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A questão do currículo, da cultura e dos saberes

No documento ... À Natureza, e à dádiva da vida... (páginas 56-62)

ESTRUTURA GERAL DA TESE

1.1 Educação Ambiental e transformação social

1.1.3 A questão do currículo, da cultura e dos saberes

O currículo é um território em crescente disputa (ARROYO, 2013). Para entender essa afirmação de maneira mais abrangente, o autor traz os seguintes indicadores: a disputa acirrada pelo conhecimento, pela ciência e pela tecnologia, na qual outros projetos de sociedade contra hegemônico vem ganhando destaque; a negação e desvalorização do reconhecimento de outros tipos de conhecimentos, desconsiderando as diversidades culturais, modos de pensar e história dos sujeitos que não foram incorporados ao ―núcleo comum‖ do conhecimento socialmente produzido; a estreita relação entre currículo e trabalho docente nas novas configurações que surgem em torno da disputa sobre projetos e propostas que redefinem e ampliam a compreensão sobre o currículo; a politização das disputas, ou seja, uma reorientação pedagógica que vem ocorrendo no próprio interior das secretarias de educação e do Ministério da Educação (MEC), que buscam aproximar a dinâmica social e escolar e a dinâmica das políticas e diretrizes curriculares, ―na tentativa de abrir currículos à riqueza de experiências sociais e de conhecimentos e à diversidade de sujeitos políticos e culturais‖36.

36 Ibidem, p. 17

Vasconcellos (2011, p. 38) alerta que não existe currículo ―em si‖: existem sujeitos históricos que são seus agentes, seus construtores e realizadores, nas condições concretas da escola e da sociedade. O centro do currículo é, portanto, a pessoa, o sujeito: o currículo sendo visto à partir de uma visão mais ampliada, tendo como princípio a atividade humana. Há, portanto, uma ―profunda articulação entre a proposta curricular da escola e os currículos pessoais de educandos e educadores‖37.

Assim, a relação entre o currículo e a prática pedagógica não se dá de maneira mecânica, mas o primeiro influencia diretamente o segundo, já que sua força está nos detalhes que compõe o cotidiano: nos tempos (horários e duração das aulas, calendários, divisão das classes por séries, tempos de vivências significativas, etc.) e nos espaços (disciplinas, distribuição arquitetônica da escola, das salas de aula, dos espaços externos, etc.).

É consenso entre os autores estudados que a cultura é o conteúdo substancial da escola e o currículo é a forma institucionalizada de transmitir e reelaborar a cultura (LOPES, 1999; SAVIANI, 2003; BRANDÃO, 1981; GÓMEZ; FREITAS;

CALLEJAS, 2007; FORQUIN, 1993). Posiciono-me favorável a ideia de Saviani (2003, p. 14): a escola é uma instituição que tem como papel específico a socialização do saber sistematizado, o qual diz respeito ―ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo‖.

Torna-se fundamental então compreender, segundo o autor, que os conteúdos também são fundamentais no processo de emancipação dos sujeitos, só que precisam ser significativos, uma vez que sem eles a aprendizagem deixa de existir, se tornando uma ―farsa‖. É preciso se apropriar deles para pensar em estratégias de ação/intervenção na realidade. O autor ressalta que os conteúdos são fundamentais porque a apropriação da própria cultura constitui o principal instrumento para a participação política dos sujeitos. Ao contrário, os sujeitos

Ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação [...], o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação (SAVIANI, 2003, p. 66).

37 Ibidem, p. 28

A organização das atividades da escola, portanto, deve se basear nesta perspectiva, o que seria o mesmo que dizer que é a partir do saber sistematizado, portanto, que o currículo se estrutura. Ainda nas ideias do autor, o currículo pode ser compreendido como ―organização do conjunto das atividades nucleares distribuídas no espaço e tempo escolares‖38. As atividades são nucleares pois se trata da apropriação de saberes que instrumentalizam os estudantes para atuarem de maneira mais ampla na sociedade.

O autor sinaliza que a ideia recorrente é a de que currículo é tudo aquilo que acontece dentro da escola. Se tudo é currículo, não há porque diferenciar as atividades curriculares das extracurriculares, e ―com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é principal, deslocando-se, em consequência, para o âmbito do acessório aquelas atividades que constituem a razão de ser da escola‖39.

No espaço escolar, o currículo é, portanto, o núcleo e o espaço central mais estruturante da função da escola. E é por essa razão, que Arroyo (2013) diz que é o território mais cercado, mais normatizado do espaço escolar, mas também o mais politizado. O que aponta essa normatização e centralidade no currículo é, segundo o autor, a própria quantidade de diretrizes, normas e políticas que regem os sistemas de ensino, tornando o currículo uma configuração política do poder.

