• Nenhum resultado encontrado

A controvérsia sobre a experiência timorense não se resume à sua ta- xonomia, antes se prolonga na apreciação do seu desempenho democrá- tico. A literatura sobre o semipresidencialismo timorense e sua articula- ção com a consolidação da democracia oferece-nos duas visões contrastantes. De um lado encontramos quem sustenta uma perspectiva globalmente negativa. A título de exemplo, Benjamin Reilly afirmou que «[a] experiência de Timor-Leste sugere que enquanto a partilha de pode- res entre elites políticas rivais pode de facto ser facilitada por estruturas semipresidenciais, daí não se pode concluir que isso tenha um papel im- portante na redução de conflitos. Na verdade, [...] estruturas semipresi- denciais podem servir para acentuar divisões sociais no caso de se assistir

a um conflito institucional» (2014, 139). No mesmo sentido, Moestrup observou que «em vez de promover a cooperação em entidades divididas, o semipresidencialismo com o seu executivo dual pode servir para insti- tucionalizar divisões políticas, e assim polarizar o futuro conflito político. A luta política entre o Presidente Gusmão e o primeiro-ministro Alkatiri [...] tornou a difícil tarefa de estabelecer um governo efectivo e demo- crático no país ainda mais assustadora» (2007, 32). Em termos semelhan- tes se pronunciaram Shoesmith ou Beuman. Curiosamente, são sobre- tudo autores anglo-saxónicos quem defende uma visão negativa da contribuição do sistema de governo timorense para o desempenho da democracia no país, ao mesmo tempo que se inclinam para o classificar de premier-presidential. Do outro lado encontramos sobretudo autores por- tugueses que combinam a tendência para considerar Timor-Leste como um exemplo de president-parlamentarism com uma apreciação favorável do desempenho do sistema de governo.2Exemplo desse posicionamento

é-nos dado por Vasconcelos e Cunha para quem «[o] caso de Timor- -Leste é [...] tido como um exemplo das potencialidades da coabitação (certamente nem sempre fácil) de diferentes maiorias de suporte para pre- sidente e governo na limitação dos seus potenciais excessos unilaterais» (2009, 237). Em sentido idêntico se pronunciou Armando Marques Gue- des, ao afirmar que «a tensão que se acumulara foi naturalmente dissipada pela operação do sistema, e a sua eficácia destrutiva tendeu a ser assim mais ténue» (2014: 220). Eu próprio tive o ensejo de partilhar essa posi- ção, que responde à previsão precoce de J. A. C. Mackie ao sugerir que o sistema semipresidencial «pode muito bem ser mais adequado às ne- cessidades de Timor-Leste do que sistemas puros de presidencialismo ou parlamentarismo» sobretudo porque «se puder ser combinado com aquele tipo de legislaturas defendidas por Lijphart, então é provável que produza uma melhor governança do que qualquer outro sistema político do Sudeste Asiático» (2001, 205).

O argumento negativo convoca dois elementos: a «institucionalização de conflitos» e a consequente tendência do sistema para gerar instabili- dade, assim recuperando a ideia do «pecado original» do semipresiden- cialismo amplamente debatida na literatura. Porém, para um cabal escla- recimento deste argumento, torna-se necessário abordar as questões do

2Não se veja nesta observação um preconceito nacionalista. A sua razão de ser deriva

de Elgie ter reconhecido que, além da língua inglesa, e talvez italiana, o português seria a língua em que maior número de estudos sobre semipresidencialismo foi publicado (Elgie, blogue, 2-12-2009).

sentido de «estabilidade» e das expectativas relativamente à consolidação da democracia

Ao fim de catorze anos de independência, Timor-Leste não é uma de- mocracia consolidada – nem seria expectável que fosse. Esse é um pro- cesso que Schmitter e Santiso (1998) sugerem possa demorar pelo menos três legislaturas, e que Rustow admite possa levar uma geração (1970). Por isso ganha importância que se adopte na avaliação de desempenho uma perspectiva estribada em balizas objectivas. A esta luz, um dos prin- cipais indicadores de estabilidade não pode deixar de ser oferecido pela vigência da ordem constitucional, que se mantém ininterrupta desde 20 de Maio de 2002. Trata-se de um valor que coloca Timor-Leste acima da moda de um ano, da mediana de sete anos, e rapidamente se aproxima da média de dezassete anos que Elkins, Ginsburg e Melton (2009) en- contraram para a sobrevivência de constituições no mundo desde 1789. Se preferirmos o contexto do Sudeste Asiático, então teremos de admitir que Timor-Leste ultrapassou a média de treze anos de todas as constitui- ções, e de dez anos das constituições democráticas desta região. Estes dados sugerem que se deve atribuir à democracia timorense um razoável grau de estabilidade.

