias interpretações possíveis para a exigência da «necessidade de assegurar o regular funcionamento das ins- tituições democráticas» e, consequentemente, qualificando o tipo de res- ponsabilidade que o governo tem perante o presidente, sobretudo por comparação com os poderes que o presidente tem sobre o parlamento. Que sentido fará e que utilidade terá pronunciarmo-nos hoje sobre o n.º 2 do artigo 195.º?

A única novidade no panorama político-constitucional dos últimos anos que pode justificar uma revisitação do requisito do artigo 195.º/2 é a estreia de um governo que emerge da Assembleia da República a partir do segundo partido mais votado nas eleições legislativas de 2015, mas com o apoio de outros três partidos. Será esta triangulação parlamentar- -governamental-presidencial de molde a justificar um novo olhar sobre a responsabilidade do governo perante o presidente e, em especial, as virtualidades do n.º 2 do artigo 165.º? Dir-se-á que sim, mas que, sem grandes surpresas, esta reflexão demonstrará que a não utilização até hoje deste mecanismo aparece ainda mais reforçada nesta nova configuração do sistema político. Para que possamos, contudo, sustentar esta conclu- são antecipada é forçoso que, como dissemos, revisitemos o mecanismo do n.º 2 do artigo 195.º Eis o que nos propomos fazer, de forma sintética, no quadro mais vasto de uma discussão sobre a responsabilidade do pri- meiro-ministro (e do governo) perante o presidente da República.

Nos termos do n.º 1 do artigo 191.º da CRP, «[o] primeiro-ministro é responsável perante o presidente da República e, no âmbito da respon- sabilidade política do governo, perante a Assembleia da República». Esta

responsabilidade simples perante o presidente da República surge ambí- gua para mais contraposta à responsabilidade qualificada – como polí- tica – perante a Assembleia da República. Que significa, afinal, ser o primeiro-ministro e, por extensão, o governo, responsável, tão simples- mente, perante o presidente da República? Qual venha a ser o sentido e a medida desta responsabilidade simples, ela só pode ser encontrada ou deduzida de deveres que o primeiro-ministro efetivamente tenha perante o presidente da República e/ou de poderes que este tenha sobre aquele. Mas não quaisquer deveres ou poderes. Têm de ser poderes ou deveres que não possam qualificar tal responsabilidade como política. Se a polí- tica é o domínio das escolhas e das opções, a ausência de uma referência à responsabilidade política para qualificar a responsabilidade do primeiro- -ministro perante o presidente da República parece assentar bem junto da necessidade de assegurar o regular funcionamento das instituições de- mocráticas. Repare-se e insista-se neste aspeto: o que o legislador consti- tucional exige não é, meramente, que esteja em causa o regular funcio- namento das instituições democráticas, como muitas vezes se pode ouvir ou ler, mesmo a juristas; o que o legislador exige é que seja necessário, es- tando em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, demitir o governo para assegurar essa regularidade. Esta ideia de necessi- dade parece surgir como um oposto natural da censurabilidade política de opções tomadas pelo governo e submetidas ao escrutínio da Assem- bleia da República e que marcam, a responsabilidade do primeiro-minis- tro perante o parlamento. Contudo, não é certo que uma dada linha de rumo político não possa colocar o primeiro-ministro numa situação em que seja necessário demitir o governo como único modo de assegurar o regular funcionamento das instituições. O que parece certo é que pode- rão existir outras circunstâncias que não políticas que também configu- rem esta responsabilidade. Que circunstâncias poderão ser estas, dado o largo espectro da matéria política? Parece-me que talvez o legislador esteja a considerar interpretações jurídicas de atuações do primeiro-ministro e do governo que não possam reconduzir-se a uma opção política, mas ao cumprimento estrito de uma norma. De outro modo será difícil imaginar que tipo de comportamento não político, e como tal não gerador de res- ponsabilidade política, pode integrar a responsabilidade do primeiro-mi- nistro perante o presidente da República. Certo é que o legislador cons- titucional, com esta clivagem entre tipos de responsabilidade, simples e qualificada, do primeiro-ministro perante presidente e parlamento, cria um problema complicado ao intérprete, que tem de encontrar um sen- tido para a distinção operada pelo legislador.

Assim, pode dizer-se que a responsabilidade do primeiro-ministro pe- rante o parlamento há de existir na medida em que se conforme e recorte o poder-dever de demissão do governo por parte do presidente da Repú- blica. É porque o primeiro-ministro é responsável perante o presidente que, por seu turno, o presidente, se verificar que não está a ser observado o regular funcionamento das instituições democráticas por causa do go- verno, deve demiti-lo sempre que tal seja, e apenas nesse caso, necessário para assegurar a normalização do funcionamento do sistema político.