O currículo pode ser considerado como uma possibilidade real da mudança da escola. Nesse sentido, Vasconcellos (2011) sugere que se repense o currículo com carinho mas, acima de tudo, com coragem, uma vez que ele pode estar por trás do desinteresse dos estudantes e do mal-estar docente. Ainda nessa linha de pensamento, o autor defende que, sendo o currículo a alma da escola, a base para qualquer prática educativa, ―tanto a atividade docente quanto discente estão, em grande medida, condicionadas pela configuração do currículo que se assume na instituição de ensino‖40. O currículo está, assim, vinculado à lógica da humanização/desumanização. É, portanto, um território em crescente disputa (ARROYO, 2013).

Na perspectiva tradicional, o currículo é compreendido à partir de uma visão de educação como transmissão de conhecimento e este, por sua vez, é compreendido como ―neutro‖. Assim, a cultura é concebida como única, homogênea e universal

38 Ibidem, p. 18

39 Ibidem, p. 14

40 Ibidem, p. 20

(LOPES, 1999, p. 63). Já na perspectiva crítica, ele é compreendido como ―um terreno de produção e criação simbólica, no qual os conhecimentos são continuamente (re) construídos‖41. Dessa forma, ―O currículo é uma produção humana, portanto, marcado histórica e culturalmente‖ (VASCONCELLOS, 2011, p.

29). Ou seja, o currículo não é um campo neutro do conhecimento, como é visto na concepção tradicional (LOPES, 1999, p. 87), mas um ―produto dinâmico de lutas contínuas entre grupos dominantes e dominados, fruto de acordos, conflitos, concessões e alianças‖.

Ele assume uma dimensão cultural para além do marco escolar, ou seja, se configura como ―o repertório de conhecimentos e práticas pedagógicas humanas, a totalidade de conhecimentos e, num sentido mais sintético, a cultura que o educador e o educando constroem e intercambiam no processo vital quotidiano‖. No contexto escolar, Gómez, Freitas e Callejas (2007, p. 175), observando que as mensagens se condensam em um currículo, ressaltam que, Assim, defendem três tipos de currículo que convivem nas práticas pedagógicas das escolas:

 Currículo explícito ou manifesto: se baseia nos conteúdos, nos conhecimentos considerados úteis e tem uma função nitidamente formativa e instrutiva;

 Currículo oculto: se caracteriza pelo conjunto de saberes, práticas pedagógicas e usos cotidianos sem uma intencionalidade educativa;

 Currículo ocultável: é aquele conjunto de saberes e práticas pedagógicas que não se quer conhecer, por motivos éticos ou morais, mas sabe-se de sua existência, sendo próprio das relações interculturais.

Sendo a cultura o conteúdo substancial da educação (FORQUIN, 1993), é importante compreender que as relações que os sujeitos mantém com sua cultura estão relacionados fundamentalmente com as condições nas quais eles adquiriram os elementos que a compõe. Ou seja, a escola e a ação pedagógica propriamente dita influenciam diretamente a personalidade cultural dos sujeitos (LOPES, 1999;

FORQUIN, 1993).

Para aprofundar essa questão, Lopes (1999) ressalta alguns conceitos diversos sobre a cultura que influenciam as maneiras de se organizar o currículo. Destaca-se no contexto dessa pesquisa três deles. O primeiro se refere ao ―conjunto de saberes

41 Ibidem, p. 63

possuídos coletivamente por um grupo social ou por uma civilização‖42. É aquele que compreende a cultura como um ―tesouro‖, como um bem, ou seja, se o sujeito tem posse sobre ela, tem um privilégio. A autora destaca que, nessa visão, a cultura é traduzida como mercadoria, do ponto de vista subjetivo – como um valor que distingue o sujeito no meio social – e do ponto de vista objetivo – a cultura materializada nos bens culturais produzidos.

O segundo conceito, mais ampliado, compreende a cultura como ―uma articulação entre o conjunto de representações e comportamentos e o processo dinâmico da socialização, constituindo o modo de vida de uma população determinada‖43. Já o terceiro, mais contemporâneo, concebe a cultura como um sistema de significações no qual se comunica, reproduz, vivencia e estuda determinada ordem social.

Nessa perspectiva, é possível afirmar que em determinado contexto histórico,

São selecionados os conteúdos da cultura, considerados necessários às gerações mais novas, constituintes do conhecimento escolar. A concepção que se tem de cultura será, portanto, definidora de como se compreende o conhecimento escolar44.

Dessa forma, de acordo com a autora, no processo educativo sempre há uma seleção de conhecimentos da cultura que atende a objetivos previamente definidos.

