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Marcas linguístico-estilísticas dos pregões pós-modernos

2.1 O CONTEXTO DO PREGOEIRO TRADICIONAL

REPETIÇÃO DA COISA

3.2.3 Marcas linguístico-estilísticas dos pregões pós-modernos

O pregoeiro da pós-modernidade, num contexto diferente, faz um trabalho com a linguagem pelo qual a argumentação exige muito mais manobras linguísticas do que recursos descritivos, repetição, inversão, tal como se pode localizar nos pregões tradicionais Se os

pregões tradicionais não exigiam dos pregoeiros tanto trabalho com a linguagem, os pregões pós-modernos exigem. E o fazem porque não há a coisa apregoada neste contexto, há sim

uma necessidade criada pela retórica, um processo de invenção da utilidade daquilo que, sem a substância do lugar, organiza-se e emerge do desencaixe entre tempo e espaço.

Quando o pregoeiro tradicional diz: “carvoeeeeeeeeeeeeeiro!”,

“verdureeeeeeeeeeeeeiro!”,“camarueee eeeeeeeeeeeiro!” O sufixo EIRO que se refere a quem pratica a ação, muitas vezes é só o que é ouvido no canto do pregoeiro, e apenas por esse EIRO, o auditório identifica se a coisa apregoada é a verdura, o carvão ou o camarão, em decorrência até do horário de sua passagem.

157 Foto 15 – Variedade de produtos vendidos na Rua Grande (2010).

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

O pregoeiro pós-moderno preenche com a linguagem o lugar do tempo e do espaço esvaziados pela globalização. Se ele não vende a coisa apregoada, a qual contém a totalidade ou a universalidade e se a relação do objeto vendido não é de identidade partilhada com o consumidor, se o que ele expõe na sua banca é tudo, uma mistura - a todidade - o que o

pregoeiro pós-moderno vende é o “nada”, para o qual ele tem que se valer da retórica para

inventar sua utilidade.

O motivo para realização da venda do pregoeiro pós-moderno é o interesse que não está mais na “coisa”, mas na venda da mercadoria. Muitas vezes a fala do pregoeiro dos dias atuais se concentra somente na ação de vender. Ou seja, o motivo da venda está fora da “coisa”, porque a “coisa” está corrompida pelo interesse do camelô. A mercadoria assume uma visão utilitária que está fora do eixo da identidade. Do lado do pregoeiro tradicional existe a questão da identidade e do lado do pregoeiro pós-moderno existe a questão da utilidade.

O pregoeiro da pós-modernidade faz uso dos estranhamentos não mais para presentificar a coisa apregoada, à semelhança do pregoeiro tradicional, mas para realizar linguisticamente uma ação: a venda da mercadoria. O pregão pós-moderno é um exemplo dessa capacidade que o falante (camelô) tem trabalhado para suprir seus desafios no mundo

158 onde a configuração espacial interfere sobremaneira sobre esses atos.

Foto 16 – Consumidores à procura de sombrinha na Rua Grande. (2010).

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Chapinha não é mais uma chapa pequena, sombrinha não é uma pequena sombra. Por sua vez, em enroladinha, o INHA se trata de um intensificador. O jogo sonoro se reforça no ritmo que também é similar e chega ao ápice tônico na sílaba PI de chapinha, BRI de sombrinha e DI de enroladinha. Percebe-se, ainda, que esse ápice tônico se constitui da vogal I que sugere apito, zumbido, agudez de uma sirene que indica o risco ou alguma emergência. Não basta identificar nesta fala uma rima, mas, pensar nos efeitos de sentido desse jogo estilístico e procurar entender porque tais efeitos e não outros a partir de sua constituição.

