• Nenhum resultado encontrado

A questão da corrupção

No documento Tese Armando Santos (páginas 39-44)

Ora, exactamente, porque muitas vezes descremos, a religião, o dinheiro e até o Estado são colocados em causa, gerando crises de fé, recessões económicas e até revoluções, respectivamente. É, neste contexto, e agora, aqui, começamos a circunscrever o nosso problema, que entra a necessidade de encontrar regras que regulem o exercício da autoridade.

Estamos na matéria do quarto mandamento, que é o primeiro da segunda tábua e indica a ordem da caridade: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mat 12,31) ou «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei» (Jo 13,34). Como refere S. Paulo, «a caridade não faz mal ao próximo. Portanto, a caridade é o pleno cumprimento da lei» (Rm 13,9-10).

Aqueles que exercem uma autoridade, diz o Catecismo Católico26, devem exercê-la como quem presta um serviço. «Quem quiser entre vós tornar-se grande, será vosso servo.» O exercício da sua autoridade é moralmente moderado pela origem divina da mesma, pela sua natureza racional, ou pelo seu objecto específico. Ninguém pode mandar ou estabelecer, seja o que for, contrário à dignidade das pessoas e à lei natural.27

«O exercício da autoridade visa tornar manifesta uma justa hierarquia de valores, a fim de facilitar o exercício da liberdade e da responsabilidade de todos. Os superiores exerçam justiça distributiva com sabedoria, tendo em conta as necessidades e a contribuição de cada qual, e em vista da concórdia e da paz. Estarão atentos a que as regras e as disposições que tomam não induzam em tentação, opondo o interesse pessoal ao da comunidade.»28

Este é o quadro geral do pensamento judaico-cristão, onde curiosamente não aparece a corrupção.

26 Catecismo da Igreja Católica. (2003). (Pág. 479, § 2236). Coimbra: Gráfica de Coimbra Lda. – Librairia Editrice Vaticanna.

27 CIC. §2235. 28 CIC, §2236

Mas a doutrina cristã vai nos seus textos básicos mais longe: «Dai a todos o que é devido: a quem se deve a contribuição, a contribuição; a quem se deve o imposto, o imposto; a quem se deve o respeito, o respeito; a quem se deve a honra, a honra» (Rm 13,7).

Há, portanto, a moral da sujeição às autoridades legítimas. A Igreja Católica diz mesmo no que respeita aos deveres de cidadania: «O amor e o serviço à pátria derivam do dever de reconhecimento e da ordem da caridade.» 29

Os tratados vão mesmo mais longe que o catecismo católico: (…) «obedeçam às leis estabelecidas, mas pelo seu modo de vida superem as leis» (Epístola a Diogneto, Atenas, sec.II. 5,5,10:6,10), «para que possam ter uma vida calma e tranquila, com toda a piedade e dignidade» no dizer de Timóteo, companheiro de Paulo (1 Tim. 2,2).

Porém, a doutrina da Igreja Católica específica que «o cidadão está obrigado em consciência a não seguir as prescrições das autoridades civis, quando tais prescrições são contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho».

«Deve obedecer-se antes a Deus que aos homens» (Act. 5, 29). Diz a Constituição Pastoral “Gaudim et Spes” que «quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprime os cidadãos, estes não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro dos limites definidos pela lei natural e pelo Evangelho, defender os próprios direitos contra o abuso dessa autoridade» (GS 74, §5).

Mas, atenção: o Catecismo diz expressamente que uma das condições para «a resistência à opressão do poder político, não recorrerá legitimamente às armas

,

senão, nas seguintes condições: (…) (4) havendo esperança fundada de êxito; (5) e não sendo possível prever razoavelmente soluções melhores»30.

Finalmente, a última pergunta a fazer agora e que acabará respondida na nossa economia política da corrupção:

29 CIC, § 2239 30

Será, então, a corrupção «o pagamento do governo», do mesmo modo que o juro é o pagamento do capital e a renda o pagamento dos imóveis ou o salário o pagamento do trabalho? Será por causa dessa natureza de remuneração da actividade da gestão política e da administração do Estado que ela é tão generalizada e comum, sendo em alguns casos o fundamento da própria vontade política?

Ou antes, têm razão os críticos da Transparency International que consideram que a corrupção é o primeiro agente da pobreza, porque diminui o potencial de desenvolvimento económico e, desse modo, reduz as possibilidades de criação de emprego numa economia?

Deveremos como Ibn Khaldün31 temer o desenvolvimento económico que acarrecta inevitavelmente a corrupção e o despotismo, ou pelo contrário é a pobreza o maior sinal dessa mesma corrupção?

E, a conclusão será óbvia: ainda que não seja a corrupção o único factor que explica a pobreza dos Estados, ela é sem dúvida um elemento presente nos países mais pobres, pois ela própria é um agente de empobrecimento dos Estados. De algum modo, com as necessárias reservas à má utilização desta análise – à qual a ciência é, necessariamente, alheia – teremos que concluir pela não invalidação dos métodos econométricos e de sondagem que permitem a elaboração de rankings internacionais, que demonstram efectivamente que os países mais pobres são, provavelmente, os países mais corruptos.

