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PARTE I PANORAMA ATUAL DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

2. Direito ao planejamento familiar como direito fundamental

2.2. A questão do anonimato dos doadores na reprodução heteróloga

A inseminação artificial heteróloga pressupõe que um terceiro forneça material genético para a criação de um embrião, seja esse material esperma ou óvulo. Como parte do processo de reprodução humana assistida heteróloga está ainda a cessão temporária de útero.

O anonimato dos doadores de material genético é um ponto fundamental na Bioética. De um lado, há o direito da preservação da identidade do doador e, de outro, o direito à identidade genética, princípio fundamental que se enquadra nos preceitos da dignidade humana. Este tema, especificamente, não é objeto do presente trabalho, contudo, é importante destacar que ainda que o projeto parental seja monoparental, o bebê, ao nascer com vida, é sujeito de direitos e deveres. E entre seus direitos está, sim, o da identidade genética ainda que o reconhecimento de seu genitor biológico não implique em deveres alimentícios ou direitos sucessórios para este último.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), que tem Resoluções sobre a reprodução humana assistida desde 1992 afirma que os doadores de material genético não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. O entendimento se mantém na última Resolução, 2.168 de 2017. Para os casos em que é preciso o histórico médico do doador do material genético, o CFM já estabelece às clínicas a obrigação de manterem um registro permanente de dados clínicos gerais, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.

Segundo Eduardo de Oliveira Leite, a doação das forças genéticas é marcada por aspectos ao mesmo tempo positivos - destinada a contribuir com o projeto parental de alguém -, como negativos - doador não tem nenhum projeto parental pessoal. A doação de material genético é, portanto, abandono a outrem, sem arrependimento, nem possibilidade de retorno. “Esta consideração é o fundamento da exclusão do estabelecimento de qualquer vínculo de

filiação entre o dador e a criança oriunda da procriação. E, igualmente, a justificação do princípio do anonimato.”73

Em 2016, o Provimento da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça 52 determinou que a identidade dos doadores de material genético fosse aberta, atingindo situações passadas e futuras. O Provimento, segundo Débora Gozzo, teve o objetivo nobre de garantir ao filho nascido a possibilidade de ter acesso à sua origem biológica:

A despeito do objetivo nobre do Provimento, que é o de garantir ao filho assim nascido, a possibilidade de ter acesso à sua origem biológica, suas normas proíbem o estabelecimento de laços de parentesco entre doador e a criança assim nascida. Restam impedidos, portanto, por meio do Provimento, o exercício dos direitos aos alimentos bem como à sucessão, só para citar dois exemplos. Constata-se, desse modo, que o pretendido foi mera e simplesmente garantir àquele nascido por alguma das técnicas de reprodução humana, envolvendo doação de material genético, o direito a conhecer sua origem biológica, propiciando a concretização do livre desenvolvimento de sua personalidade. Com isto garante-se proteção integral ao princípio da dignidade humana74.

A inseminação heteróloga enseja esse tipo de questionamento, posto que há o direito ao anonimato do doador do material germinativo, ao mesmo tempo em que não há o estabelecimento da paternidade biológica. O anonimato, contudo, retira da criança o direito de saber qual é sua parentalidade biológica. O direito à origem genética não requer investigação da paternidade75, visto que é a busca de dados para desvendar a história da saúde físico- psíquica de seus ascendentes biológicos, sem ter a intentio de estabelecer o parentesco legal ou de pleitear direitos sucessórios ou pensão alimentícia do genitor biológico76. Esse direito a identidade genética permite a adoção de medidas preventivas para a preservação da saúde e da vida do que foi inseminado artificial e heterologamente.

73 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações Artificiais e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos,

éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 145.

74 Provimento n° 52/2016, da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça que dispõe sobre o registro de

nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível em:

https://www.conjur.com.br/dl/parecer-iasp-reproducao-assistida.pdf. Acesso em 10.jun.2020. Em abril de 2018, o Tribunal Constitucional de Portugal, o equivalente ao Supremo Tribunal Federal Brasileiro, colocou fim ao sigilo dos doares e da identidade das mulheres em gestação de substituição. Disponível em:

https://www.publico.pt/2018/04/26/sociedade/noticia/filhos-nascidos-da-procriacao-assistida-podem-saber- quem-sao-os-dadores-1811678. Acesso em 10.jun.2020.

75 Conforme assevera Paulo Luiz Netto Lôbo: o direito ao conhecimento da origem genética não significa

necessariamente direito à filiação. Sua natureza é de direito da personalidade, de que é titular cada ser humano. Apud. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 695.

O direito à origem ou identidade genética é o de saber a história da saúde dos seus parentes consanguíneos para fins de preservação de alguma moléstia física ou mental ou de evitar incesto, logo não gera direito à filiação, direito alimentar e tampouco sucessório.

Projetos de Lei no Brasil como o n°4.892/2012 e n° 115/20158 apensado, mais conhecido por “Estatuto da Reprodução Humana”, que foi elaborado pela Comissão de Biotecnologia da OAB/SP, mantém o anonimato do doador, com ressalvas em caso de interesse relevante para garantir a preservação da vida, manutenção da saúde física, higidez psicológica ou outros casos graves que envolvam a pessoa nascida, os quais ficariam a critério do juiz, devendo tal direito, portanto, ser reconhecido por sentença judicial e garantido também ao doador nos mesmos casos.

Já o Projeto n° 1.184/2003, substitutivo do Projeto n° 90/99, prevê em seu art. 9°, § 1°, que a pessoa nascida por processo de reprodução assistida poderá ter acesso, a qualquer tempo, as informações sobre o processo que a gerou, inclusive à identidade civil do doador, desde que manifeste sua vontade livre, consciente e esclarecida, devendo ser mantidos os segredos profissionais e de justiça. O Projeto de Lei n° 4686/04 sugere um acréscimo ao art. 1.597 do Código Civil, reproduzindo o texto do art. 9°, § 1°, do projeto acima e acrescentando que a maternidade ou paternidade biológica resultantes do processo de reprodução assistida, após conhecidas, não geraram nenhum direito sucessório77.

O direito à identidade genética é direito fundamental da pessoa humana, não só para que conheça sua origem, mas também para que sejam evitadas relações incestuosas.