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Pessoas em situação de pobreza buscando recursos necessários para sua sobrevivência dentre aquilo que outras descartam como “lixo” não é algo novo. No Brasil, há registros da atuação de catadores desde o século XIX24, o que sugere a possibilidade de que a realização da atividade laboral ligada aos mesmos tenha acompanhado todo o processo de urbanização no país (BENVINDO, 2010; IPEA, 2013; SILVA, 2017).

Ocorre que, ao realizarem a coleta, triagem e comercialização de materiais recicláveis, como papel, plástico, vidro e alumínio, as catadoras e catadores, além de proverem o sustento de suas famílias, contribuem para diminuição da quantidade de resíduos cujos destinos são os lixões e os aterros. Ou seja, além de evidenciarem o valor econômico dos resíduos recicláveis, colocando novamente em circulação recursos materiais que seriam enterrados, as catadoras e catadores contribuem, e muito, para a preservação do meio ambiente, através da diminuição da poluição. É Igualmente importante destacar os benefícios sociais de tal trabalho, uma vez que possibilita o sustento de milhares de famílias em situação de pobreza.

A partir de estudo que considerou 270 organizações de catadores apoiados pela ANCAT (2019), concluiu-se que, por ano, cada catador, no Brasil, evita que 19,2 toneladas de materiais recicláveis sejam destinadas a aterros e lixões, gerando enormes benefícios socioambientais. Se considerarmos que milhares de pessoas exercem essa atividade no Brasil, a cifra fica ainda

24 (...) são uns quarenta ou cincoenta, muito unidos e amigos, e que de Rio de Janeiro só conhecem a Sapucaia. Dividem entre si, com todo o methodo e ordem, os variados serviços das diversas repartições de lixo (…). Tudo alli é aproveitado, renovado, reutilizado e revendido (Jornal do Commercio, edição de 5 de julho de 1896 apud Benvindo, 2010, p. 10).

maior, dando uma dimensão da quantidade de material que retorna ao ciclo produtivo em razão do trabalho dos catadores.

Não há consenso em relação à quantidade de catadores de materiais recicláveis no Brasil. Estudo realizado pelo IPEA (2013) a partir de dados do Censo 2010 apontou a existência de 388 mil catadores no país. Considerando, ainda, dados disponíveis da PNAD 2017-2018, o perfil dos catadores de materiais recicláveis no Brasil seria o de pessoas do sexo masculino, pretos, pardos ou indígenas, com idade média de 43 anos e com grau de escolaridade até o ensino fundamental. A renda média desses catadores, no período de realização do estudo, era de R$ 975,00 reais mensais, valor compatível com o salário mínimo à época (ANCAT, 2019).

Entretanto, o MNCR tem contestado algumas informações disponibilizadas por tais estudos. O movimento estima que o número de catadores no Brasil gira em torno de 800 mil a 1 milhão. Além da quantidade de catadores, o MNCR questiona contundentemente o fato de os estudos apontarem uma predominância de pessoas do sexo masculino dentre os catadores, já que, de acordo com as estimativas do movimento, as mulheres seriam a grande maioria das pessoas que exercem tal atividade, representando 70% dos integrantes da categoria (MNCR, 2014).

Em relação a tais questionamentos, segundo o movimento25, em notícia disponibilizada em seu website, o IBGE teria se manifestado apresentando três possíveis explicações:

(1) a suposta subnotificação da quantidade de catadores teria se dado porque, devido ao fato de a catação ser uma atividade estigmatizada, muitas pessoas que a realizam podem ter omitido tal informação por constrangimento;

(2) como muitas mulheres que catam materiais exercem também outras atividades, como o cuidado do lar e da família, é possível que muitas delas, por considerarem a catação como uma atividade complementar, tenham declarado as atividades domésticas como ocupação principal, ocasionando a sub-representação de mulheres nos dados analisados.

(3) outra possível explicação apresentada para o contraste entre expectativa do movimento e dados sobre a proporção entre homens e mulheres entre os catadores seria a de que as mulheres teriam uma maior propensão ao trabalho organizado, o que ocasionaria nos integrantes do movimento essa percepção de que as mulheres seriam maioria dos catadores.

25 MNCR. Mulheres são maioria entre Catadores de Materiais Recicláveis. MNCR, 2014. Disponível em: <http://www.mncr.org.br/noticias/noticias-regionais/mulheres-sao-maioria-entre-catadores-organizados-em-cooperativas>. Acesso em: 25 jan. 2020.

