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A Assembleia Constituinte escolheu um sistema de governo baseado na eleição directa de um presidente da República por sufrágio universal, a par de uma outra eleição semelhante para o Parlamento Nacional pe- rante o qual o governo é responsável. Desta forma instituiu uma forma de semipresidencialismo, de acordo com o entendimento formulado por Robert Elgie (2011). Mesmo que quiséssemos recuperar a definição ori- ginal de Duverger (1978, 1980) e considerar a necessidade do presidente dispor de «poderes substanciais», o caso timorense continuaria a poder ser assim classificado, tendo em vista o que se refere à nomeação do go- verno, ao controlo das políticas do executivo, à capacidade de definir uma agenda política autónoma, e ainda às competência para pôr fim à vida de governos através da demissão do primeiro-ministro ou da disso- lução do parlamento. Esta caracterização do sistema político timorense é quase unanimemente aceite, exceptuando-se Damien Kingsbury (2013, 2014) que, baseando-se numa definição tributária da experiência francesa, e levando em conta o que Lijphart (2012 [1999]) afirma acerca de Por- tugal (onde vê um modelo formalmente semipresidencial coincidir com uma prática parlamentarista), propõe que o encaremos como uma «Re- pública parlamentar».

A literatura sobre as relações entre semipresidencialismo e democracia, porém, exigem que sejamos precisos na classificação dos casos empíricos. Tendo-se iniciado num contexto em que este género lutava para afirmar a sua individualidade e a sua coerência interna, o debate sofreu os efeitos de este modelo ter uma expressão prática de reduzido impacto e de se li- mitar quase exclusivamente à Europa Ocidental. Foi esse o quadro de

referência que sustentou análises como as de Sartori (1997) ou mesmo de Pasquino (2007). Também Sophia Moestrup realizou nesse contexto teórico uma estudo muito amplo em que pôde concluir que «o sistema semipresidencial não é mais nem menos susceptível de sofrer uma rup- tura do que os sistemas presidencial ou parlamentar» (2007, 40). Mas o seu crescimento no mundo da «terceira vaga», e a constatação de que sob o grande chapéu de chuva que o modelo representa se podiam dis- tinguir subtipos com impacto na articulação com a democratização, trouxe um desenvolvimento teórico de relevo na obra de Elgie (2011): se considerarmos dois subtipos deste sistema – o premier-presidential e o president-parliamentary propostos por Shugart e Carey (1992) – então o primeiro encontra-se associado a formas democráticas estáveis e dotadas de bons índices de qualidade, ao passo que o segundo está associado a dificuldades de sobrevivência da democracia que, onde subsiste, tende a ter níveis de qualidade inferiores. Já Samuels e Shugart haviam notado que «nenhum regime premier-presidential foi alvo de um colapso demo- crático» (2010, 260), enquanto o outro, pelo contrário, sofreu rupturas várias. A contribuição fundamental de Elgie, porém, situa-se para além da verificação estatística deste fenómeno, e remete para um modelo ex- plicativo que toma por base os diferentes mecanismos de incentivos que se geram sob um e outro. Num caso, a dependência exclusiva do pri- meiro-ministro em relação ao seu parlamento conduziria a uma situação em que o presidente, não dispondo de meios para intervir sobre a orien- tação do governo, seria incentivado a cooperar com o chefe do governo e não a competir com ele; no outro, a dependência partilhada do chefe do governo em relação ao parlamento e ao presidente garantiria a este meios de intervenção que poderiam traduzir-se por uma rivalidade de posições quanto à orientação do executivo, e consequentemente a «pe- cados» que Sartori e Pasquino encontravam no modelo abstracto: con- flito institucional e eventual paralisia do processo de tomada de decisão. Assim colocada a questão, torna-se indispensável recuperar a contribui- ção original de Shugart e Carey (1992) no sentido de precisar a definição de cada um dos subtipos, para depois procedermos ao exercício de apli- cação desses conceitos à realidade empírica.

Impressionados pelo facto de «quase todas as novas democracias [...] terem presidentes eleitos com variados graus de autoridade política» (1992, 2) mas não se conformarem com o típico modelo presidencialista em que o presidente é o responsável directo pelo executivo, que por sua vez não responde perante o legislativo, estes autores propuseram que ao modelo clássico se juntassem dois – que hoje em dia são considerados

como subtipos do semipresidencialismo. Chamaram premier-presidentialist ao modelo no qual «o presidente tem certos poderes mas o governo é res- ponsável apenas perante o parlamento», e president-parliamentarist àquele em que existem «poderes sobre o governo partilhados – ou confusos – entre presidentes e assembleias» (1992, 15, itálicos meus). É importante aten- tarmos na letra desta definição porque, sob a aparência de uma divisão simétrica, esconde-se uma realidade diferente: enquanto o premier-presi- dentialism é definido em termos positivos que não deixam margem para qualquer dúvida (a dependência do primeiro-ministro é exclusivamente perante o seu parlamento, sem qualquer adjectivação), o outro modelo aparece como uma categoria residual na qual devem ser colocados todos os casos que não se conformem com o primeiro, sendo definido pela negativa, e admitindo os casos ambíguos.

Consciente desta dificuldade, Elgie reelaborou os termos de referência: será considerado premier-presidential todo o sistema no qual «o primeiro- -ministro e o governo são colectivamente responsáveis apenas perante o parlamento», e presidencial-parlamentar todo aquele em que «o primeiro- -ministro e o governo são colectivamente responsáveis perante o parla- mento e o presidente» (2011a, 28). Não creio que tenhamos avançado significativamente, mas estes são os dados de que dispomos para prosse- guir com estudos comparativos. Por isso, e para nos auxiliar a destrinçar casos empíricos, vale a pena lembrar que Lobo e Neto sugeriram que o critério crítico para distinguir entre estes modelos reside «nas relações de autoridade política que se estabelecem entre o presidente e o governo» (2009, 271). Tomaremos esta indicação em boa conta.

