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BASES TEÓRICAS DA PESQUISA

1.3 A questão da Polifonia nos enunciados do camelô

Somente por meio da oralidade, da conversação, é que se pode organizar a família, a rua, a pesquisa e o trabalho. Pois, “Uma cidade respira quando nela existem lugares de palavras,

pouco importa sua função oficial – o café da esquina, a praça do mercado, a fila de espera

nos correios, a banca do jornaleiro, o portão da escola na hora da saída.”. (CERTEAU,

1996, p. 338).

A banca do camelô também pode ser considerada um lugar essencialmente de palavras, um lugar onde se insinua toda a inventividade do “jogo da linguagem”. E esse “jogo” não é constituído apenas pelo locutor e pelo seu interlocutor, uma vez que se caracteriza por vozes polifônicas que derivam de relações dialógicas que ocorrem no cotidiano e se modificam devido à história, ao contexto social, ao tempo, e ao lugar onde ocorrem. Sobre essa relação polifônica trataremos a seguir.

1.3 A questão da Polifonia nos enunciados do camelô

Quando o homem inventou as palavras, talvez tenha ousado pensar que teria encontrado uma relação garantida e segura com elas. Os nomes seriam quase etiquetas para cada coisa. Mas dizer sobre algo é, na maioria das vezes, querer dizer mais do que a coisa é em si, porque, na interação com o ser de linguagem, os enunciados são sempre impregnados de outros sentidos, de outros valores e de outras vozes. E para Bakhtin/Volochinov (1995, p.113), “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia

sobre mim numa extremidade, na outra se apoia sobre meu interlocutor.”.

Nessa perspectiva, é fundamental a apropriação do pensamento de Mikhail Bakhtin a respeito da teoria do dialogismo com o objetivo de verificar a presença de vozes dialógicas nos enunciados dos vendedores ambulantes do centro comercial da cidade de São Luís/MA. Deixa-se claro de inicio, que esta não é uma tarefa fácil, considerando a vastidão das ideias desse teórico russo contidas em variados textos que são atribuídos a ele e aos integrantes do chamado Círculo de Bakhtin.

Dois conceitos bakhtinianos são fundamentais para aclarar o nosso entendimento, no sentido de identificar as vozes dialógicas presentes nos enunciados dos vendedores ambulantes do centro comercial de São Luís/MA.

61 entendimento do conceito de enunciação, conceito considerado imprescindível, pois é na forma de enunciações individuais e concretas que a linguagem se realiza e constitui o discurso, como atividade social. A enunciação conduz a diferentes enunciados e é o produto da interação social; logo, “(...) enuncia-se sempre para alguém de um determinado lugar ou

de uma determinada posição sócio-histórica." (BAKHTIN, 1995, p. 38).

Sendo a enunciação o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados, ela não existe fora de um contexto histórico, sócio-ideologicamente determinado, onde cada locutor/enunciador tem um papel bem definido e se dirige a um ou mais alocutários/enunciatários com papéis também muito bem definidos, tendo em vista que toda enunciação possui natureza dialógica e propõe uma reação, pois toda palavra procede de alguém e se dirige para alguém, servindo assim de expressão de um em relação ao outro. Desse modo, não só o interlocutor participa na enunciação, mas também todas as vozes sociais que antecedem o ato de fala. É este princípio que vai caracterizar o conceito de

polifonia de Bakhtin.

Os outros, para os quais o meu pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo o enunciado se elabora como para ir ao encontro dessa resposta. (BAKHTIN, 2003, p.320).

Nessa perspectiva, toda enunciação, para se realizar necessita de que dois elementos se articulem dialeticamente formando um todo que só se torna compreensível através da interação verbal. Estes elementos são, segundo Bakhtin/Volochinov, o tema (sentido) e a significação.

Este filósofo chama o sentido da enunciação completa de tema e diz que ele deve ser definido, único, individual e não reiterável. O tema então “(...) se apresenta como a

expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação." (BAKHTIN,

1995, p.128). O sentido estabelece a ligação entre os interlocutores, pois é através dos signos linguísticos que se dá a interação entre o locutor e o receptor, constituindo deste modo, o principal veículo na produção de sentido.

A significação, por sua vez, é o elemento abstrato da palavra, são os conceitos denotativos responsáveis pela compreensão entre os falantes, são os elementos reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos na enunciação e constituem seu aspecto técnico. Em suma:

62 adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema. (BAKHTIN, 1995, p.129).

E, ainda, de acordo com Bakhtin

A distinção entre tema e significação adquire particular clareza em conexão com o problema da compreensão [...]. Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo e deve conter já o germe de uma resposta. Somente a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolutivo. (BAKHTIN, 1995, p.131)

Assim,

Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender fazemos

corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. “[...] A

compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo (BAKHTIN, 1995, p.131- 132).

Desta compreensão, infere-se que o sentido de uma enunciação deve sempre ser percebido em uma situação social real dentro da interação verbal, pois a união dessas noções é dada pela relação dialética que compõe o conflito significação X tema.

