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PARTE I PANORAMA ATUAL DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

4. Do embrião e embrião criopreservado, do pré-embrião, do nascituro: início da

4.3. Da problemática dos embriões excedentários

Embriões excedentários ou numerários são aqueles que foram feitos a partir de óvulos fertilizados em número superior ao que poderiam ser implantados, para evitar gravidez múltipla, sendo, portanto congelados. O destino dos embriões poderá ser a futura implantação, sua entrega à adoção para outro casal infértil, seu descarte ou sua doação para pesquisas.

186 BOURGUET, Vincent. O ser em gestação: reflexões bioética sobre o embrião humano. Tradução Nicolás

Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pp. 91-92.

187 RAPOSO, Vera Lúcia. O direito à imortalidade: o exercício de direitos reprodutivos mediante técnicas de

reprodução assistida e o estatuto jurídico do embrião in vitro. (Teses de doutoramento) Lisboa, Almedina, 2014, p. 487.

A origem desses embriões decorre das técnicas de reprodução humana assistida na qual a mulher é submetida a um tratamento hormonal para que produza mais óvulos em um único ciclo, posto que é muito mais difícil extrair um gameta feminino do que o masculino188.

A polêmica a respeito dos embriões excedentários foi bastante intensa em 2008 quando o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510)189, em

que se discutia a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança que previa que embriões produzidos por fertilização in vitro, congelados há mais de três anos, ou considerados inviáveis, poderiam ser doados para pesquisa com célula-tronco- embrionárias190.

O tema central da discussão era o status jurídico deste embrião criopreservado. Se fosse considerado pessoa, deveria ser automaticamente protegido pelo princípio da dignidade da pessoa humana. A ação foi julgada improcedente, posto que entendeu-se que a pesquisa com essas células-tronco não violam o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, posto que o embrião não é pessoa. Em seu voto, o Ministro Relator Carlos Ayres Britto, assim posicionou o embrião humano in vitro:

Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança ( "in vitro" apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os

188 GOZZO, Débora. Embriões excedentários, seu descarte e os avanços da biotecnologia: quo vadit? In: Família

e Pessoa: uma questão de princípios. Regina Beatriz Tavares da Silva e Ursula Cristina Basset, coordenadoras. São Paulo: YK, 2018, p. 306.

189 CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANÇA.

IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5a DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA). PESQUISAS COM CÉLULAS TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSTITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO

EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS.

DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO

PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE

INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS.

IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. Acórdão completo disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20AD I%20/%203510. Acesso em 12.Out.2020.

190 SCALQUETTE, Ana Claudia. Estatuto da Reprodução Assistida. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 315. Vide

momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição.

Sobre os embriões excedentes o Ministro Relator enfatizou que não há, na Constituição e tampouco na lei de Planejamento Familiar qualquer obrigação da mulher que se submeteu à fertilização assistida a realizar a tentativa de nidação de todos os embriões criados no processo:

O recurso a processos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal dever (inciso II do art. 5a da CF), porque incompatível com o próprio instituto do "planejamento familiar" na citada perspectiva da "paternidade responsável". Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5a da Constituição. Para que ao embrião "in vitro" fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não autorizada pela Constituição.

O Ministro Eros Grau votou pela constitucionalidade do dispositivo com três ressalvas: “Primeiro, que se crie um comitê central no Ministério da Saúde para controlar as pesquisas. Segundo, que sejam fertilizados apenas quatro óvulos por ciclo e, finalmente, que a obtenção de células-tronco embrionárias seja realizada a partir de óvulos fecundados inviáveis, ou sem danificar os viáveis.”191

Uma questão polêmica é determinar a inviabilidade dos embriões192 . A inviabilidade poderia ser interpretada como parada completa de desenvolvimento, ou seja a morte embrionária (contudo, não restaria outra alternativa que não o seu descarte, posto que nem mesmo para a doação de célula-tronco o embrião serviria). Estudo capitaneado por Nilka Fernandes Donadio considerou, então, que o conceito de inviabilidade não seria diretamente

191 GOZZO, Débora. Embriões excedentários, seu descarte e os avanços da biotecnologia: quo vadit? In: Família

e Pessoa: uma questão de princípios. Regina Beatriz Tavares da Silva e Ursula Cristina Basset, coordenadoras. São Paulo: YK, 2018, p. 307.

192 DONADIO, Nilka Fernandes et al . Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações

para pesquisas de células-tronco. Rev. Bras. Ginecol. Obstet., Rio de Janeiro , v. 27, n. 11, p. 665-671, Nov. 2005 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 72032005001100006&lng =en&nrm=iso>. Acesso em: 19.Set.2020.

do embrião, mais, sim, da inviabilidade da obtenção de gestação viável a partir dele. Daí, surgem dois raciocínios: a inviabilidade genética, caracterizada por alterações do embrião comprovadas pelo diagnóstico pré-implantacional, incompatíveis com a vida, ou que não foram comprovadas por falhas da técnica, mas com elevado risco; e a inviabilidade evolutiva, ou seja, quando a transferência uterina do embrião não resultaria em gravidez.

