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PARTE I PANORAMA ATUAL DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

5. Consentimento informado e esclarecido e as clínicas de reprodução humana

6.2. A reprodução assistida post mortem e a igualdade dos filhos na sucessão

A questão da inseminação artificial homóloga post mortem enseja polêmicas de toda natureza. Pode, na visão de Marcio Delfim255 gerar situações delicadas como o fato de um

filho, por ter nascido enquanto ambos os pais estavam vivos, ser considerado herdeiro legítimo, enquanto outro filho, nascido por inseminação artificial homóloga após a morte do pai, ser considerado, no máximo, herdeiro testamentário, o que, em sua avaliação, inquestionavelmente, viola o princípio da igualdade entre os filhos, contemplado na Constituição.

Salomão Cateb acrescenta que o filho post mortem, oriundo da inseminação artificial, difere, substancialmente, daquele positivado em ação de investigação de paternidade. Da mesma forma que a afetividade tende a superar ou igualar-se à consanguinidade, a inseminação abre amplo espaço de discussão jurídica256.

Nesse sentido, propõe o enunciado 127 do CJF a alteração do inciso III do artigo 1.597 do CC para constar apenas que há presunção de paternidade dos filhos "havidos por fecundação artificial homóloga", retirando-se a parte final do dispositivo, que estabelece a possibilidade de utilização da referida técnica de reprodução assistida após a morte do marido. Como justificativa, os proponentes dessa mudança argumentam que a norma observa “os

254 Sobre o tema, Guilherme Calmon Nogueira da Gama aponta que de lege ferenda, deve-se proibir a

monoparentalidade decorrente da reprodução assistida, mas não de forma absoluta, propiciando que, em determinadas situações comprovadamente excepcionais, nas quais se constate a observância dos princípios- limites constitucionais, seja autorizado o acesso da mulher solteira às técnicas de reprodução assistida, desde que comprovada sua esterelidade, não tendo ela condições de procurar naturalmente. (…) O tema ainda desperta a polêmica envolvendo o homem que pretenda recorrer às técnicas de reprodução assistida com o fim de constituir a família monoparental, diante de sua impossibilidade física para a gravidez e o parto do homem.” GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. O Biodireito e as Relações Parentais: o estabelecimento da paternidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. São Paulo: Renovar, 2003, p. 787. Nossa opinião, contudo, pede ponderação ainda para a questão da autonomia existencial da mulher como outro peso que deve ser colocado na balança do projeto monoparental.

255 DELFIM, Marcio Rodrigo. As implicações jurídicas decorrentes da inseminação artificial homóloga "post

mortem". Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2186, 26 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12965>. Acesso em: 6. Out. 2015.

princípios da paternidade responsável e dignidade da pessoa humana, porque não é aceitável o nascimento de uma criança já sem pai".

Para Delfim, a medida não é a mais acertada, posto que o ordenamento jurídico contempla expressamente a hipótese da adoção póstuma, sem que se cogite de violação dos princípios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana.

O artigo 42 § 5º do ECA estabelece que "a adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença". Nessa modalidade de adoção, ao contrário das demais, a sentença constitui o parentesco civil desde a data do falecimento, produzindo efeitos retroativos.

O artigo 1.798 do CC/02 estabelece que "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da sucessão", o que, em tese, excluiria da participação na sucessão o nascido após a morte do autor da herança, mediante fecundação artificial, sem que tenha havido prévia concepção.

Para justificar sua posição em prol da inseminação artificial post mortem, Delfim acrescenta que há duas normas legais que devem ser interpretadas sistematicamente. A primeira é a regra estabelecida no artigo 1.597, inciso III do Código Civil, que trata da presunção de filiação no caso de inseminação artificial homóloga realizada após a morte do genitor. A segunda vem descrita no artigo 1.798 do mesmo Código, no sentido de que só tem legitimidade para suceder quem já estava vivo, ou, ao menos, já era concebido no momento da abertura da sucessão. Assim, o filho resultante da inseminação artificial homóloga post mortemdeve ter exatamente os mesmos direitos que são assegurados ao seu irmão biológico concebido ou nascido antes da morte do pai.