Se preferirmos aferir estabilidade pela sobrevivência das legislaturas e dos governos, a imagem que Timor-Leste nos dá é igualmente positiva. A primeira legislatura deu lugar a três governos, sendo que o primeiro caiu com a demissão de Alkatiri na crise de 2006, o segundo foi presidido por Ramos-Horta e manteve o mesmo tipo de apoio parlamentar do pri- meiro, e o terceiro foi apenas o necessário para se cumprir a legislatura após a eleição presidencial de 2007. A segunda legislatura foi acompa- nhada de um só governo, presidido por Xanana Gusmão. E a terceira, em curso, viu a formação de um «Governo de Inclusão Nacional» resul- tante de o alargamento da base de apoio parlamentar do executivo subs- tituir o que inicialmente fora formado logo após as eleições. No cômputo global, e com a excepção de 2006, é de estabilidade que se trata.

A questão que apresento é: será a estabilidade um bem político in- questionável? Os críticos do sistema político timorense partem do prin- cípio de que sim, mas é possível considerá-la como instrumento ao ser- viço de objectivos mais ambiciosos, o que tende a relativizar a sua importância e a reclamar que seja sempre vista no contexto histórico em que ocorre. Vejamos as implicações desta posição.

Timor-Leste é uma jovem democracia em processo de consolidação, tendo as raízes deste processo mergulhado num período de «transição» conduzido em grande parte sob a égide de uma intervenção internacio-

nal. Neste contexto, não é surpresa que algumas características dos pro- cessos de transição clássicos, como a coexistência de visões antagónicas sobre o futuro, e mesmo a persistência de traços originados no regime autoritário precedente, venham à superfície no período de «consolida- ção» (Feijó 2006). Vários observadores da vida política timorense entre 2002 e 2006 encontraram no exercício do poder pela Fretilin «tentações autoritárias» de vários matizes – Simonsen (2006), Siapno (2006), Kings- bury e Leach (2007), Vasconcelos e Cunha (2009) – que poderiam ter de- sembocado no domínio permanente do parlamento por uma força he- gemónica, instituindo um regime de partido dominante e desprezando a necessária alternância no poder (Shoesmith 2013, 122). O aspecto mi- litar do conflito de 2006 também necessita de ser considerado. O gatilho que fez disparar a crise resultou de uma tentativa por parte do partido maioritário para usar o seu poder no Leste do país para ganhar controlo sobre o comando militar e partidarizar as forças armadas – uma tentativa que esbarrou na oposição veemente do Comandante Supremo das For- ças de Defesa e Presidente da República, Xanana Gusmão. Na década de 1980, Xanana tinha rompido com a Fretilin para emergir como líder «na- cional» colocando as Falintil sob o seu comando mas fora da órbita do partido que as havia criado em 1975 e que continuava a ser a força do- minante da Resistência (Niner 2011) – e os ecos dessa decisão ainda res- soavam alto em 2006. Assim sendo, a defesa de princípios constitucionais de neutralidade das forças armadas e pluralismo institucional como bases fundamentais do Estado de direito aparecem como bens políticos mais relevantes do que a noção de estabilidade. Como tive ocasião de referir noutra ocasião (2007), a crise de 2006 pode ser interpretada como um «sobressalto democrático», tornado premente pela degenerescência que vinha a manifestar-se, e na ausência de condições para que o seu desfecho corresse dentro do quadro institucional.