Mas que, no entanto, haveria a possibilidade de que a maioria dos catadores não organizados seja formada por homens.

Embora a atividade da catação gere tantos benefícios em termos ambientais, econômicos e sociais, as catadoras e catadores de materiais recicláveis encontram uma série de dificuldades ao desempenharem seu trabalho. A começar pelo fato de que grande parte das pessoas que realizam esse tipo de trabalho o faz em condições extremamente precárias, ou até mesmo insalubres, e sem acesso a direitos trabalhistas, sendo que boa parte ainda tem como local de trabalho os lixões que ainda se encontram espalhados pelo Brasil.26

Outra dificuldade encontrada pelos catadores é o estigma relacionado à profissão, já que grande parte da população, bem como dos gestores públicos, desconhece o valor do trabalho desempenhado por eles, tanto no sentido da preservação do meio ambiente quanto da contribuição para a limpeza urbana, e, muitas vezes, compartilha uma percepção negativa em relação a tal segmento social, considerando-os como pessoas sujas. Sendo assim, é comum nos depararmos com o relato de alguns desses trabalhadores nos quais revelam que se sentiam (ou ainda se sentem) tratados pela população em geral como “lixo”, como é possível observar no que é dito em uma das entrevistas:

Isso foi em setenta e oito... setenta e sete... setenta e oito, e aí chegando aqui, o que aconteceu, a minha mãe tinha uma promessa de emprego com o pessoal, os fazendeiros que moravam, tinha uma fazenda lá que a gente trabalhava lá e eles tinham casas aqui, e aí chegando aqui essa proposta de emprego não se viabilizou. Não sei, eu não consigo lembrar mais o que aconteceu, só sei que foi muito traumático, né, a gente chegou e nos vermos sem telhado e sem forma de sobreviver. Então a minha mãe, chegando aqui com seis filhos, ela foi morar debaixo do viaduto, e o que a gente tinha de sustento daquilo lá era catação. E aí aquela época, eu costumo dizer daquela época que eu era, eu morava no lixo, vivia do lixo e era tratado como lixo, porque a cultura era muito de preconceito e muito excludente mesmo em relação aos catadores de materiais recicláveis. Não só em Belo Horizonte, como no país por inteiro27.

Outro desafio enorme consiste na atitude de algumas gestões municipais que acabam inviabilizando o trabalho das organizações formadas por catadores de materiais recicláveis, ao terceirizarem o serviço de gestão dos resíduos sólidos urbanos. Nas últimas décadas, o setor privado tem demonstrado cada vez mais o interesse em explorar economicamente os recursos referentes aos RSU e têm apresentado aos gestores públicos municipais propostas de tratamento

26 A Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei 1.2305/2010 estabeleceu que o prazo para a erradicação dos lixões no Brasil, ou seja, para que os municípios regularizassem a situação da destinação final dos resíduos sólidos era até agosto de 2014. No entanto, de acordo com relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE) (2019), no ano de 2018, 1.493 municípios brasileiros ainda destinavam os resíduos gerados em seu território a lixões.

dos mesmos que envolvem, por exemplo, a instalação de incineradores, visando à geração de energia a partir da queima dos resíduos. Além dos danosos efeitos ambientais, a adoção de tal tecnologia coloca em risco o trabalho dos catadores, uma vez que os resíduos recicláveis – resíduos secos – são justamente os que mais favorecem a combustão.

A assinatura de contratos que transferem a empresas o direito de explorar economicamente os resíduos sólidos, seja através da incineração ou de outras formas, pode ter como consequência uma situação em que os catadores fiquem sem acesso ao material reciclável necessário à realização de seu trabalho. Em situações desse tipo, aqueles que antes de quaisquer outros perceberam o valor do que as pessoas de um modo geral consideravam como “lixo” se veem sem condições de prover o sustento de suas famílias através da catação.

Como já mencionado em capítulo anterior, para fazer frente a desafios tão grandes e diversos, catadoras e catadores de materiais recicláveis têm se organizado conjuntamente, o que ocorre desde a década de 80, tanto através do MNCR quanto por meio da formação de milhares de associações e cooperativas em nível local, bem como de diversas cooperativas de segundo grau em nível regional. A seção seguinte deste estudo se dedicará a trazer um pouco dessa trajetória de organização dos catadores de materiais recicláveis no Brasil, dando atenção especial à formação da ASMARE, uma das primeiras organizações formadas por catadores no Brasil e a primeira em Minas Gerais.