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1 FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL: SÓCIO-

1.3 A REALIDADE BIPOLAR DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

De meados do século XVI até o final do século XIX, a realidade socioeconômica brasileira foi pouco alterada: o país se mostrava como uma grande sociedade rural, com pequenos núcleos urbanos, em que se instalava uma minoria elitizada, que tinha acesso a uma incipiente vida institucional (LUCCHESI, 2009). As camadas médias e altas da sociedade brasileira, que eram numericamente reduzidas e que possuíam um comportamento linguístico sensivelmente conservador, buscavam sempre manter os laços linguísticos e culturais com a Metrópole. Durante muito tempo, os professores de língua portuguesa que

lecionavam em terras brasileiras eram trazidos de Portugal; um caráter conservador foi mantido na língua falada pela elite, que era vista como possuidora da variedade culta do PB.

Em outro extremo, se encontrava a maioria da população, índios, africanos e mestiços, que eram explorados e viviam em condições desumanas, segregados da sociedade, sem direito à cidadania. Nessas condições, ocorria um massivo contato do português com as línguas dos indígenas e dos africanos trazidos para o Brasil, o que caracterizava uma realidade ideal para a ocorrência de processos de

transmissão linguística irregular. Uma variedade já modificada do português ia sendo

aprendida por essa camada da população, que era numericamente superior à elite colonial, e disseminada por várias regiões do país. A tal variedade do português Mattos e Silva (2004) chama de “português geral brasileiro”, considerado um antecedente histórico do atual português popular brasileiro, que foi adquirido na oralidade, em situações de aquisição imperfeita e “difundido pelo geral do Brasil, sobretudo pela maciça presença da população africana e dos afro-descendentes que perfizeram uma média de mais de 60% da população por todo o período colonial” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 90).

A camada popular, composta inicialmente por índios aculturados, escravos e mestiços, era a mão-de-obra disponível para o trabalho na lavoura de cana-de- açúcar, no cultivo do pau-brasil, algodão, café, tabaco e, posteriormente, no ciclo da mineração do ouro. Sendo assim, essa camada teve atuação bastante abrangente em várias regiões do país e, conforme Lucchesi, “o massivo deslocamento de populações pode explicar em boa medida a homogeneidade diatópica das variedades populares do português do Brasil” (2001, p.105). Dessa forma, a realidade linguística brasileira não era apenas heterogênea e variável, era sim plural e polarizada, com as normas vernáculas em um polo e as normas cultas em outro.

Dentre as normas vernáculas, estava o chamado “português geral brasileiro”, que, de acordo com Mattos e Silva (2004), teve como favorecedor à sua formação uma presença não-maciça de europeus e a grande miscigenação ocorrida em terras brasileiras. Um constante

embate se dava entre duas possibilidades: um português africanizado ou um português europeizado. Por outro lado, a depender de configurações históricas locais, a predominância indígena ou negra ou

ambas em convívio com o português resultou em perfis diferenciados, a se considerar o conjunto brasileiro. (MATTOS E SILVA, 2004, p. 21)

A partir do fim do século XIX, aconteceu, no Brasil, uma entrada populacional de imigrantes, que tinha o objetivo político e social de ajudar a modernizar a economia, de embranquecer a população local (KREUTZ, 2000), mas que, linguisticamente, serviu também para ajudar a diminuir a distância que separa o polo culto do polo popular. Os japoneses, italianos, espanhóis, portugueses que se instalavam em solo brasileiro chegavam arruinados economicamente, porém, algumas vezes, tinham alguma instrução, o que facilitava a sua rápida ascensão social. Eles deixavam de conviver com escravos e capatazes, com quem aprendiam o português do Brasil, repleto de marcas da camada mais excluída da população, e passavam a conviver com os brancos e seus descendentes, a classe média do período, oferecendo mão-de-obra especializada. Nessa ascensão social, os imigrantes passaram a interagir verbalmente com pessoas falantes de norma culta, e aspectos do PPB acabaram por serem transmitidos, assim como traços do português culto passaram a ser absorvidos.