Finalmente, o argumento da «institucionalização do conflito» pode ser abordado numa perspectiva radicalmente diferente. Os sistemas po- líticos representativos têm de lidar com a rivalidade entre actores sociais dentro do edifício institucional, e não através de processos de exclusão. A pergunta pertinente deve ser: qual a atitude política que melhor se ade- qua ao propósito de consolidar a democracia – marginalizar, ilegalizar, reprimir a dissensão historicamente fundada em nome do princípio maioritário que se possa ter manifestado numa determinada eleição? Ou, pelo contrário, desenvolver esforços para incorporar a diferença dentro de uma «casa comum»? Qual o sistema que responde de modo mais ade- quado ao objectivo pretendido? No Timor-Leste independente, e apesar

dos esforços que haviam culminado na criação de uma organização comum da Resistência em 1998, a rivalidade política entre organizações e individualidades de relevo constituía um facto indesmentível que es- truturava a competição, o que implicava que as instituições fossem ca- pazes de lhe dar uma resposta que permitisse diminuir a sua intensidade, mas não aspirar a eliminá-la. Neste contexto, «institucionalizar» a com- petição política, em vez de permitir que ela se vivesse fora do perímetro institucional numa posição de poder vir a desafiar as soluções da consti- tuição, afigura-se mais como um cumprimento do que uma crítica ao que se terá passado no terreno. Como referiu Sven Gunnar Simonsen (2006) ao verificar que Xanana Gusmão enquanto presidente teria levado bastante longe os seus esforços no sentido de estabelecer pontes entre diferentes actores e de pacificar as relações mais ou menos tumultuosas dentro e fora do parlamento, o sentido último da sua intervenção era a de «institucionalizar» o campo de divergências. Ramos-Horta situou a sua acção no mesmo horizonte.

Do outro lado surgem argumentos em defesa do desempenho do mo- delo timorense que têm como ponto de partida a argumentação de Sar- tori (1997) em torno da flexibilidade e adaptabilidade do sistema, bem como os escritos de Lijphart (2004) sobre o desenho institucional para sociedades divididas, nomeadamente a capacidade para acolher de forma inclusiva uma pluralidade de actores. Numa sociedade politicamente po- larizada, com um nacionalismo plural, a capacidade de inclusão emerge como um factor crítico para o sucesso das soluções institucionais. O papel dos presidentes timorenses, em particular, e as suas tentativas de proporcionar uma resposta a este quesito fundamental, assume parti- cular relevância perante os desafios da sociedade timorense.

Confrontada com o facto de as instituições de Estado estarem subde- senvolvidas e apresentarem níveis de consolidação diversos – como os casos do parlamento, analisado por Shoesmith (2008), ou da dependên- cia do poder judicial em relação a cooperantes estrangeiros – a presidên- cia assumiu um papel central no jogo de freios e contrapesos e garantiu um modicum de responsabilização (accountability) horizontal. Foi a presi- dência que permitiu contrariar o carácter hiperdesenvolvido do ramo executivo, nomeadamente através dos poderes de veto (usados com par- cimónia). Vasconcelos e Cunha sublinharam a este propósito que «as di- ficuldades sentidas em Timor-Leste parecem mais amplamente referir-se à difícil implementação do Estado de direito num espaço carente em ab- soluto de referência e estruturas que o suportem», e que nesse contexto o sistema semipresidencial contém virtudes inerentes ao «equilíbrio do

sistema de governo e no controle do poder executivo [que] se revelaram decisivas na realização plena do princípio da separação de poderes» (2009, 237) – e como tal, cruciais no desempenho democrático. Shoe - smith considera igualmente que no cerne do problema timorense, e afec- tando as relações entre presidente e governo, se encontra «a relativa in- capacidade do Estado de desempenhar adequadamente as suas funções básicas» (2007, 234) – o que justifica o intervencionismo presidencial, mesmo moderado.

Os presidentes também desempenharam um papel activo na defesa da inclusão de individualidades e grupos que não conseguiram vencer eleições no cerne da vida política. O Presidente Ramos-Horta nomeou várias personalidades da Fretilin, que em 2007 se viu relegada para a opo- sição, para lugares de relevo, como o de procurador-geral da República, ou para o Conselho Superior de Defesa e Segurança, e ainda nomeou seu chefe de gabinete um amigo pessoal que fizera campanha pelo seu rival. Atitudes como esta de presidentes não executivos contribuíram de modo significativo para a percepção da democracia como uma «casa comum» na qual não cabem apenas os vencedores de eleições, e que mo- biliza todos os sectores de opinião para o envolvimento na procura de soluções para os problemas nacionais, dando assim expressão prática ao objectivo de ser inclusivo.Tudo pesado, inclino-me para considerar que a contribuição do sistema de governo foi de natureza positiva no que se refere ao processo de consolidação da democracia, apesar de defender também que a sua melhor classificação é como presidente-parlamentar. Vejamos o que pode explicar este aparente paradoxo.

Presidentes independentes: