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Onde os Feminismos se Encaixam

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2.3 Bullying e Questões de Gênero

2.3.2 Onde os Feminismos se Encaixam

No capítulo concernente à metodologia deste trabalho, explicamos que na Roda de Diálogo referente à temática de gênero, decidimos estruturar a discussão a partir do tópico “Rivalidade Feminina”. Entendemos que há diversos caminhos para se discutir questões ligadas ao gênero, tais como estética, orientação sexual, mercado de trabalho, igualdade salarial, maternidade, raça e classe social, entre tantas outras. Escolhemos trazer para a roda o tema da rivalidade feminina por achar que ele seria um gancho sobre as questões de gênero embutidas no bullying por nós discutido naquele espaço.

Afinal, entendemos que muitos dos problemas entre mulheres se dão a partir dessa rivalidade que é incitada em nossas vidas desde a mais tenra idade. Porém, antes

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de mergulharmos um pouco nesse assunto, faz-se conveniente entendermos as origens de alguns tópicos que tem implicações diretas na questão da violência entre pares com recorte de gênero evidenciado.

É sabido que o Movimento Feminista, conhecido por reivindicar a emancipação de mulheres e, em suas origens, o direito ao voto pelas mesmas, é responsável por um louvável legado de conquista de direitos. Antes de seu surgimento estava reservado (predestinado, para sermos justas) às mulheres o papel de dona de casa, serva do marido e da família, alguém sem voz, sem querer, sem direito nem ao próprio corpo ou, como coloca Simone de Beauvoir em seu livro homônimo de 1949, o papel de “segundo sexo”. Seu marido, antes de companheiro, era seu senhor, seu dono, seu capitão e ela devia a ele nada menos que obediência.

O Feminismo chega para balançar essa estrutura, tendo como porta-vozes mulheres fortes e corajosas que não mediram esforço para gritar palavras de ordem sobre a necessidade de serem vistas e levadas a sério numa sociedade que, até então, apenas invisibilizava-as. Esse discurso feminista trazia intrínseco a si a ideia de que mulheres, assim como os homens, são sujeitos de direito, incitando o debate acerca da construção social a que sempre estivemos submetidas e submersas.

O que Descarries (2000) chama de “Feminismo Igualitário” é uma corrente moderada e acreditava, em meados de 1960, que a possível solução para o problema da desigualdade de gênero seria aniquilar toda e qualquer forma de discriminação sofrida pelas mulheres

na esfera da educação, do trabalho e da política. Nesta perspectiva, a palavra de ordem era modificar a socialização e a educação das meninas, reformular as tarefas domésticas na família e favorecer o acesso das mulheres aos locais de saber e de poder econômico ou político.

Tratava-se, em suma, de agir em função de uma transformação das mentalidades e das práticas familiares e públicas – e não necessariamente os papéis – a fim de que mulheres e homens pudessem realizar seu potencial como indivíduos livres e autônomos (DESCARRIES, 2000, p.15 e 16).

A autora coloca ainda que:

Parte integrante de um movimento social de maior envergadura, cujos objetivos partilham, os Estudos Feministas contribuem assim à renovação dos saberes, à instauração da incerteza face à pretensa objetividade das ciências instituídas, à transformação das práticas e à formulação de uma visão outra da sociedade. Nesta perspectiva, ao menos no Ocidentes, os Estudos Feministas fizeram ser aceita a ideia de que não era mais possível pensar e

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agir no mundo como antes, isto é, "de maneira que detrás da categoria abstrata do humano universal apague-se sistematicamente, exclua-se ou recuse-se as experiências da metade ou mesmo da maioria do gênero humano.". (DESCARRIES, 2000, p. 11).

É importante salientar aqui que atualmente a questão sobre os feminismos (no plural para garantir que as diversas correntes sejam respeitadas) se modificou bastante com o passar dos anos. Atualmente, uma abordagem que ganha destaque pela sua abrangência responsável é o feminismo interseccional, o qual observa as características e situações de grupos de mulheres baseadas em suas realidades a partir de variáveis como cor, classe, etnia, idade, cis/transgênera.