Maria Helena Diniz, diz que o art. 1.597, III, presume concebido na constância do casamento filho oriundo de inseminação artificial homóloga, mesmo que o marido doador do sêmen já tenha falecido, mas “entendemos que isso só seria possível se houver anuência escrita (Res. CFM n. 2.013/13) do marido nesse sentido em instrumento público ou testamento”257.

O embrião teria direito sucessório apenas se fosse contemplado em testamento, como prole eventual, com base no art. 1.799, I, CC, que aduz: “na sucessão testamentária, podem

ainda ser chamados a suceder os filhos ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão".

Pois bem. A problemática que se insere é que os embriões já foram concebidos. Estão lá. À espera da implantação em útero para que possam nascer. Giselda Hironaka afirma que não se pode indicar prole eventual no testamento, porque fere a legislação. E propõe que, apesar de o testador não poder indicar sua própria prole eventual, uma vez que a lei exige que a pessoa indicada pelo testamento esteja viva no momento da abertura da sucessão, a solução seria o testamento por via reflexa, ou seja, se for testador, ele deve indicar a doadora do óvulo e se for testadora, ela deve indicar o doador do espermatozóide258.

Contudo, para Carolina Valença Ferraz, a inexistência de norma especial que verse especificamente sobre a matéria da sucessão de embriões in vitro não inviabiliza a sucessão testamentária com relação ao próprio filho do futuro testador. “Em outras palavras, o de cujus poderá testar em favor da sua própria prole futura, uma vez que defendemos a aplicação por analogia do conteúdo do artigo 1.799, I, do Código Civil”259.

Márcio Delfim argumenta que os filhos nascidos por fecundação homóloga post mortem possuem os mesmos direitos, inclusive sucessórios, da prole já nascida, por conta do princípio constitucional de igualdade dos filhos. Diz Delfim que o “o filho do mesmo pai e da mesma mãe é herdeiro legítimo, se o pai falecer após a concepção, mas é herdeiro testamentário se o pai falecer antes da concepção”. José Luiz Gavião de Almeida260 concorda que os filhos nascidos de inseminação artificial homóloga post mortem são sucessores legítimos e argumenta:

Quando o legislador atual tratou do tema, apenas quis repetir o contido no Código Civil anterior, beneficiando o concepturo apenas na sucessão testamentária porque era impossível, com os conhecimentos de então, imaginar-se que um morto pudesse ter filhos. Entretanto, hoje a possibilidade existe. O legislador, ao reconhecer efeitos

258 HIRONAKA, Giselda. Comentários ao Código Civil – Parte Especial: Do Direito das Sucessões – vol. 20.

São Paulo: Saraiva, 2003. P. 96. In artigo de Márcil Delfim, disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12965/as- implicacoes-juridicas-decorrentes-da-inseminacao-artificial-homologa-post-mortem/2#ixzz3nu6SVJTN> Acesso em: 07.out.2015.

259 FERRAZ, Carolina Valença. Biodireito: A proteção Jurídica do Embrião In Vitro. São Paulo: Editora

Verbatim, 2011, p. 88-89.

260 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado. Direitos das Sucessões. Sucessão em geral.

Sucessão Legítima – vol. XVIII. São Paulo: Atlas, 2003, p. 104. In artigo de Márcio Delfim. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/12965/as-implicacoes-juridicas-decorrentes-da-inseminacao-artificial-homologa-post- mortem/2#ixzz3nu716qvN> Acesso em: 07.out.2015.

pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o prurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o hereditário. Essa sistemática é reminiscência do antigo tratamento dado aos filhos, que eram diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no nascimento. Nem todos os ilegítimos ficavam sem direitos sucessórios. Mas aos privados desse direito também não nascia relação de filiação. Agora, quando a lei garante o vínculo, não se justifica privar o infante de legitimação para recolher a herança. Isso mais se justifica quando o testamentário tem aptidão para ser herdeiro. Novamente, como foi destacado neste trabalho, o tempo é um fator primordial que deve ser considerado. Isso porque há dois momentos em relação à fertilização homóloga. A primeira é quando o embrião já existe, e foi formado a partir dos gametas masculinos e femininos do casal, mas sua implantação ainda não ocorreu. A segunda ocorre quando o esperma do marido/ companheiro está congelado e o embrião ainda não foi formado. Assim, a mulher teria de fazer, inicialmente, a inseminação artificial para, então, dar origem ao embrião, que, posteriormente, será implantado. Neste caso, a autorização post mortem seria para a utilização do material genético porque nem sempre é certa a sua fertilização, posto que os embriões podem não vingar.

