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A partir das discussões e trabalhos de formação políticas realizadas junto aos catadores de materiais recicláveis, os mesmos se deram conta de que o trabalho que faziam para prover o próprio sustento e o de suas famílias geravam uma série de consequências benéficas do ponto de vista ambiental, social e econômico, tais como as seguintes destacadas pela ANCAT (2019, p. 10):

• Diminuição da exploração de recursos naturais; • Diminuição da poluição;

• Diminuição da emissão de gases de efeito estufa; • Redução dos custos de produção de novos produtos;

• Geração de renda: tanto pela venda do material quanto pela força de trabalho necessária para coleta, transporte e triagem do material.

A consciência dessas consequências benéficas permitiu que as catadoras e catadores construíssem a percepção de que através de suas atividades estariam realizando um trabalho ambiental importante, o que contrastava com o péssimo tratamento que muitas vezes era dispensado a eles pela gestão pública, pela polícia e pela população de um modo geral. Assim, junto à importância do protagonismo dos catadores, desde o início das articulações do movimento, veio à tona a questão da demanda por reconhecimento do trabalho prestado.

A fim de obter esse reconhecimento pelo trabalho que realizam, uma das primeiras estratégias foi a tentativa de uma aproximação com as gestões municipais, como é possível perceber a partir da fala de um catador entrevistado:

Bom, o primeiro passo do movimento foi a questão do protagonismo da categoria. E aí longo em seguida com isso a gente viu que não adiantava, um protagonista também tinha que vir com reconhecimento pelo trabalho. E aí a gente queria as prefeituras parceiras desse trabalho porque a gente viu, primeiro que eles eram responsáveis pela gestão dos resíduos, e a gente falou, então temos que ter parceria com as prefeituras senão não vai dar certo o trabalho. Então a primeira bandeira nossa foi as parcerias, né, naquela época

era tudo convênio, convênio com as prefeituras para instalar programas de coleta seletiva em parceria com a prefeitura, e aí foi uma das primeiras lutas nossa33.

No caso de Belo Horizonte, e da relação do município com a ASMARE, a aproximação possível em 1993, quando a organização foi formada, se deu a partir do setor de assistência social do município, através da realização de convênio já mencionado neste trabalho, no qual o município cedeu o galpão e ofereceu recursos para investimento na organização, a fim de que a mesma atuasse no programa de coleta seletiva do município. No entanto, com o tempo, as catadoras e catadores passaram a considerar que seu trabalho fosse reconhecido não apenas como uma iniciativa de inclusão social, mas como um trabalho com impacto também em outras áreas: econômica e ambiental.

Na realidade a gente naquela época era um convênio, a gente queria uma relação, não é, e aí como é que se deu aquela relação naquele início, foi com as assistentes sociais. Era tratado como uma questão social. E aí nós começamos a partir da criação do movimento inverter essa lógica. Não era questão de assistência social... Que o conceito de assistência social naquela época era mero assistencialismo, era complicado, né, conceito de assistência social naquela época em 93. E aí a partir de um momento começou a falar assim: não, nós não queremos ser só ... tratados como uma questão... como uma questão social, queremos também ser tratados como um reconhecimento do trabalho, uma questão econômica, Aí, então temos que ter uma relação muito maior aí com diferentes setores de governo, aí, para tentar avançar. E aí foi que a gente começou a avançar um pouco mais tendo reconhecimento de fato do que era o trabalho do catador34.

Com o tempo, essa discussão sobre o reconhecimento do trabalho foi tomando forma e os catadores passaram a argumentar que estariam prestando um serviço ambiental ao catarem materiais recicláveis, permitindo o retorno dos mesmos ao ciclo produtivo – serviço esse que seria de responsabilidade do setor público – e, portanto, deveriam ser remunerados por isso. No entanto, a forma como deveria se dar essa remuneração foi sendo construída ao longo do tempo, como pode ser percebido no relato, abaixo, de entrevistada que apoiou o processo de organização dos catadores em Belo Horizonte:

Eu lembro muito, a partir daqui de Minas... há uns dez anos, será? Deve ser mais ou menos isso, né? Quando se discutia, algumas lideranças dos catadores falavam o seguinte: ah, tem que ser remunerado pelo serviço prestado. E ser remunerado não, necessariamente, significava “eu tenho que ir para rua fazer a coleta”, mas é por isso que eu já passo e levo para dentro, né? E aí ao longo dos anos essa discussão ela foi sendo direcionada para remuneração pela prestação de serviço de coleta seletiva municipal, que tinha uma diferença. E algumas falavam o seguinte: “olha, independente do município ter coleta seletiva ou não, eu já cato resíduo eu já levo para dentro do galpão e eu tenho que ser remunerado porque eu deixo de... eu faço com que uma quantidade enorme de resíduo não vá para o lixão, não vá para o aterro, que a prefeitura não colete, então eu tenho que ser remunerado por isso, sabe? Então a 33 Entrevista 9.

discussão de alguns foi em cima disso, e depois a gente foi, lógico, a gente viu que assim a base foi caminhando para essa coisa mesmo da contratação, para prestação de serviço de coleta seletiva municipal (...) porque assim, primeiro por esse reconhecimento que o catadores eles são sujeitos históricos, aí que prestam serviço, um serviço que nunca foi remunerado, esse que eles sempre prestaram não foi remunerado, eles estão sendo remunerados por outro agora que é de prestação de serviço de coleta seletiva municipal (...) se a gente quer melhorar as condições de trabalho dos catadores tem que ter coleta seletiva, primeiro para melhorar a qualidade do material que chega até os galpões, para diminuir a quantidade de rejeito também, ou seja, que eles possam realmente trabalhar com material reciclável, segundo para a gente poder garantir também uma renda mínima para eles, que como o material reciclável ele oscila muito e você não consegue regular o mercado entorno do reciclável... Então, assim, como que se mantém isso? Ele precisa de ter uma outra via, então, ou seja, a outra renda é através da remuneração, né, dos contratos que tem de prestação de serviço. Então a prestação de serviço hoje de coleta seletiva ela vem também para isso, né, por essa, na verdade, por estar reconhecendo esse serviço que eles fazem e até também para garantir essa renda mesmo desses trabalhadores35.