Bakhtin vai buscar uma teoria externa à linguística para tratar do sujeito e de sua constituição, e assim elabora a teoria do dialogismo. Esta teoria juntamente com teoria da linguagem, que constitui a centralidade de sua obra, pode ser encontrada na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1995), cuja autoria é também atribuída a Volochinov. Não obstante, concebe a linguagem como sistema também abstrato (langue), Bakhtin/Volochinov privilegiam em seu estudo, a parole, ou seja, as manifestações de linguagem em situações sociais concretas, realizadas de forma coletiva com vistas a constituir um diálogo entre o “eu” e o “outro”.

Nesse sentido, é através do principio dialógico que as ideias de Bakhtin sobre o ser humano e a vida vão se caracterizar. O homem, em seu sentido genérico, tem como característica marcante a alteridade, uma vez que o outro é imprescindível para sua constituição. Tomando as palavras de Bakhtin, a vida é dialógica por natureza.

Assim, o conceito de dialogia tem como base o movimento constituído duplamente pela linguagem e pelo fenômeno de interação sócio-verbal, ou seja, “(...) na vida

agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência: assim levamos em conta o valor

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conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem (...)” (BAKHTIN, 1995, p.35-36).

Ao compreendermos os enunciados dos outros reagimos consoante às nossas ideologias, uma vez que o que realmente importa é a interação dos significados das palavras e seu conteúdo ideológico, do ponto de vista tanto enunciativo como do ponto de vista das condições de produção e da interação locutor/alocutário.

Assim Bakhtin considera o diálogo como as relações que incidem entre interlocutores, em uma dada situação histórica compartilhada socialmente em um determinado tempo e local especifico, que devido às variações do contexto vão ser sempre mutáveis. Para Bakhtin, a comunicação entre os indivíduos tem importância basilar, pois para ele, cada pessoa ocupa um lugar e um tempo determinados no mundo, e cada um é responsável ou “respondível” por suas atividades.

Sublinha-se que o dialogismo, para esse filósofo, é o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. Pois, o discurso não se constrói individualmente, mas sim entre, pelo menos, dois interlocutores também socialmente construídos. Desta forma, constroem-se diálogos entre discursos, ou seja, um discurso cultiva relação com outro(s) discurso(s).

Nesse sentido, o dialogismo é o constante diálogo entre os variados discursos que caracterizam uma sociedade e sua cultura, e a linguagem utilizada por essa sociedade é, portanto, necessariamente dialógica e complexa, justamente por nela, se imprimirem de forma histórica as relações dialógicas e os discursos.

Ao levar em consideração que a palavra é sempre perpassada pela palavra do outro e que o enunciador ao construir seu discurso, leva em conta o discurso do outro é que se torna interessante identificar as diferentes vozes presentes nos enunciados dos camelôs que interagem implícita ou explicitamente a fim de mostrar sua criatividade, assim como seu poder de persuasão.

A linguagem, nesse sentido, contribui para que o homem, através de seu discurso e mediante sua intenção, realize ações e possa atuar sobre o mundo. Assim, segundo Koch

[...] a interação social por intermédio da língua, caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade como ser dotado de razão e vontade, o homem, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade – tenta influir sobre o comportamento do outro e fazer com que compartilhe determinadas de suas opiniões. (KOCH, 1987, p.17)

64 seu interlocutor a comprar um produto, ele está utilizando o poder de sua linguagem para influenciar o comportamento do outro, tentando modificar ou reiterar a opinião do consumidor conforme este se apresenta diante do locutor. Esta é a forma concreta de a língua se manifestar através da fala, se materializando, transformando-se em atividade interativa. É esta a característica fundamental que advém da relação comerciante informal versus consumidor.

Sempre voltado à interatividade, o discurso é marcado pelo binômio EU-VOCÊ da troca verbal. A evidência maior desta característica está centrada na interação oral, ou seja, na conversação, em que dois interlocutores coordenam suas enunciações e agem em função da enunciação do outro e da atitude imediata causada pelo efeito de suas palavras sobre o outro.

A partir dessa compreensão, pode-se inferir que o camelô (locutário) para persuadir o cliente (alocutário) tem que falar pela voz do outro, por exemplo: quando ele diz:

“Você que fez chapinha, compre logo sua sombrinha”, ele diz o que o outro (o alocutário)

pensa; o enunciador coletivo: “Eu fiz chapinha, eu não posso molhar o cabelo, eu gastei

tempo e dinheiro, portanto, eu preciso comprar uma sombrinha.” Trata-se de polifonia plural.

Ao dizer: “mulher bonita não paga, mas também não leva”, que é um clichê, ele se apropria para também dizer, de forma indireta, o que todo mundo de um modo geral, também acha. Além do que, por detrás do que ele diz tem uma sedução. São duas vozes que ecoam ao mesmo tempo. Ele utiliza a forma indireta para dizer que a cliente (sexo feminino) é bonita, mas mesmo assim, tem que pagar para poder possuir o produto, ou seja, ele se neutraliza e diz com a voz do povo. Com isso ele se resguarda de ouvir um desaforo ou pela “cantada” ou pela exigência do dinheiro. Pode-se perceber também o outro machista que trata a mulher como objeto também de consumo.

