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A questão da “rivalidade feminina”

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2.3 Bullying e Questões de Gênero

2.3.3 A questão da “rivalidade feminina”

A rivalidade feminina é um tema muito discutido dentro dos movimentos feministas, mas com bibliografia quase inexistente no âmbito acadêmico. Essa rivalidade nos é passada como intrínseca às mulheres, algo que sempre existiu em toda sociedade onde há mais de uma mulher e que sempre será assim. O processo de desconstrução desse mito também é uma grande luta do movimento feminista. Entendendo que esse processo se perpetua como uma condição para que se mantenha uma ordem social de dominação masculina (já que para tal não é interessante que as mulheres tenham consciência de sua condição de submissão), percebemos que ela está completamente enraizada em todas as esferas da vida das mulheres.

É muito comum ver mulheres reproduzindo a ideia de que “é melhor ser amiga de homem” ou “só existe amizade verdadeira entre homens, mulheres são falsas”. Na verdade, não existe nenhuma condição biológica que impeça nós mulheres de termos relações de fraternidade como enxergamos nos homens, o que mostra que essa situação nada mais é do que um constructo social, incitado diariamente por diversos meios de

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comunicação, a exemplo das novelas, dos livros e revistas, dos filmes de romance, dos contos de fadas.

Clara Averbuck, escritora paulista, feminista e uma das criadoras do site Lugar de Mulher, que com uma leitura leve e acessível retrata as questões dos feminismos na sociedade atual, dando conta de Brasil e mundo, escreveu13 que:

Eu não queria ser “um dos caras”. Queria ser tratada com o respeito que eles tinham entre si, pelas idéias uns dos outros, pelas opiniões uns dos outros, e não com o desprezo/condescendência/medo/respeito-distante que eles nutriam por boa parte das garotas.

(quando dizia) “Me trate como um dos caras” era isso. Era um anseio por ser tratada como um ser humano, não como “mulher” (CLARA AVERBUCK 2015, s/p).

A competição está arraigada e legitimada nas mais diversas esferas, quase sempre tendo como prêmio a atenção de um homem. A ideia é sermos “a diferente”, ultrapassarmos aquele ponto onde todas as mulheres são colocadas num mesmo cesto de pessoas acríticas e fúteis, alguém que não merece muita atenção ou o mínimo de respeito, “a outra”, como se fosse algo intrínseco ao gênero feminino ser assim. Para superarmos isso precisaríamos nos manter, de alguma maneira, mais parecida com os homens e assim podermos apontar para elas, para essas “outras”, e dizermos “viu como eu sou diferente? ”.

bell hooks14 (2000), feminista negra e acadêmica estadunidense, coloca que

That foundation rested on our critique of what we then called "the enemy within," referring to our internalized sexism. We all knew firsthand that we had been socialized as females by patriarchal thinking to see ourselves as inferior to men, to see ourselves as always and only in competition with one another for patriarchal approval, to look upon each other with jealousy, fear, and hatred. Sexist thinking made us judge each other without compassion and punish one another harshly. Feminist thinking helped us unlearn female self- hatred. It enabled us to break free of the hold patriarchal thinking had on our consciousness (HOOKS, 2000, p. 14).

13 Disponível em: http://lugardemulher.com.br/um-dos-caras/

14 O nome da autora está escrito em letras minúsculas respeitando a tradição que a própria cunhou. Segundo ela “O mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”, rejeitando a magnitude que podem ter nomes e títulos.

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A ideia é que, cada vez mais distante de outras mulheres, aprendamos também a odiar nós mesmas. Mas é provável que em algum momento consigamos nos reconhecer tão semelhante a essa mulher que repulsamos. Como um bom ciclo (de insegurança) que se alimenta através de uma estrutura muito bem consolidada, a única maneira de quebrá-lo é de dentro para fora. Quando conseguimos parar de nos enxergar como uma categoria inferior de ser humano, quando aceitamos que as outras mulheres não são nossas inimigas e que podem sim ser nossas companheiras, surge uma relação tão forte que nem a mais sólida das estruturas ousa quebrar.

Sororidade é o termo utilizado para designar a fraternidade entre as mulheres. Penkala (2014) coloca que o termo

tem origem no período pós Medieval, na palavra sorōritās (do Latim Renascentista) e do termo em latim para irmã, soror. Nos EUA, muitas freiras ainda usam soror para se designarem, com o mesmo sentido que se usa irmã, no português, como sinônimo de freira. Também nos EUA, as organizações femininas de universitárias são chamadas sorority como sinônimo de sisterhood, termos para os quais o português é neutro (irmandade) ou masculino (fraternidade) (PENKALA, 2014, p. 225).

A autora acredita que

A sororidade é uma relação pactual de irmandade entre mulheres instituída política e eticamente, como um corpo unido com um propósito em comum, de onde advém práticas que propõe, preservam e estimulam mútua proteção, solidariedade e a defesa de direitos de classe (da “classe feminina”) a partir de vivências no contexto patriarcal (PENKALA, 2014, p. 225).

Sororidade é uma palavra que não existia no Brasil, porém a partir das traduções feitas da literatura feminista inglesa, começou a se popularizar dentro do movimento de mulheres e foi integrada a nossa língua com a definição acima citada. A partir de então, ela começou a ganhar força sendo entendida como uma atitude: as mulheres precisam tomar consciência da competição a que são induzidas estruturalmente, sair desse lugar passivo e cultivar a sororidade com as outras.

Hooks (2000), diante de uma postura de resistência e incentivo, afirma que:

We continue the work of bonding across race and class. We continue to put in place the anti-sexist thinking and practice which affirms the reality that females can achieve self-actualization and success without dominating one

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another. And we have the good fortune to know everyday of our lives that sisterhood is concretely possible, that sisterhood is still powerful (HOOKS, 2000, p. 17 e 18).

É essa ideia de sororidade/irmandade (sisterhood), com um posicionamento crítico sobre as diferentes condições das diferentes mulheres, sobre apoio e sobre o poder que conseguimos construir lutando juntas, lado a lado e não umas contra as outras, que faz surgir outro conceito que vem sendo bastante evidenciado nos últimos tempos: o empoderamento.

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