O saber que é produzido socialmente, na sociedade capitalista se torna uma força produtiva, já que tende a se tornar propriedade privada da classe dominante; aos demais resta o saber necessário para executar sua função técnica, uma ―parcela‖ do conjunto do saber sistematizado ou, nas palavras de Saviani (2003, p. 76), ―apenas o mínimo necessário de instrução para serem produtivos, para fazerem crescer o capital‖. Assim, a visão que se tem é de que a cultura de massa é ―recebedora mas não produtora‖ de saberes (LOPES, 1999). A autora chama a atenção para o fato de que quem domina um país, como é o caso do Brasil, é quem domina os meios de comunicação de massa, considerados como veículos de ideologias, capazes de criar e recriar os seres humanos.

Dessa forma é possível dizer que o processo de seleção cultural estrutura o conhecimento escolar. Nesse sentido, a escola acaba por decidir que conhecimentos são mais importantes de serem trabalhados mas na maioria das

42 Ibidem, p. 66

43 Ibidem, p. 67

44 Ibidem, p. 63

vezes não questiona para que – ou quem –servem, ficando restrito ao ―como‖ se dá essa organização e não ao ―por que‖ funciona dessa maneira. Na perspectiva crítica, as questões que circundam o currículo se referem basicamente a sua intencionalidade: ―Que currículo? A serviço de quem? Qual sua qualidade? Quais suas prioridades? Quais suas omissões?‖ (VASCONCELLOS, 2011, p. 28).

Lopes (1999) ressalta que a questão central para refletir, nesse contexto, é a necessária ruptura do autoritarismo dos saberes ditos dominantes: é preciso desconsiderá-los como únicos saberes que tem validade. Dessa forma, é importante que os sujeitos, independente da classe que pertencem, se apropriem desses saberes em diálogo com outros saberes populares, cotidianos, a fim de que possam ser respaldos para um trabalho contra a cultura de massas e o discurso competente,

―verdadeiro‖. Nessa perspectiva, Saviani (2003, p. 79) destaca que não deve-se esquecer que

Nem o saber erudito é puramente burguês, dominante, nem a cultura popular é puramente popular. A cultura popular incorpora elementos da ideologia e da cultura dominante que, ao se converterem em senso comum, penetram nas massa.

Continuando nessa linha de pensamento, o autor ressalta que para ensinar o saber sistematizado torna-se necessário sua transformação para um saber escolar.

Ele define o saber escolar como ―o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar, ao longo de um tempo determinado‖45. Lopes (1999, p. 24) o define partindo de duas premissas:

1) Trata-se de um conhecimento selecionado a partir de uma cultura social mais ampla, que passa por um processo de transposição didática, ao mesmo tempo que é disciplinarizado; 2) constitui-se no embate com os demais saberes sociais, diferenciando-se dos mesmos. Em síntese, o conhecimento escolar define-se em relação aos demais saberes sociais, seja o conhecimento científico, o conhecimento cotidiano ou os saberes populares.

A autora nos ajuda a compreender que há uma mediação didática, processo pelo qual o conhecimento passa por uma didatização na forma de conteúdos escolares. A transposição didática se caracteriza por essa adequação do conteúdo, que considera que o conhecimento escolar é diferente do conhecimento científico, embora ambos sejam instâncias próprias do conhecimento. Neste sentido, a autora

45 Ibidem, p. 18

defende a (re) construção de saberes que a seu ver oportuniza um movimento de contraposição a ideia de reprodução do conhecimento, evidenciando que o conhecimento ensinado na salas de aula não são os mesmos produzidos pela ciência ao longo da história.

Essa mediação didática em que passa o conhecimento para se tornar ―escolar‖, está ainda carregada de influência de ideologias, valores, princípios que se cristalizam na ação do professor. Sendo assim, a compreensão da transposição do conhecimento científico para o escolar não é uma tarefa simples, já que ocorrem diversas ―transformações pedagógicas‖ ao longo desse processo. Portanto, os saberes que circundam a prática pedagógica não podem ser considerados uma atividade individual, mas um fenômeno constituído de muitas relações, repletas de lutas e hierarquias.

Essa transposição, quando tem como premissa a realidade como ponto de partida e chegada da ação educativa, pautada pelos conhecimentos sistematizados, precisa ser relacionada ao modelo de desenvolvimento que se tem em determinada comunidade. Santos (2002, p. 2) destaca que os ―modelos de desenvolvimento podem também, e devem, ser intrínsecos à escola, podendo partir desta para a comunidade‖. Assim, a escola pode ser vista como um dos diversos agentes promotores de desenvolvimento. Nessa perspectiva, o autor compreende a escola como ―centro de observação social‖: ela nos permite observar, analisar, refletir e propor soluções que contribuam para o desenvolvimento local, já que, além de ser um privilegiado de participação na vida das comunidades, tem relativa autonomia em relação as demais instituições que compõe as dinâmicas comunitárias.

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