A partir de tal fala, é possível pontuar algumas questões importantes acerca da demanda dos catadores a respeito da remuneração pelos serviços prestados e da contratação para prestação do serviço de coleta seletiva como uma alternativa para tal:

• Inicialmente, as discussões sobre o assunto contemplavam a ideia de que os catadores deveriam ser remunerados pelo trabalho que já estavam realizando cotidianamente, por evitarem que toneladas de materiais recicláveis fossem parar nos lixões;

• com o tempo, desenvolveu-se a ideia de que uma alternativa para melhorar as condições de trabalho dos catadores seria a contratação dos mesmos para a realização do serviço de coleta seletiva municipal. Além de possibilitar que esses catadores trabalhassem em local adequado e com o material reciclável já separado pela população entre secos e molhados – ao invés de trabalharem nos lixões –, isso também iria assegurar uma renda fixa para que os mesmos não ficassem à mercê da alta flutuação de preços dos resíduos, de forma a garantir, assim, uma remuneração mais justa pelo trabalho.

No entanto, a contratação não foi a única forma de remuneração pleiteada pelo movimento dos catadores de materiais recicláveis. Outro pleito do movimento foi o estabelecimento de política pública em âmbito nacional. Em relação a tal demanda do MNCR, o MMA chegou a solicitar do IPEA um estudo para subsidiar a elaboração de uma Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais Urbanos (IPEA, 2010). Consta que tal estudo apresentou, em sua segunda parte, algumas propostas para possíveis sistemas de Pagamentos por Serviços

Ambientais Urbanos aos catadores de materiais recicláveis. Nesse sentido, foram estudados instrumentos como: 1) o pagamento por produtividade, 2) os acréscimos compensatórios graduados e 3) fundo cooperativo36. Porém, nenhum deles foi implementado em âmbito nacional.

Em Minas Gerais, foi implementada uma política pública nesse sentido, a partir da publicação da lei estadual 19.823/11, que instituiu a concessão de incentivo financeiro a catadores de materiais recicláveis – o Bolsa Reciclagem. A previsão legal é a de um incentivo realizado por meio de pagamentos trimestrais a associações ou cooperativas cadastradas mediante o cumprimento de alguns requisitos. O valor a ser recebido por cada organização varia de acordo com a produtividade da mesma. No entanto, a partir do uso de uma fórmula específica, esse valor oscila para cima, caso haja, em meio à produção, materiais que têm um preço de mercado menor, a fim de proporcionar uma forma de compensação e incentivar que tais materiais também sejam reciclados. Do valor recebido como pelas cooperativas e associações, no mínimo 90% deve ser destinado à remuneração dos catadores, e os outros 10% podem ser utilizados para pagamento de outras despesas ou investimentos nas organizações.

No entanto, nos últimos anos, o pagamento do incentivo tem se atrasado muito, chegando ao acúmulo de sete parcelas até o final ano de 2019 (REDESOL, 2019). Em novembro do mesmo ano, o governo de Minas destinou cerca de R$1,5 milhões para o pagamento de duas das sete parcelas em atraso. As parcelas pagas referiam-se ao último trimestre de 2017 e ao primeiro de 2018 (NASCIMENTO, 2019).

Enfim, o reconhecimento e a remuneração pelos serviços prestados é uma demanda histórica dos catadores, tendo surgido bem no princípio de seu processo de organização. Com o decorrer do tempo, foram desenvolvidas alternativas para tal. No início, foram realizados convênios com os municípios, através do setor de assistência social. No entanto, esse tipo de iniciativa não pode ser considerada como pagamento por serviços, já que os recursos recebidos pelas organizações devem ser gastos de acordo com plano de trabalho para manutenção da organização e não para a remuneração dos trabalhadores. Posteriormente, chegou-se à ideia da contratação dos catadores para prestação de serviço de coleta seletiva, sobre a qual será realizada uma análise mais aprofundada na próxima seção, e das políticas de pagamento por serviços ambientais, como o Bolsa Reciclagem, em Minas Gerais.

4 Direito à contratação, catadores e a Política Nacional de Resíduos Sólidos – Pergunta de pesquisa, recorte e Considerações Metodológicas

Uma vez realizado o enquadramento teórico e apresentados alguns aspectos da luta empreendida pelos catadores de materiais recicláveis, temos, nesta dissertação, as bases necessárias para apresentar às leitoras e aos leitores o cerne do presente estudo, ao explicitar: o

que pesquisei, como tal pesquisa foi realizada e por que a considero relevante.

A bem da organização, a exposição de tais pontos será desenvolvida em três subseções específicas que apresentarão: o objetivo e perguntas de pesquisa, como foi realizada e justificativa para a realização da mesma.