Nesta medida, a condição constitucional de demissão do governo surge enquadrada pela relação entre governo e presidente da República e assim deve ser analisada, como temos vindo a fazer. Contudo, e uma vez que o governo é também responsável – politicamente – perante o Parlamento e é nele que se sustém, a análise de poder-dever de demissão do governo por parte do presidente convoca necessariamente uma análise sobre a possibilidade última de ser atingido – no parlamento – o objetivo constitucional plasmado no n.º 2 do artigo 195.º Por outras palavras, o juízo de prognose do presidente da República implica necessariamente a ponderação do que vem a seguir à demissão do governo: isto é, demi- tido um governo, que hipóteses há de um novo governo surgir no par- lamento?

Abrem-se, então, duas leituras complementares do mecanismo pre- visto no n.º 2 do artigo 195.º Uma primeira hipótese, que temos vindo a acompanhar, é a da excecionalidade do mecanismo, na linha da decla- ração do estado de sítio ou de emergência. O presidente da República consideraria a demissão do governo no mais curto espaço de tempo cons- titucionalmente possível como o único modo de assegurar o regular fun- cionamento das instituições. Nesta medida, seria até irrelevante qual a posição do parlamento face ao governo – se por exemplo o primeiro es- tivesse a ser complacente com o segundo, não o demitindo – o que im- portaria seria o juízo do presidente. Se, em face da decisão do presidente, o regular funcionamento das instituições pudesse permanecer em causa devido à manutenção do apoio parlamentar ao governo demitido, então o presidente sempre poderia dissolver o parlamento. Evidentemente esta leitura é de acolher, não só por respeitar a letra da distinção entre res- ponsabilidade e responsabilidade política, que surgiu com a formulação do n.º 2 do artigo 195.º, mas também porque justificaria uma distinção efetiva entre o poder de demissão e o poder de dissolução: indepen - dentemente do que viesse a fazer o parlamento, conseguia-se num curto espaço de tempo (sem necessidade de efetuar novas eleições) retirar poder jurídico ao governo. Note-se, contudo, que nesta leitura, é forçoso

que a necessidade de assegurar o regular funcionamento das instituições seja obrigatoriamente obtida com a passagem de um governo em funções para um governo demitido e em gestão. Se for ainda necessário que certos atos da competência de um governo sejam praticados, isto implica ne- cessariamente a anuência do parlamento para a viabilização desse go- verno.

Assim, para além dos casos – muito raros – em que a demissão do go- verno assegure, só por si, o regular funcionamento das instituições de- mocráticas (bastando as limitações negativas do regime dos governos de gestão), é necessário que a demissão do governo abra as portas para que um novo governo traga a pressuposta e exigida normalização do funcio- namento das instituições democráticas. Este é um importante argumento para se defender que, não obstante tudo o que possa ser dito sobre a aná- lise subjetiva de cada presidente da República na determinação do re- curso ao mecanismo do n.º 2 do artigo 195.º, há uma incontornável di- mensão objetiva nesta condição (Gomes Canotilho e Moreira 2010), na medida em que a escolha do presidente deve parecer igualmente necessá- ria a qualquer sujeito do sistema político, em particular, aos deputados. De outro modo será difícil conseguir que a escolha produza os resultados desejados e se consiga efetivar uma mudança de governo através da de- missão de um e da escolha de outro.

É difícil, contudo, admitir uma interpretação constitucional do n.º 2 do artigo 195.º que exigisse a demissão do governo por parte do presi- dente da República, como resultado de uma verificação objetiva da ne- cessidade de assim se assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, independentemente dos efeitos dessa demissão sobre a for- mação de novo governo. De outro modo, o n.º 2 do artigo 195.º ficaria acantonado às escassíssimas situações em que a mera demissão do go- verno, independentemente do governo que lhe sucedesse, só por si, assegu- rasse o regular funcionamento das instituições democráticas. É difícil imaginar uma situação extrema deste tipo.

Daí que uma segunda leitura se imponha como uma hipótese não confessada dos legisladores da revisão de 1982: a de que o mecanismo do n.º 2 do artigo 195.º esteja ainda pensado para situações de cumulação de critérios em que, no quadro da primeira hipótese referida, i) há ur- gência no afastamento do governo da sua efetividade de funções fazendo- -o transitar para um regime de gestão, mas ii) há a possibilidade de for- mação de um novo governo sem necessidade de dissolver o parlamento. Para esta leitura concorre a ideia de que uma demissão do governo por causas objetivas e institucionais, podendo não expressar um juízo de cen-

surabilidade política sobre o parlamento, permitiria que este, com um novo alinhamento ou orientação das forças políticas aí representadas, pudesse gerar um governo capaz de manter o regular funcionamento das instituições democráticas através do desempenho de atos que haviam sido preteridos pelo governo demitido.