31

Abdrrahman Ibn Khaldun nasceu em Túnis em 27 de Maio de 1332 e faleceu no Cairo em 1406, e é contemporâneo da dinastia dos Merinidas do Marrocos (1269-1420), dos Hafsidas Tunisianos (1228-1574), dos Nasrides de Granada (até 1492), dos Mamelucos do Egipto (1250-1517), do Império Mongol de Tamerlão (1331-1405), Ibn Khaldun encontrou o conquistador Mongol em 1401. O jovem Ibn Khaldun foi educado num meio essencialmente cultural, seu pai era um letrado e continuou os seus estudos até a sua morte, durante a peste de 1349, quando Ibn Khaldun tinha 18 anos, pode-se ver em Túnis, no bairro dos Andalus, sua casa e sua escola. Sua família possuía uma fazenda, no caminho entre Túnis e Sousse, a meio caminho entre as duas cidades. A peste (descrita por seu contemporâneo Boccae na Itália) matou os seus professores e uma boa parte de seus compatriotas, liberado dos laços familiares, ele se envolveu na vida política movediça do Maghreb de sua época.

Em 1353, Ibn Khaldun se encontra em Bougie e passa nove anos na corte dos Merinidas de Fez (1354-1363), mas aproveita seu tempo vago para completar a sua formação em companhia dos sábios de Fez, enquanto as intempéries políticas lhe valiam uma prisão de dois anos. Passa depois dois anos em Granada (1363-1365), em 1365, ocupava novamente um cargo político em Bougie, de 1372 a 1374, ele volta ao tribunal de Fez, durante este período, ele se encontra envolvido nas rivalidades políticas da África do Norte. Cansado das intrigas e do que ele chama em sua autobiografia página 143: ''As marés da política'', Ibn Khaldun se retira de cena durante oito anos, para se consagrar ao estudo e a pesquisa.

Ibn Khaldun teve mais que quatro anos de isolamento, de 1374 à 1378, passou-os no deserto, na Kal'at Ibn Salama, na Argélia, e lá em 1377, aos quarenta e cinco anos de idade, ele terminou, em cinco meses, a redacção da obra que eternizou o seu nome Al Mukaddima. Os dois anos restantes deste prazo de reflexão, passou-os em Túnis (1378-1382), para completar as necessárias referências bibliográficas, em 1382, a obra é terminada e foi dedicada ao Sultão hafsida. Aos cinqüenta anos de idade, sem deixar de ser o homem de acção que sempre foi, Ibn Khaldun passou a se dedicar ao ensino e a magistratura, o último quarto de século que restava de sua vida, passou-o no Cairo, onde morreu, perdeu a sua família num naufrágio, quando esta ia ao seu encontro no Cairo.

Como elemento decisivo da nossa análise, situemo-nos na sondagem que realizámos32 onde claramente os inquiridos afirmam que a corrupção aumentou nos últimos dez anos, exactamente na medida em que a OCDE também reconhece que aumentaram as diferenças entre ricos e pobres, situando Portugal ao lado dos EUA33, como um dos países onde essas assimetrias são mais notórias e mais se agravaram nos últimos anos da globalização.

2.1 Formulação das hipóteses de trabalho

Assim em termos de hipóteses de trabalho importa colocar em análise as seguintes questões:

A. Há uma resposta da economia política, para além da política, jurídica e económica, ao problema da corrupção. Esta questão não é independente daquela que antes havíamos formulado na nossa dissertação de Mestrado. Concluímos então e reforçamos agora, que existe uma relação entre a pobreza o nível de corrupção. Privamos isso por via do modelo gráfico da corrupção identificando o peso morto que cria numa economia, mas também pela relação logaritmica que estabelecemos entre produto interno bruto per capita (PIB per capita) e IPCrr da TI, no caso dos Países de Língua Oficial Portuguesa. B. A segunda questão que formulamos prende-se com a percepção da corrupção em

Portugal. Globalmente considera-se Portugal um país muito corrupto. Há duas questões principais que queremos responder: se a corrupção aumentou nos últimos tempos – e responderemos através de uma sondagem com a percepção dos inquiridos – e, por outro lado, se a corrupção em Portugal é sobretudo a dos grandes negócios ou se atinge globalmente a sociedade.

C. A terceira preocupação é a identificação do problema da transparência no actual quadro da crise internacional sistémica 2007/2009. Ainda é cedo para fazer o diagnóstico, mas é possível percepcionar os contornos e os limites das soluções keynesianas que os Estados adoptaram para combater a recessão global. E deixamos o alerta fundamental para que a transparência seja critério da nova ordem financeira mundial. Aqui há claramente uma preocupação de actualidade e de datar a nossa

32 Anexo II.

33 «La lutte contre la pauvreté passe par la lutte contre la corruption», affirme Fernando Lugo, investi, le 15 août,

président du Paraguay. «Nous avons hérité d'un pays dévasté où tout le tissu institutionnel est corrompu. Mon principal objectif est de baisser progressivement l'indice de corruption pour garantir l'institutionnalité de la République, pour que le Paraguay soit à nouveau crédible dans le monde et attire les investisseurs», ajoute le chef de l'Etat dans un entretien au Monde. (Lugo, F. (18.09.08). Paris: Le Monde)

investigação, mas sempre colocando a preocupação central da economia política da corrupção, hoje afinal a maior existência na ordem global.

No documento Tese Armando Santos (páginas 39-44)