Assim, o discurso também pode ocorrer de maneira introspectiva, interagindo com o próprio “eu” que pensa e para que, em um processo persuasivo, o interlocutor consiga seu objetivo, é necessário que ele passe, primeiramente pela introspecção, para, posteriormente, exteriorizar o discurso preciso, já manipulado, sempre considerando o contexto em que está sendo dito.

De acordo com Bakhtin:

A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação. (BAKHTIN, 1995, p.125)

65 Ao se pensar nos comerciantes informais, transfere-se a ideia do linguista para a prática, pois é através do discurso manipulado, anteriormente pensado, que eles conseguem alcançar sua finalidade de convencer o interlocutor.

Nessa direção, percebe-se que o discurso está profundamente entrelaçado em nossas relações sociais, buscando atingir o outro ou a nós mesmos através do intradiscurso. Porém, ao tentar atingir o comportamento ou a influenciar a intenção do outro, o comerciante informa, através de seu diálogo ou de seu discurso com o interlocutor, tenta persuadi-lo a consumir os produtos que em sua banca estão sobrepostos. A publicidade feita por estes comerciantes converge em sua própria fala e no contato direto com o consumidor que, através de uma linguagem bastante informal, um diálogo é construído e, assim, a possibilidade de persuasão do locutor sobre o interlocutor pode ser verificada.

Para a Análise do Discurso de linha francesa, o discurso é o lugar onde a fala expressa a particularidade de um sujeito que “divide o espaço discursivo com o outro”, o que sugere “a relação de um sistema significante com sua exterioridade” (ORLANDI, 1994, p. 53- 54). Pela perspectiva discursiva, a linguagem espelha a sociedade percorrendo pela história, pelos contextos e pelas condições de produção. Portanto, o sujeito social não é senhor do seu dizer por que a subjetividade relativiza-se no espaço entre o Eu e o Tu e integra o Outro como constitutivo do sujeito.

Nessa direção sinaliza Gregolin (2007, p.1): “Sendo a prática discursiva, ao

mesmo tempo, produto de linguagem e processo histórico, para poder apreender o seu funcionamento é necessário analisar as determinações que estão na base da função

enunciativa”.

Um ato de fala, mesmo que tenha havido outros aparentemente idênticos, particulariza-se, então, por ser este um universo onde o que é dito silencia os espaços que o determinaram. A regularidade que há entre os atos de fala dos camelôs que os diferem dos atos de fala dos pregoeiros reflete o que há em cada um desse particular definidor das

condições de produção que nelas se manifestam.

E o discurso é a expressão da particularidade, intermediador entre a individualidade subjetiva e o grupo social a que o sujeito pertence, marcado pela ideologia que “é „uma representação‟ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1996, p. 126). Essa carga ideológica determina uma intenção que o sujeito pensa ser dele. Nesse sentido, a transparência da linguagem é ideológica; assim como é ideologia toda a necessidade de argumentação para atingir um objetivo que também é

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“A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” (ALTHUSSER, 1996, p. 133).

Essa interpelação é “(...) duplamente especular” porque também “(...) garante seu

funcionamento”. (ALTHUSSER, 1996, p.138). Interpelado, o sujeito se reconhece na

particularidade; tem garantia de fazer parte dela; trabalha como bom-sujeito pela ideologia, reconhecendo que as coisas são realmente assim e não de outro modo.

Os atos de fala do camelô refletem o que no dizer de cada um se reconheça o dizer de todos por alguma marca que se repete na denúncia de que há ali um discurso. Há então um contrato linguístico-ideológico-social e discursivo com o qual alguém que é camelô se compromete e, mesmo que tente esconder, não consegue porque o discurso deixa marcas de si, mesmo quando o que há é o que Pêcheux (1990) chamou de esquecimento, aquilo que leva o sujeito a crer que está dizendo algo original.

Levando-se em consideração a possibilidade de persuasão contida na fala do camelô, e tendo em vista que todo discurso se situa no campo do conflito, da defesa de pontos de vista, e, consequentemente, no âmbito da argumentação, é que se recorre a Ducrot e Anscombre (1994). Tomando como base a afirmação desses autores quando asseveram que a argumentação constitui um componente intrínseco à linguagem, inscrito na própria língua, é que não se pode conceber a ideia de estudar qualquer discurso sem recorrer à questão da argumentação em seus variados níveis e aspectos.

Desse modo, necessário se faz nesse momento tratar da argumentação, uma vez que ela constitui o conceito central desta investigação na medida em que oferece elementos para construir um perfil discursivo da fala dos camelôs. Inicia-se este subitem fazendo um percurso no qual passando pela Retórica Clássica aristotélica, pela Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, pela Teoria dos Atos de Fala de John Austin e Searle, e as máximas conversacionais de Grice, chega-se à Teoria da Argumentação na Língua de Oswald Ducrot.

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