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2.3 Movimentos Sociais na América Latina

2.3.1 Movimentos Sociais, Democracia e Cidadania

Uma contribuição importante, que permite diálogo tanto com a perspectiva teórica da mobilização do direito quanto com a história e ações do movimento dos catadores de materiais recicláveis no Brasil, que será devidamente desenvolvida no capítulo seguinte, é o argumento de Dagnino (2000, p. 80-81) que, ao tratar sobre a política cultural dos movimentos sociais, tomando como exemplo o caso Brasileiro, sustenta que:

a) a concepção de democracia desenvolvida pelos movimentos sociais a partir período da redemocratização não se limita às instituições políticas e é mais abrangente do que aquilo que ocorre nas experiências das democracias consideradas como já consolidadas; b) tal concepção ampliada da democracia é operacionalizada através de uma redefinição

da noção de cidadania e da noção de direitos, seu referente central;

c) não se trata de uma rejeição da dimensão institucional da democracia, mas da reivindicação de uma profunda transformação da mesma.

Para a autora, no Brasil, há uma organização desigual e hierárquica das relações sociais, com base, principalmente, em classe, raça e gênero, sendo a pobreza extrema e a desigualdade social os aspectos mais visíveis da mesma. Nesse contexto, a noção de “lugar social” e o

20 Embora estudos interessantes tenham sido realizados a respeito de tais protestos (SINGER, 2013; PINTO, 2017; MENDONÇA, ERCAN, et al., 2019), não faz muito sentido discorrer a respeito de tal questão no âmbito deste trabalho, uma vez que o referido assunto não apresenta muita aproximação com o foco do mesmo. Por igual motivo, não discutirei a fundo os desafios que se apresentam aos movimentos sociais, considerando o perfil autoritário do atual governo.

conjunto de possibilidades/impossibilidades implicadas a cada lugar seria visível nos diferentes âmbitos da vida cotidiana, operando a reprodução das desigualdades. A esse dispositivo a autora dá o nome de autoritarismo social.

De acordo com Dagnino (2000, p. 80-81), no ordenamento social autoritário vigente no Brasil, a pessoa pobre não sofre apenas de privação material, também é subordinada a um conjunto de regras culturais que implica seu não reconhecimento como sujeito portador de direitos. Esse não reconhecimento é, assim, constitutivo da privação material e exclusão política.

A percepção de que mudanças culturais seriam necessárias para a consolidação do processo de democratização era evidente no âmbito de movimentos como o das pessoas negras, o feminista e o das pessoas LGBT. Mas a imbricação entre cultura e política também já era perceptível para os movimentos populares urbanos no processo de redemocratização. Estes notaram que além de lutarem por moradia, saúde, educação e outras necessidades básicas, precisariam, também, lutar pelo direito a ter direitos (DAGNINO, 2000).

Tal concepção de cidadania como direito a ter direitos foi construída por Hannah Arendt (1989), que chegou ao argumento a partir da análise da experiência dos apátridas e refugiados, ao verificar que a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado, mas um constructo social que necessita da existência de um espaço público comum para que possa emergir. Nas palavras de Lafer, em artigo sobre a contribuição de Arendt para o pensamento sobre direitos humanos: “Em resumo, é esse acesso ao espaço público – o direito

de pertencer a uma comunidade política – que permite a construção de um mundo comum

através do processo de asserção dos direitos humanos” (1997).

Essa noção muito discutida por Hannah Arendt foi apropriada durante o processo de redemocratização brasileiro, tendo sido amplamente difundida, principalmente, por organizações vinculadas à igreja católica e à teologia da libertação, no trabalho junto às chamadas comunidades eclesiais de base (SCHERER-WARREN, 2005).

A luta pela possibilidade de participar da comunidade política, portanto da definição das regras do mundo comum, contra o autoritarismo social, foi um elemento fundamental para que se estabelecesse uma articulação entre movimentos de diversas matizes, suscitando uma luta pela ampliação da concepção de democracia. A apropriação da noção de cidadania pelos movimentos foi essencial nessa luta, por permitir a operacionalização de tal visão ampliada de democracia. Segundo Dagnino,

As origens da atual noção redefinida de uma nova cidadania podem ser parcialmente encontradas na experiência concreta dos

movimentos sociais no final da década de 1970 e nos anos 80. Para os movimentos populares urbanos, a percepção das carências sociais como direitos representou um passo crucial e um ponto de inflexão em sua luta. Para os outros movimentos sociais como o ecológico e os conduzidos por mulheres, negros e homosssexuais, a luta pelo direito à igualdade e à diferença encontrou claro apoio na noção redefinida de cidadania. Uma parte significativa dessa experiência comum foi constituída pela elaboração de novas identidades como sujeitos, como portadores de direitos, como cidadãos iguais (DAGNINO, 2000, p. 83).

O argumento da autora é importante no âmbito desta pesquisa, uma vez que destaca como crucial para a luta dos movimentos populares urbanos brasileiros, no período de redemocratização, a mudança de significados empreendida pelos mesmos, ao passarem a perceber as carências sociais como direitos através da apropriação e ressignificação do conceito de cidadania.

Se considerarmos a mobilização do direito conforme apresentada aqui, em seção específica, é possível fazer, a partir do argumento de Dagnino (2000) a leitura de que:

a) ao apresentarem um novo enquadramento no qual demandas são percebidas como direitos, os movimentos sociais urbanos realizaram a mobilização do direito, sendo a mesma crucial para sua luta.

b) tal mobilização do direito foi um ponto articulador de movimentos sociais brasileiros de diversas matizes a partir do processo de redemocratização.

c) dada a amplitude e importância de tal ideia e a amplitude de propagação da mesma, é possível considerar que se trata de um master frame.

Como já visto anteriormente, na primeira parte deste capítulo, para Benford e Snow (2000, p. 621), em geral, os frames de ação coletiva referem-se especificamente aos interesses de um grupo particular ou a um conjunto de problemas relacionados a ele. Mas alguns, devido à amplitude de seu escopo interpretativo, acabam permeando a percepção e orientando a ação das atividades de diversos movimentos. Tais frames genéricos são chamados por eles de master

frames, em contraste com os frames mais comuns, relacionados a movimentos específicos. A

ampliação da concepção de democracia e a redefinição da noção de cidadania, que levaram à compreensão das demandas dos movimentos populares como direitos, são consideradas neste estudo um master frame. No âmbito do mesmo, foi construído o enquadramento que orienta o movimento dos catadores de materiais recicláveis, entre outros. Santos e colaboradores (2011, p. 59) também consideram que a demanda por direitos, em sua transversalidade, levam a um alargamento da concepção dos direitos humanos, ampliando, assim, a base de mobilizações,

sendo também considerada pelos mesmos como um master frame, em razão do seu escopo amplo, inclusividade e flexibilidade.

Uma vez abordado o master frame, que orientou a interpretação e ação de diversos movimentos a partir do período de redemocratização, faz sentido tratar um pouco mais sobre a forma como eles passaram a se articular posteriormente. Refiro-me, aqui, à articulação dos movimentos em rede.