Independe das grandes diferenças que há entre as mais diversas correntes feministas, pode-se dizer que o maior objetivo em comum de praticamente todas elas, é a destruição do sistema patriarcal em que estamos inseridas e a formação de uma estrutura que vise à equidade de gêneros em nossa sociedade. Até isso acontecer, ainda estamos sob uma evidente relação de poder onde o sexo masculino promove uma dominação sobre o feminino. A violência física deixa bastante evidente o quanto essa dominação acontece, porém, a violência psicológica/simbólica é que nos dá um panorama do quão naturalizada está essa dominação atualmente.

Entendemos por violência simbólica

essa coerção que se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos tem em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro, etc.) resultam da incorporação de classificações assim naturalizadas de que seu ser social é produto (BOURDIEU, 2003, p. 47).

Como colocado anteriormente, quando não se é homem, cisgênero, heterossexual, branco e de classe média, tem-se muitos problemas para viver na atual ordem vigente. É essa figura que detém o poder sob todas as outras minorias historicamente oprimidas e que, de alguma maneira, continua sendo legitimada ao “punir” o “ser desviante”.

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A questão da naturalização se dá de modo tão sutil que muitas vezes, as mulheres que sofrem violência não entendem a própria condição de vítima. Ultimamente muito se discute sobre uma “cultura do estupro”, termo que

foi cunhado por feministas estadunidenses na década de 1960 e tem sido muito utilizado no Brasil pela militância, que critica a culpabilização de mulheres estupradas pela violência sexual a partir de seu comportamento com acusações do tipo “ela é vulgar mesmo”, “ela não se dá ao respeito” ou, ainda, “ela estava pedindo” (ROST ; VIEIRA, 2015, p. 267).

No admirável texto de Nádia Lapa para a Carta Capital12, ela faz uma crítica ao silenciamento ocorrido após um famoso episódio de abuso em plena televisão brasileira. Citando Lisa Jervis, ela assinala que:

estou falando de uma construção cultural nojenta, destrutiva, que encoraja as mulheres a culparem a vítima, a se odiarem, a se culparem, a se responsabilizarem pelo comportamento criminoso dos outros, a temerem seus próprios desejos e a desconfiarem dos seus próprios instintos (LISA JERVIS 2013, s/p).

O ativismo feminista é responsável pela conquista e garantia de muitos direitos que as mulheres têm hoje, como também tem sua parcela de autoria pela mudança de leis que dêem mais visibilidade às questões de gênero. Porém, a cultura do estupro, assim como o machismo (por serem co-relacionados) é um problema estrutural que aparentemente ainda está longe de ser resolvido.

Cabe aqui esclarecer que a luta não é contra o ser individual, mesmo que ele seja a personificação de todo esse problema social. Porém, compreendendo-o também como um problema estrutural, entendemos que o ataque deve ser voltado à estrutura e não ao sujeito. Esse homem pode ser, em certa medida, uma vítima de toda essa situação. Quando um homem não pode chorar, expressar seus sentimentos, sentir frio, ter trejeitos diferentes do que é exigido socialmente a partir do ideal de “macho” ou se ele fizer qualquer coisa que o distancie desse ideal/assemelhe-o ao ideal de “fêmea”, quando ele é incitado desde muito novo à sexualização e à desvalorização de meninas que

12 Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-cultura-do-estupro-gritando-e-ninguem- ouve

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transpassem o ideal de “mocinha”, quando ele tem roubado de si um ideal de sexo saudável e consensual (como tem que ser) em prol de um forte estimulo (em filmes, jogos, conversas homens mais velhos) ao sexo violento e/ou não consentido, ele também acaba sendo alvo dessa cultura misógina e dessa estrutura machista.

Seria também muito ingênuo de nossa parte acreditar que numa sociedade construída dessa maneira, todas as mulheres tomariam consciência de suas opressões de maneira a levantarem-se juntas e no mesmo momento para lutar contra elas. Muitas mulheres não percebem os grilhões que arrastam, não têm consciência das pressões que sofrem diariamente para serem bonitas (num padrão eurocêntrico de beleza e magras), subservientes, dóceis, mães em primeiro lugar e tudo aquilo necessário para a manutenção dessa ordem patriarcal em que vivemos.

É fato que muitas também reproduzam o machismo e a misoginia, existe toda uma base que molda e mina a relação entre mulheres desde a mais tenra idade. Fomos ensinadas a competir pela atenção dos meninos, de maneira que tudo gire ao redor deles mesmo quando ainda somos crianças. É necessária uma grande quebra e reestruturação nesse pensamento para que possamos construir uma educação (formal e informal) livre de toda essa misoginia.

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