Eduardo de Oliveira Leite, como já citado, distingue essas duas situações: a do embrião concebido in vitro, com implantação posterior ao falecimento do pai; e a do embrião formado a partir do sêmen criopreservado depois do falecimento do pai, que é também aquele que forneceu o material fecundante. Para o Leite, a primeira hipótese autoriza o direito à sucessão hereditária, pois já houve concepção, ao passo que, na segunda, não, uma vez que não havia concepção no momento da abertura da sucessão. A mesma posição adota o livro de Cáio Mário da Silva Pereira, atualizado por Carlos Roberto Barbosa Moreira, na qual aponta que ocorrendo a concepção, por processo artificial, depois da morte do pai, não há que presumir sua contemporaneidade com um casamento sabidamente dissolvido por aquele óbito anterior: “a hipótese é, claramente, de ficção jurídica, e não de verdadeira presunção”261.

Essa divisão é fundamental para o Direito Sucessório, ainda que sejam diversas as posições dos doutrinadores em relação à possibilidade de o filho gerado post mortem seja reconhecido como herdeiro legítimo. O art. 1.798, CC, dispõe que são legitimados a suceder

261 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil: direito das sucessões. vol. VI. rev. e atualizada

as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. A norma reconhece a legitimação sucessória para o nascituro, daquele que foi concebido e ainda não nasceu. Se, no entanto, presume-se que o filho havido artificialmente após a morte do pai reputa-se concebido “na constância do casamento”, estaria plenamente equiparado ao que, já concebido por processo natural, apenas não houvesse ainda nascido quando da abertura da sucessão262.

Para diversos doutrinadores, a gestação funciona como uma “suspensão” de direitos. Zeno Veloso263, por exemplo, argumenta:

A lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (art. 2º, segunda parte). Assim sendo, o conceptus (nascituro) é chamado à sucessão, mas o direito sucessório só estará definido e consolidado se nascer com vida, quando adquire personalidade civil ou capacidade de direito (art. 2º, primeira parte). O nascituro é um ente em formação (spes hominis), um ser humano que ainda não nasceu. Se o concebido nascer morto, a sucessão é ineficaz.

A tese é corroborada também por Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas Dabus Maluf264 em relação ao nascituro:

Se vier a nascer com vida, ainda que já falecido o autor da herança, herdará este, de acordo com seu título sucessório; se, por outro lado, a gestação não chegar a termo, será como se nunca houvesse existido; nesse caso, defere-se a herança aos outros de sua classe, ou aos da classe imediata, caso ele fosse o único herdeiro. Retroagem seus direitos sucessórios ao momento da abertura da sucessão. O pensamento de que o nascituro tem personalidade jurídica formal e apenas a partir de seu nascimento adquire personalidade jurídica material é sustentado também por Maria Helena Diniz. Já na contramão desta tese, Flávio Tartuce, Diogo Leite de Campos e Silmara Chinelato e Almeida, entendem que ao nascituro devem ser reconhecidos direitos sucessórios desde a concepção, o que representa a atribuição de uma personalidade civil plena a tal sujeito de direitos, sem qualquer restrição.

262 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil: direito das sucessões. vol. VI. rev. e atualizada

por Carlos Roberto Barbosa Moreira. 26a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 28.

263 VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. (org. Ricardo Fiuza) 6ª edição, 2008, p 1.971-1.972.

264 MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas Dabus. Curso de Direito de Direito de Família,

2013, p. 109-110. Apud: TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito das Sucessões. 7ª edição. São Paulo: Editora Método, 2014. p. 73.

