Figura 06 - Adaptação do desenho dos pregoeiros (por Elvas Ribeiro).
Fonte: Bogéa e Vieira (1999).
4.2
O
GÊNERO PREGÃO PÓS-
MODERNOA fala do camelô que constiui o gênero, denominado nesta tese de pregão pós-
moderno, não canta a totalidade, mas a todidade dos produtos que vende. Um gênero do
desencaixe entre tempo e espaço que resultou no esvaziamento da coisa pela diluição dos traços identitários, que constrói o nada no tudo, que se mistura na coisa diluída entre os produtos misturados da banca do camelô.
O gênero pós-moderno é o grito pós-tradicional na relação tempo-espaço diluída. O tempo desse grito é vazio e faz parte do burburinho das ruas onde muitas vozes se misturam no vozerio estressante que se dá ao esquecimento. A exterioridade marcada neste gênero é constituída do discurso da aceleração, do imediatismo momentâneo próprio da utilidade
178 prática, onde não conta o privilégio do local nem da história. O auditório seria quase indiferente, não fossem as manobras retóricas apelativas de uma atividade criada argumentativamente para acordar um passante quase ensurdecido pela rapidez das horas. As
fichas simbólicas, o dinheiro, são priorizados no processo de venda, cujo destino do produto
pouco interessa ao vendedor depois de realizada a venda.
O gênero pregão pós-moderno é uma consequência do projeto desumanizante que começou com a modernidade e se manifesta na linguagem do homem pós-moderno, cuja história está fragmentada no tempo e no espaço vazio. Na banca globalizada do pregoeiro pós- moderno não há identidade permanente e estável, a vida contemplativa está substituída pela vida ativa e o retórico redescoberto encontra-se sofisticado e refinado para que ele possa consquistar suas intenções persuasivas e criar a utilidade do nada.
São as seguintes as marcas linguístico-argumentativo-discursivas próprias dos
pregões da pós-modernidade: estranhamentos linguísticos no plano da palavra, do som, da
construção e do pensamento, com ênfase às metáforas e metonímias, os recursos de presença, o conhecimento do auditório, o senso comum, somando-se a esses os construtores de espaço, os esquemas de percurso e os esquemas de imagem, tais como foram explicados no item anterior. Refazendo a análise para levantar as características próprias do pregão pós-moderno:
“Com esse colar sua mãe vai ficar uma gata.”
Metáfora: mãe/gata – Desconstrução da imagem cultural que envolve o sentido de mãe. Inversão sintática - desconstruindo: Sua mãe vai ficar uma gata com esse colar.
Desconstruindo a metáfora: Sua mãe vai ficar muito bonita/sensual com esse colar.
Chegando ao enunciado desprovido das características do gênero pregão pós-
moderno tem-se: “Sua mãe vai ficar muito bonita com esse colar.” Percebe-se que esta
elocução perdeu todo o poder persuasivo-argumentativo, próprio deste gênero.
As consequências em “Com esse colar sua mãe vai ficar uma gata” não acontecem somente no plano linguístico. O efeito de sentido se altera. A utilização da metáfora gata atualiza a imagem da mãe: uma mulher que precisa ser atual. Se ela precisa ser atual e se o colar ajuda para essa conquista, está criada a necessidade do colar. Com isso, há a construção por spaces builders que provocam novos espaços mentais como beleza, elegância, sensualidade, atividade geralmente desvinculados da imagem de mãe. A partir desses espaços mentais é gerado um novo esquema de percurso para o sentido de mãe que se desloca na cultura para um outro lugar, pós-tradicional. Por esse deslocamento é construído um outro esquema de imagem que atualiza o produto entre o pregoeiro pós-moderno e o auditório,
179 recontextualizando a imagem da mãe, pela alteração do lugar da mulher na cultura.
Ressalta-se, ainda, que o pathos é evocado no auditório pela imagem da mãe, recuperada da tradição como o único amor incondicional da humanidade, ou seja, aquela que incondicionalmente merece um presente, muito mais ainda, um presente que possa ajudá-la a estar atualizada com a realidade de hoje, tal qual a palavra gata sugere, a partir da condição do colar.
Finalmente, levando-se em consideração que os pregões pós-modernos estão ligados à oralidade, saídos da boca do povo eles chegam carregados de senso comum e constroem nesses espaços muito da ideologia que se recebe do legado. Quando o pregoeiro
pós-moderno diz “Tem promoção e tem pramocinha” a palavra promoção pela qual se ouve pro moção e que sugere pra mocinha não acumula aí apenas uma questão de idade, mas de
gênero, na cultura existe o que é próprio para o rapaz e o que é próprio para a moça. Essa integração que os jogos linguístico-argumentativos sugerem, cria também a integração entre os espaços mentais constituídos pelos esquemas de imagem alimentados pelo ethos e pelo
pathos para a conquista persuasiva do auditório.
Os gêneros vão se transmudando gerando outros. Os camelôs, pregoeiros pós-
modernos não poderiam dizer do mesmo modo dos pregoeiros de outrora -os tradicionais -
porque mudou o contexto, mudou o cenário, mudou o repertório, as coisas apregoadas remanescentes como tradição se acumularam, se multiplicaram na condição do nada destes tempos. Mudou o gênero porque o homem mudou, antes ele era mais contemplativo. Seu mundo era sua ilha e uma coisa carregava seu universo. Conseguia colocar a imensidão de um lugar numa caixa de sorvete. Hoje enche uma banca de produtos que não satisfazem nem seus próprios interessses. A consequência do projeto da modernidade banalizou os ideais humanos escravizados na condição de mercadoria.
180