Podemos agora tentar identificar qual destes subtipos foi adoptado em Timor-Leste, e consequentemente quais as expectativas que podemos formar acerca da sua articulação com a consolidação democrática. Neste exercício, não seguirei a maioria do comentadores que, como Beuman, Elgie, Reilly ou Shoesmith, classificam Timor-Leste como exemplo de premier-presidentialism, mas antes a sugestão de Vasconcelos e Cunha (2009, 235) que consideram tratar-se de um exemplo de presidencial-par- lamentarismo. Sucintamente, as minhas razões são as seguintes:

Em primeiro lugar, a CRDTL (Art.º 107 – Responsabilidade do Go- verno) reza assim:

O Governo responde perante o Presidente da Republica e o Parlamento Nacional pela condução e execução da política interna e externa, nos termos da Constituição e da lei.

Este artigo é muito claro, e a sua importância foi sublinhada pelo Pre- sidente Ramos-Horta:

[A] Constituição é explícita: o governo presta contas ao Parlamento e ao Presidente da República. Está escrito no artigo 107 sobre a responsabilidade do governo. [...] Logo, o Chefe de Estado, sendo o garante da independência, da soberania, da paz, da unidade nacional, tem responsabilidades e o privilégio de exigir do governo a prestação de contas, porque na ausência de boa gover- nação, ou com má governação, poderiam criar-se situações de grande tensão social, conflitos sociais e políticos, que comprometem a paz e a estabilidade pela qual o Chefe de Estado é um dos principais responsáveis [2014, 71-72]. Neste quadro, um dos poderes mais relevantes do presidente prende- -se com a formação e a sobrevivência dos governos. Se esses poderes na formação do governo têm sido reconhecidos (mas desvalorizados...), so- bretudo em situações em que o parlamento não tem uma maioria for- mada antes da sua primeira reunião (como sucedeu em 2007 e 2012), a polémica é maior no que concerne aos poderes de terminar a vida do executivo. Segundo a CRDTL, o presidente timorense dispõe de poderes de dissolução da Assembleia (Art.os 86 f. e 100) e de demissão do pri-

meiro-ministro (Art.º 112. 2) que, não sendo ilimitados mas dependentes de um conjunto de circunstâncias, remetem em última análise para o seu juízo político, e reforçam a ideia de que o governo está na dupla depen- dência do parlamento e do presidente. O que determina o emprego ou não de um desses poderes presidenciais é a permanente possibilidade de oscilação de predominância dentro do sistema entre presidente e pri- meiro-ministro em função da situação política.

Acresce um argumento «quantitativo». Segundo Shugart e Carey (1992, 160), quando os poderes de formação e dissolução do governo, medidos numa escala ordinal de 0 e 4 (seguida no quadro 6.1), atingirem 4 ou mais pontos, considera-se esse sistema presidencial-parlamentar (Lobo e Neto baixaram o nível de corte para 3,5 – 2009, 272). Ora, se- gundo os meus cálculos, que divergem de Vasconcelos e Cunha (2009, 251), em ambos os casos o valor correcto a atribuir ao sistema timorense é de 2 pontos, resultando então uma soma de 4 – a fronteira que, em caso de dúvida, deve fazer inclinar o prato para o lado do subtipo que comporta mais ambiguidade.

Finalmente, e tendo em consideração tanto a possibilidade de uma si- tuação ambígua como o padrão de relações de poder entre presidentes e chefes de governo, vale a pena ouvir a palavra da constitucionalista aus- traliana Hillary Charlesworth:

[A] divisão de poderes entre o presidente e o governo [...] apresenta um potencial para o conflito. O Artigo 112 dá poderes excepcionais ao presi- dente para demitir o governo e poderá gerar uma oportunidade para o pre- sidente interferir com o conselho de ministros se o presidente e o primeiro- -ministro não se entenderem. [...] Parece-me que subsistem incertezas quanto a esses poderes [presidenciais]. Em muitas constituições há referências ex- plicitas a que o presidente exerce os seus poderes sob proposta do governo ou do primeiro-ministro – a não ser que ela própria diga o contrário. A au- sência de qualquer provisão nesse sentido na constituição [timorense], e o facto de que existem claramente poderes que envolvem o juízo independente do presidente, cria incertezas [2003, 9-10].

Não pretendo colocar um ponto final na polémica, porque reconheço que a situação é complexa e que vários actores políticos agem como se de facto o governo dependesse exclusivamente do parlamento. Em 2006, quando o confronto entre forças armadas e de segurança levou ao co- lapso da ordem pública, o Presidente Xanana não tomou a iniciativa de demitir o primeiro-ministro com base no «irregular funcionamento das instituições» que era evidente, mas pressionou-o no sentido de apresentar a sua demissão – como se não dispusesse desse poder. O que pretendo sublinhar é que talvez a subdivisão do semipresidencialismo nos dois subtipos que estivemos a analisar não espelhe todas as subtilezas do sis- tema, e que seja necessário olhar noutras direcções em busca de uma ex- plicação convincente para o modo como se articula o regime político e o desempenho da democracia. Antes disso, porém, devemos averiguar qual foi o sentido desse mesmo desempenho, outro tópico onde a polé- mica é viva.