Habitualmente, a seleção de embriões é realizada a partir de critérios morfológicos bem estabelecidos, como tempo de clivagem, fragmentação, simetria, multinucleação e aspectos citoplasmáticos dos blastômeros, além da avaliação precoce dos pró-núcleos. (…)

Embriões de baixos escores morfológicos não podem ser considerados inviáveis por serem capazes, embora com uma freqüência muito baixa, de promoverem gestação. Estes mesmos embriões, quando criopreservados e posteriormente transferidos após descongelamento, mostraram taxa de gravidez irrisória, além de não resultarem em nenhuma gravidez viável. Podemos concluir que o congelamento dos mesmos se torna impraticável. Logo, quando extranumerários, não deveriam ser criopreservados, podendo então, ao invés de serem descartados, ser doados para pesquisa de células-tronco embrionárias ou outras pesquisas, desde que aprovadas pelo conselho de ética e pesquisa e pelo casal193.

Outro critério que determina a viabilidade dos embriões utilizados em clínicas de reprodução assistida é o morfológico. Ele analisa o aspecto do embrião nas fases de zigoto, de suas primeiras divisões e de blastocisto. No relatório do Acórdão da ADI 3.510 de 2008, que analisou a constitucionalidade do artigo 5o da Lei de Biossegurança, foram trazidos diversos estudos que relacionam o sucesso da gravidez com a simetria e dimensões do pronúcleo dos embriões.

Nas primeiras divisões do embrião (24 a 28 horas após a inseminação), observa-se a simetria, a fragmentação e o número de células. Um embrião considerado de boa qualidade para fins de reprodução deve ter pelo menos 4 células (blastômeros) no segundo dia e 8 no terceiro. Há critérios com quatro e cinco graduações. No Brasil, adota-se o critério de 4 graduações, A, B, C e D, conforme os embriões sejam, respectivamente, aqueles simétricos e sem fragmentação; assimétricos ou com até 25% de fragmentação; com 25 a 50% do seu volume ocupado por fragmentos; e aqueles com 50% ou mais de fragmentação. O embrião na

193 DONADIO, Nilka Fernandes et al . Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações

para pesquisas de células-tronco. Rev. Bras. Ginecol. Obstet., Rio de Janeiro , v. 27, n. 11, p. 665-671, Nov. 2005 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 72032005001100006&lng =en&nrm=iso>. Acesso em: 19.Set.2020.

fase de blastocisto (4 ou 5 dias após a fecundação) tem características peculiares como a formação de uma massa central e uma concentração periférica de células e, em conseqüência, a sua análise morfológica pode utilizar outras observações, como a dureza do trofectoderma e a compactação. Outra classificação, leva em consideração a massa central (ICM - inter cell mass), que é o número de células no trofectoderma e a compactação do blastocisto. A velocidade da divisão do zigoto também é um critério que tem-se mostrado promissor para identificar a viabilidade do embrião194.

O objetivo dessa identificação é possibilitar a transferência de um único embrião, evitando gravidez múltipla ou gemelar. Por outro lado, quanto mais fácil identificar o “melhor" embrião, os demais estarão fadados ao congelamento.

Conforme lição de Débora Gozzo, prática que também leva ao descarte de embriões excedentes é a do chamado diagnóstico pré-implantatório, na qual os embriões são submetidos a exames genéticos que podem detectar alguma anomalia, e, por esta razão, serem descartados. Ainda que a possibilidade de uma eugenia não seja o objetivo do presente trabalho, fica a indagação sobre até que ponto a prática de seleção de embriões é ética, considerando que a anomalia genética não significa, necessariamente, que o embrião seja inviável. “Por certo que o descarte dos embriões excedentários, embora não seja eticamente aceitável, não implica em considerar essa prática equiparada ao aborto, visto esta terminologia só poder ser usada para o nascituro”195.

Como no Brasil não há norma que regulamente a questão dos embriões excedentários, de forma deontológica, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 2.168 de 2017, estabelece que o número total de embriões gerados em laboratório será comunicado aos

194 SCOTT et al. Morphology of human pronuclear embryos is positively related to blastocyst development and

implantation, in Human Reproduction v. 15, 2000, págs. 2.394 a 2.403; TESARIK et al. Embryos with high implantation potential after intracytoplasmic sperm injection can be recognized by a simple, non-invasive examination of pronuclear morphology. in Human Reproduction v. 15, 2000, págs. 1,396 a 1.399. Garner e outros. Blastocyst score affects implantation and pregnancy outcome: towards a single blastocyst transfer in

Fertility and Sterility 73. págs. 1.155 a 1.158. VAN MONTFOORT et al. Early cleavage is a valuable addition

to existing embryo selection parameters: a study using single embryo transfers in Human Reproduction v. 19, 2004. págs. 2.103 a 2.108; TERRIOU et al. Relationship between even early cleavage and day 2 embryo score and assessment of their predictive value for pregnancy in Reproductive Biomedicine Online v.14, 2007. págs.

294 a 299 Apud: Acórdão ADI 3510 inteiro teor, p. 178. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20AD I%20/%203510. Acesso em 20.Out.2020.

195 GOZZO, Débora. Embriões excedentários, seu descarte e os avanços da biotecnologia: quo vadit? In: Família

e Pessoa: uma questão de princípios. Regina Beatriz Tavares da Silva e Ursula Cristina Basset, coordenadoras. São Paulo: YK, 2018, p. 313. Sobre o tema da eugenia: HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. E ainda entrevista com Mayana Zets e Fernando Reinach: Edição genética de humanos será rotina em 10 anos, dizem especialistas. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/edicao- genetica-de-humanos-sera-rotina-em-10-anos-dizem-especialistas/. Acesso em 20.Out.2020.

pacientes para que decidam quantos embriões ser transferidos a fresco. Os excedentes, viáveis, serão criopreservados. O mesmo CRM orienta que, no momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar-se por escrito sobre o destino desses embriões congelados em casos de divórcio ou dissolução de união estável, doenças graves, falecimento de um ou ambos e quando desejam doa-los, ou descarta-los196. A Resolução orienta que após três anos

criopreservados, os embriões podem ser descartados se esta for a vontade expressa dos pacientes. Se os embriões forem abandonados (os responsáveis não cumpriram o contrato com a clínica e não foram localizados) por mais de três anos, poderão ser descartados.

Para Mario Luiz Delgado, a Resolução do CFM que admite o descarte de embriões viola o direito fundamental à vida, uma vez que os embriões criopreservados pertencem ao humanum genus, e não há requisitos objetivos para se identificar quais embriões devem ser considerados “inviáveis” e, por isso, passíveis de “descarte”. “A decisão poderá descambar para a arbitrariedade, ficando a critério de cada clínica ou de cada profissional a decisão sobre a viabilidade da vida de um ser um humano em potência”197.

Sobre os embriões excedentários, importante colocação psicológica - e angustiante - fez Simone Perelson, ao provocar o pensamento desses seres como “sobra”, “resto”, “lixo”198:

196 Em consulta sobre o descarte de embriões excedentários, sendo os genitores estrangeiros, o CREMESP

(Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) deu o seguinte parecer: "Atualmente há uma lacuna na nossa legislação, gerando questionamentos e dúvidas sobre qual a conduta que deve ser tomada diante dos embriões excedentários.” E chegou a uma conclusão: "Fato é que a legislação hoje em vigor traz 3 (três) possibilidades de destino para os embriões excedentários: 1- descarte se houver autorização dos genitores; 2- descarte em razão do abandono; 3- fins de pesquisa e terapia se houver autorização dos genitores. Todas essas possibilidades também devem ser apresentadas e aplicadas aos estrangeiros que realizam as técnicas de reprodução assistida no Brasil, em observância ao que preconiza o art. 5º da Constituição Federal: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:…" Em que pese o artigo fazer menção a estrangeiros residentes, o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que a lei também se aplica aos estrangeiros em trânsito em nosso país. Sendo assim, realizado o contrato para realização de técnicas de reprodução assistida em nosso território, mesmo em se tratando de genitores estrangeiros, aplica-se a lei brasileira. Ante o exposto, conclui-se, s.m.j., que as normas aplicadas aos genitores estrangeiros que se submetem às técnicas de reprodução assistida no Brasil são as mesmas aplicadas aos brasileiros. Consulta nº 45.482/19. Assunto: Descarte de embriões excedentários. Genitores estrangeiros. Relatora: Dra. Camila Kitazawa Cortez - OAB/SP 247.402 - Advogada do Departamento Jurídico. Parecer subscrito pela Conselheira Maria Alice Saccani Scardoelli, Diretora Secretária. Disponível em:https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=a&ficha=1&id=16541&tipo=PARECER&orgao=%2 0Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=45482&s ituacao=&data=30-01-2020. Acesso em 27.jun.2020.

197 DELGADO, Mário Luiz. REPRODUÇÃO ASSISTIDA: A NOVA RESOLUÇÃO DO CONSELHO

FEDERAL DE MEDICINA E O DESCARTE DE EMBRIÕES. Disponível em:

https://www.marioluizdelgado.com/index.php/cat-meus-artigos/99-reproducao-assistida-a-nova-resolucao-do- conselho-federal-de-medicina-e-o-descarte-de-embrioes. Acesso em 13.Out.2020.

198 PERELSON, Simone. Os embriões congelados: da falta ao excesso. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 9,

n. 3, p. 815-837, set.2009. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518- 61482009000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20.Set.2020.

Eles (embriões excedentes) são literalmente 'aquilo com o que não se sabe o que fazer'. Como observa a psicanalista Geneviève Delaisi (1994), "não há com efeito representação antropológica, representação simbólica para esses 'embriões supranumerários congelados': os pais não sabem aliás que gênero lhes dar; eles dizem frequentemente 'isso' para designá-los." (p. 72). Alguém meio coisa ou algo meio homem, na suspensão entre a vida e a morte, entre a humanização e a destruição - os embriões excedentes são de fato as sobras, o resto inassimilável do processo reprodutivo ou, ainda, os restos humanos do processo técnico-científico. (…)

Transformados em resto, estes embriões colocam

necessariamente aos sujeitos que têm com eles alguma forma de relação - de produção, de propriedade ou de afeto (que termos podemos aqui utilizar?) - face ao desafio de sua representação simbólica. Coisa ou humano? A quem pertencem? Podem ser destruídos? Podem ser utilizados para a pesquisa? Podem ser doados para processos reprodutivos envolvendo outras pessoas? Podem ser vendidos? São pessoas humanas em potencial? A questão da dignidade humana lhes diz respeito? São dignos de afeto? Às questões já extensamente discutidas a respeito do estatuto do embrião, vemos somar-se uma série de novas dificuldades quando este é desalojado de seu 'receptáculo natural', o corpo da mãe, e passa a ser estocado no laboratório.

E, assim, amontoados - hoje, no Brasil, existem quase 89 mil destes estocados, de acordo com o SisEmbrio (vide nota n. 3, supra), os embriões excedentários possuem alguns destinos certos: descarte, doação para pesquisa, doação para adoção. Esta última hipótese, contudo, ainda encontra reservas por meio dos casais que são seus pais biológicos, pois essa doação, de alguma forma, poderia provocar-lhes "fantasmas de procurar ou de ver, entre as crianças espalhadas pelo mundo, seus próprios filhos”199.

4.3.1. Da adoção embrionária

Cabe explicar, ainda que muito brevemente, que a adoção embrionária não se confunde com a adoção de que trata o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), devendo ser o embrião encaminhado ao acolhimento adotivo, assemelhando-se à reprodução assistida heteróloga, uma vez que os pais deste embrião ora acolhido e devidamente implantado não terá o mesmo material genético que seus pais de criação. Em todos os casos, é imprescindível que o casal que doa os embriões à adoção - de forma gratuita, frise-se - e aqueles que o

199 PERELSON, Simone. Os embriões congelados: da falta ao excesso. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 9,

n. 3, p. 815-837, set.2009. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518- 61482009000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20.Set.2020.

adotaram tenham assinado o termo de consentimento informado, livre e esclarecido autorizando o processo.

A terminologia “doação de embriões” deve ser repensada, posto que a doação é o negócio jurídico bilateral, a título gratuito, cujo objeto são coisas200, não podendo, portanto, ser estendida para os embriões, considerando-se que não são coisas, mas um ser humano concebido, uma pessoa em potencial, como já visto na teoria concepcionista, que foi adotada pelo nosso Código Civil de 2002. Tampouco o contrato da clínica que abriga os embriões pode ser considerado um contrato de depósito, que, na lição de Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi e Maria Ligia Coelho Mathias, é um contrato que se perfaz pela entrega de uma coisa móvel corpórea pelo depositante ao depositário, obrigando-se ele a guardá-la ou custodiá-la temporariamente, restituindo-a no prazo convencionado ou quando lhe exigida pelo depositante. É uma estipulação que tem origem na confiança que o depositante teria na pessoa do depositário201.

A adoçado embrionária, de acordo com Alexandre Lescura Nascimento, requer a capacidade das partes adotantes que só podem arrepender-se e revogar a adoção até o momento da implantação no útero. Após a implantação, não há mais que se falar em arrependimento, vigorando, assim, a presunção de paternidade do nascituro em relação aos pais adotantes202.

Carolina Valença Ferraz aventa ainda a possibilidade de os adotantes do embrião darem a ele alimentos, o que, nesse caso, poderia ser na forma de custeamento da sua criopreshrvação na clínica de reprodução assistida até a posterior implantação em útero materno203.

A prática ainda não é muito difundida no Brasil, mas já existem casos registrados de adoção embrionária ou embrioadoção que foram bem-sucedidos. Contudo, nesses casos, o estigma da adoção persiste, uma vez que a identidade dos doadores do embrião permanece

200 Maria Helena Diniz conceitua doação como um contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do