O direito sucessório do nascituro deve ser levado em conta a sua concepção, e não o nascimento com vida. Se nascer morto, os bens já recebidos serão atribuídos aos herdeiros do nascituro, e não aos herdeiros daquele que faleceu originalmente. Se nascer com vida, haverá apenas uma confirmação da transmissão anterior, do que era reconhecido naquele momento anterior265.

Para Tartuce, pensar ao contrário é basear-se na teoria natalista, que leva em conta somente os direitos daquele que já nasceu. Teoria esta que se mostra ultrapassada, uma vez que o nascituro já é amplamente reconhecido como sujeito de direitos, tendo em vista elementos como alimentos gravídicos e indenizações por conta da morte de seu pai antes de seu nascimento. Cita o autor, o artigo 5º, inciso XXX, da Constituição que afirma que a herança não pode ser preterida daquele que foi concebido e ainda não nasceu. Para ele, é preciso repensar a ideia da teoria concepcionista de modo mais aprofundado.

Silmara Chinelato e Almeida ressalva que é com a nidação do ovo no útero que se inicia a gravidez, momento em que é garantida, em tese, a viabilidade do desenvolvimento e sobrevida do ovo, que se transformará em embrião e feto266. E afirma que não depende do

nascimento com vida o reconhecimento de direitos do nascituro como a curatela e a representação que, juntamente com o direito a alimentos, já eram reconhecidas ao nascituro desde a concepção:

Antes da Constituição de 1988, podia-se afirmar que tinha status de filho “legítimo” desde a concepção e antes do nascimento, o concebido na constância do casamento, nos termos dos arts. 337 e 338 do Código Civil (de 1916). Tinha também status de filho “legitimado” o que estivesse apenas concebido e ainda não nascido quando do casamento dos pais, conforme dispõe o art. 353 do Código Civil (de 1916). A atribuição de tais status confirma que a personalidade do nascituro existe desde a concepção e independe do nascimento, já que o status, ao lado da capacidade, da sede e de seus direitos específicos, chamados direitos da personalidade, constitui um dos atributos da personalidade, conforme leciona R. Limondgi França. Vários exemplos podem confirmar que o status de filho existe, é válido e eficaz, desde a concepção e antes do nascimento267.

265 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito das Sucessões. 7ª edição. São Paulo: Editora Método, 2014. p. 73. 266 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 161.

267 ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 166. Os artigos

Em reforço a este pensamento, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, autor do Enunciado n. 267 da III Jornada de Direito Civil, explicita que “a regra do art. 1.798, CC, deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança”.

Quanto à legitimação para suceder, Carolina Valença Ferraz justifica que o embrião in vitro tem capacidade sucessória no reconhecimento da filiação e no impedimento de distinção entre os filhos, conforme artigo 227, §6o, da Constituição Federal.

O reconhecimento da filiação, mas com a recusa - injustificada - em considerar a pessoa humana in vitro como herdeira, gera uma filiação imperfeita, ou seja, filhos de segunda categoria, que não podem pleitear a herança paterna ou materna, descaracterizando, portanto, um dos efeitos da filiação.

Importa sim, considerarmos que, além de a herança ser o subsídio à manutenção e garantia da subsistência da prole, constituiu um elo de vinculação, pois herda quem sucede, e o faz nesta hipótese, por descender de outrem268.

Em nossa opinião, no que tange à filiação, filhos oriundos de fertilização homóloga post mortem, se nascidos com vida, têm igualdade de direitos em relação àqueles que já existem. A condição para recebimento da herança, contudo, é nascer com vida. Nas palavras de Silmara Chinelato e Almeida, “subordinar a plena eficácia e, portanto, a consolidação os direitos patrimoniais materiais - doação e herança - ao nascimento com vida atende à preocupação do legislador com a prevalência dada a tais direitos269. Nesse sentido, os embriões in vitro só terão o direito ao recebimento da herança ou à doação feita em testamento se nascerem com vida, uma vez que o Código Civil, em seu artigo 2º que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

268 FERRAZ, Carolina Valença. Biodireito: A proteção Jurídica do Embrião In Vitro. São Paulo: Editora

Verbatim, 2011, p. 88.