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Tendo sido apresentados o objetivo e as perguntas norteadoras do presente estudo, cabe tratar a respeito dos motivos que justificam a realização do mesmo. E para fazer isso é interessante resgatar um pouco do que foi dito em seção anterior, no que diz respeito à nova apropriação que os movimentos sociais fizeram do conceito de cidadania a partir do período de redemocratização.

Em seus estudos sobre movimentos sociais, Dagnino (2000, p. 82-83) destacou que a necessidade de mudanças culturais, visando ao enfrentamento do autoritarismo social brasileiro, permeou os movimentos populares urbanos desde sua origem, dado que a forte hierarquização social que opera no Brasil faz com que os pobres brasileiros não sofram apenas de privações materiais, mas também com o não reconhecimento dos mesmos enquanto sujeitos de direitos. Sendo tal privação cultural constitutiva das privações material e política.

A fim de superar tal situação se deu, a partir da prática dos movimentos, uma redefinição do conceito de cidadania, em termos de direito a ter direitos, que serviu como uma base para que os diversos movimentos populares urbanos pudessem combater a cultura difusa do autoritarismo social, constitutivo das diversas formas de privação. Tal noção de cidadania permitia um campo comum para a vocalização de demandas diversas, pois podia ser acionada tanto por movimentos por direitos iguais, como o de mulheres, de homossexuais e de negros, como pelos movimentos populares urbanos, que passaram a perceber as carências sociais

como sendo privações de direitos, sendo este um ponto-chave na luta dos mesmos

(DAGNINO, 2000, p. 83). Sobre essa nova concepção de cidadania, Dagnino entende que:

ela organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que afirma um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política. Incorporando características da sociedade contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da transformação cultural para a construção democrática (DAGNINO, 1994, p. 104).

Essa nova concepção de cidadania como direito a ter direitos permeia a origem do movimento dos catadores, dado que o trabalho desenvolvido pelos grupos vinculados à igreja católica junto às pessoas em situação de rua, que deu início ao processo organizativo desses trabalhadores, era permeado por tal ideia. Essa nova concepção de cidadania aparece como base para outras discussões, como o direito à moradia e à autopercepção dos catadores enquanto trabalhadores, o que posteriormente levou à construção das ideias do direito à remuneração pelos serviços ambientais que prestam e do direito à contratação pelos municípios. O que sustento, aqui, é que, como a noção de luta por direitos permeia de forma muito intensa os movimentos sociais que surgiram a partir do período de redemocratização, faz sentido, ao estudar tais movimentos, articular o arcabouço teórico das TMS com as contribuições trazidas pela vertente de estudos da mobilização do direito, uma vez que os conceitos e ideias que a mesma apresenta são complementares e permitem uma análise mais completa da relação dos movimentos sociais com o direito.

Ocorre que estudos em mobilização do direito, articulados à TMS, são escassos no Brasil. Por aqui, há uma discussão rica e ampla relacionando direito e política, mas estes estudos se dão, principalmente, no âmbito de uma perspectiva mais voltada às instituições, partindo de conceitos como judicialização da política, comportamento judicial, entre outros, com foco no levantamento das demandas judiciais e levantamento do comportamento decisório nos tribunais. (VIANNA, 1999; VIANNA, BURGOS e SALLES, 2007)

Entretanto, considerando tais estudos, Maciel (2011) identifica uma lacuna no campo de estudos de direito e política. Segundo a mesma:

Ao privilegiar padrões estatísticos de acesso de disputas ao sistema judicial, a agenda da judicialização da política deixa à margem questões relevantes sobre o próprio processo da mobilização dos tribunais: quando, como e por que o direito e suas instituições se convertem em recurso e estratégia de ação política? Com qual intensidade e de que modo os agentes elegem, no decurso das disputas, uma ou outra das diferentes esferas do poder governamental, Judiciário, Executivo e Legislativo? (MACIEL, 2011, p. 99).

Ou seja, questões sobre como, por que e quando demandas por direitos chegam às instituições do sistema de justiça em geral não são abordadas no âmbito de tais estudos. É preciso destacar que muitas demandas por direitos que chegam a instituições como Ministério Público e Defensorias Públicas são tratadas a partir de atuação extrajudicial, e há pouquíssimos estudos que abordam isso.

Penso que o presente estudo, ao articular conceitos das TMS para pensar demandas por direitos, utilizando, para tal, a noção de mobilização do direito, poderá apresentar uma singela contribuição para o preenchimento de tal lacuna, uma vez que permitirá a abordagem da luta por direitos de uma forma ampliada, possibilitando pensar o direito para além dos tribunais. É possível, também, que, a partir da utilização da noção de mobilização do direito, apresente contribuição ao campo de estudos sobre movimentos sociais, por oportunizar uma abordagem mais acurada sobre a questão da luta por direitos.

No tocante à literatura sobre os catadores de materiais recicláveis, penso que o presente estudo também tem a contribuir, dado que os trabalhos que abordam a questão da implementação da PNRS em nível municipal preocupam-se mais em avaliar o grau de implementação da mesma em diferentes localidades, enquanto neste estudo o foco é na luta dos

catadores pela implementação de um ponto específico da lei, a questão da contratação, o que

torna explícita, portanto, a lacuna na literatura que este estudo pretende cobrir.

5 Contratação para Prestação de Serviços no Âmbito da Coleta Seletiva: “a luta para tirar o direito do papel”43 – Metodologia e Análise dos Dados

Oliveira, Leal e Lima (2015) descrevem, em artigo, o processo de mobilização de povos e comunidades tradicionais pela aprovação da lei 21.147 na ALMG. Nesse contexto, os autores

43 Referência ao artigo “Colocar no papel, tirar do papel”: A Lei 21.147 e o processo de conquista e efetivação de direitos dos povos e comunidades tradicionais em Minas Gerais” apresentado por OLIVEIRA, LEAL e LIMA no IV Encontro Nacional de Antropologia do Direito.

destacam dois diferentes momentos da mobilização pelos direitos dos povos e comunidades tradicionais: “colocar no papel” e “tirar do papel”. Ou seja: a mobilização para a aprovação da lei e a mobilização para que a mesma seja cumprida. Embora se trate de outro movimento e em outro campo de estudos – a antropologia – esse insight relativo à luta de movimentos para “colocar e tirar” o direito do papel pode ser muito elucidativo para compreender alguns processos de mobilização do direito quando analisados no âmbito da Ciência Política, incluindo aí luta dos catadores pela contratação.

Articulando tal insight com a abordagem da mobilização do direito (MCCANN, 2008; MCCANN, 1994) e da TPP, será abordado o enquadramento difundido pelo MNCR, considerando, principalmente, a luta pela contratação. Para tal, foi realizada uma análise de enquadramento, considerando todas as 65 notas e declarações do referido movimento que puderam ser encontradas em seção específica do seu website44.

5.1 O MNCR: análise da Moldura de Ação Coletiva, Oportunidades Políticas e