As questões linguístico-estilísticas chamam atenção para outras questões da emergência que provocam a sensação de urgência no auditório. Enquanto o ápice tônico “apita” na letra I de chapInha, de sombrInha e enroladInha, outro recurso dessa mesma urgência aparece cumprindo também seu papel no paralelismo do ritmo. Estamos nos referindo ao advérbio de tempo LOGO, em “... compre logo sua sombrinha”. Essa ideia indica a ideia da imediatez, da urgência, da emergência criada pela linguagem para evitar o risco de ficar enroladinha. A linguagem, nesse caso, oferece sua mágica capacidade de integrar. Enroladinha é uma imagem comum que diz respeito a cabelos crespos, e uma metáfora de

Na elocução, Você que fez chapinha, compre logo sua sombrinha para não ficar enroladinha, chapinha rima com sombrinha e com enroladinha. Esse efeito, que nos três casos é um efeito sonoro que gera um paralelismo na elocução, de certa forma, intriga o ouvinte porque o sufixo “INHA”, que normalmente traria a ideia de diminutivo, chega ao enunciado sem ela. Chapinha não é mais uma chapa pequena, sombrinha não é uma pequena sombra.

159 situação problemática, embaraçosa. Num enunciado relativamente curto uma palavra sugere, pelo menos, três tipos de problemas que a compra da sombrinha pode evitar: o primeiro diz respeito à beleza do cabelo. É senso-comum, é cultural dizer que cabelo bonito é cabelo liso. Não entraremos nas causas e determinações históricas desse discurso.

Quem faz chapinha o faz, no mínimo, para parecer diferente do que é. Ou seja, quem faz chapinha está com o cabelo liso, mas, na verdade, tem cabelo crespo, enrolado, pixaim. Uma das condições de garantir a chapinha é manter os cabelos secos. Molhando, o cabelo deixa de ficar liso e volta a sua condição natural. Primeira consequência constrangedora: voltar a parecer no modo como não gostaria de ser. Segundo constrangimento: a chapinha tem um preço para ser feito. Perdendo seu efeito há um prejuízo. Terceiro constrangimento: fazer chapinha exige tempo: perder o seu efeito é perder tempo.

Na verdade, todo trabalho realizado no plano linguístico-estilístico gira em torno da palavra chapinha. Tanto que é essa palavra que vem no início da elocução evocando o auditório que faz uso da chapinha. Esse auditório não pode ficar “enroladinho” porque precisa garantir a beleza dos cabelos pelo discurso da necessidade do cabelo liso e porque não pode ter prejuízo nem de dinheiro, nem de tempo. Então o mesmo auditório precisa de uma sombrinha, cuja utilidade o pregoeiro da pós-modernidade cria linguística e argumentativamente por um outro caminho discursivo que não é a iminência da chuva, mas, a garantia da chapinha. Ao invés de o pregoeiro pós-moderno dizer “Compre sombrinha porque vai chover” ele diz “Você que fez chapinha compre logo sua sombrinha para não ficar enroladinha”.

Supondo que a sombrinha fosse uma coisa apregoada aos moldes do pregoeiro tradicional, supondo também que essa coisa apregoada fizesse parte da vida da ilha de São Luís, com certeza, ele apregoaria a sombrinha de outra forma, a partir de outro gênero determinado por outro contexto. Talvez algo como: “Sombriiiiiiiiiiiiiiiinha!”, sombrinha vermelha, D. Teresa, Sombrinha branca D. Bianca. Hoje vai chover! Olha a sombrinha freguesa!”. Mas não. O contexto é outro. A maioria das freguesas nem ficam mais o dia inteiro em casa. A sombrinha não faz parte da vida diária do lugar. O pregão não é mais tradicional. É pós-moderno.

Abaixo, o quadro é demonstrativo dos recursos argumentativos identificados nesses enunciados, os quais incluem além dos estranhamentos, o recurso de presença do objeto, a mercadoria, o conhecimento do auditório e o senso comum.

160 Quadro 5: Listagem dos pregões que contêm recurso de presença, conhecimento do auditório

RECURSO DE PRESENÇA CONHECIMENTO DO