A antiga realidade bipolar pode ser observada ainda hoje, porém um pouco mais atenuada. Até meados do século XX, a população brasileira era em sua maioria analfabeta, praticamente não havia meios de comunicação em massa, o sistema de transporte também não era dos mais eficientes, o que dificultava o acesso a muitas regiões do país, e a influência dos padrões linguísticos urbanos era mínima; toda essa dificuldade certamente facilitou a manutenção de algumas variedades de língua mais ou menos crioulizadas faladas no interior do Brasil, como a variedade falada em Helvécia. O que Lucchesi (2001) pôde observar em Helvécia, cidade localizada no extremo Sul do Estado da Bahia, foi uma forte influência do contato entre línguas ocorrido naquela localidade, com os membros mais velhos mantendo as marcas desse contato, como a simplificação de flexões verbais e nominais. Os mais jovens, graças à influência da urbanização, já estavam readquirindo e reintroduzindo a morfologia verbal e nominal perdida.

Lucchesi (2001, p. 107) salienta que está havendo uma diminuição da distância existente entre as normas populares e as normas cultas, mostrando que:

[...] há uma tendência da mudança do português popular em direção aos modelos da norma culta, que atingem e influenciam as camadas

mais baixas da população através da televisão, do rádio ou pelo contato direto, proporcionado pelas modernas condições de transporte, ou mesmo através do precário sistema de ensino.

Apesar dessa diminuição de distâncias, ainda hoje é possível se perceber a existência da(s) norma(s) culta(s) e da(s) norma(s) popular(es), já que ainda há um “grande abismo que separa uma minoria, que desfruta de bens e serviços do universo da cidadania, da grande maioria, que pouco ou nenhum acesso tem aos bens de consumo, aos serviços sociais e aos direitos sociais básicos” (LUCCHESI, 2009, p. 42). A norma culta, na realidade atual brasileira, é aquela falada por essa minoria escolarizada, que tem acesso a saúde, lazer, que conhece os seus direitos. Os falantes da norma culta do PB são herdeiros “dos modelos [linguísticos] transmitidos aos longos dos séculos nos meios da elite colonial e do Império; modelos esses decalcados da língua da Metrópole portuguesa” (LUCCHESI, 2009, p. 42).

Em contrapartida, a norma popular é aquela falada por uma maioria, alijada de seus direitos de cidadão, que não consegue concluir os estudos básicos, quando consegue alguma escolarização formal, que tem dificuldade para ser atendida pela rede de saúde pública, que desconhece os momentos de lazer. Seu modelo linguístico advém de uma também maioria do período colonial, de uma língua que foi modificada pelo contado de várias línguas, a do colonizados, a dos nativos e a dos escravos trazidos da África. “Dessarte, se é uma variedade de língua do colonizador que se impõe na fala dos segmentos sociais aí formados, não se pode deixar de perceber as marcas de sua aquisição precária e de sua nativização mestiça” (LUCCHESI, 2009, p. 42).

Na zona rural, ainda que com fortes influências sociais e linguísticas dos centros urbanos, é onde se pode encontrar de forma mais delineada as marcas do contato entre línguas ocorrido no período de formação da língua portuguesa no Brasil e que se mostram mais fortemente no PPB. Aqui, nesta pesquisa, observa-se o português popular falado em bairros periféricos de um centro urbano, em busca de se perceber e definir como o contato entre línguas afetou essa variedade de língua mais integrada e urbanizada.

2 APORTE TEÓRICO - METODOLÓGICO

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A variação na aplicação da regra de concordância nominal, de número e de gênero, em predicativos do sujeito e em estruturas passivas na fala popular é recorrente, aparecendo tal variação, muitas vezes, inclusive, na fala de pessoas usuárias de uma norma culta. É possível ouvir expressões como “As casas foram pintadas” e “Os livros que eu li ontem para você é bom”.

Aqui, parte-se do pressuposto de que o uso ou não da marca de plural não ocorre de maneira aleatória, ou mesmo condicionada por um único fator, e sim pela atuação de uma série de fatores, linguísticos e sociais. Assim, busca-se compreender e explicitar quais os fatores que influenciam a opção do falante pelo uso ou não da norma de concordância nominal de gênero e de número nas estruturas sintáticas aqui em foco.

Para responder à pergunta sobre quais fatores influem no fenômeno em estudo, serão utilizados os pressupostos teóricos da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 2008 [1972]; WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]), ramo dos estudos linguísticos que se propõe a estudar a variação e a mudança linguísticas, estabelecendo, como o próprio nome indica, a relação inquestionável entre língua e sociedade. Dessa forma, o presente capítulo se ocupará de uma breve discussão sobre os axiomas da Sociolinguística Variacionista e de suas contribuições para a compreensão dos fatos linguísticos.